Bem Sei, Amor, que Ă© Certo o que Receio
Bem sei, Amor, que Ă© certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso, mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.A mĂŁo tenho metida no meu seio,
E nĂŁo vejo os meus danos Ă s escuras;
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mim me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar um moço cego?
Passagens de LuĂs de CamĂ”es
351 resultadosEstĂĄ O Lascivo E Doce Passarinho
EstĂĄ o lascivo e doce passarinho
com o biquinho as penas ordenando;
o verso sem medida, alegre e brando,
espedindo no rĂșstico raminho;o cruel caçador (que do caminho
se vem calado e manso desviando)
na pronta vista a seta endireitando,
lhe dĂĄ no EstĂgio lago eterno ninho.Dest’ arte o coração, que livre andava,
(posto que jĂĄ de longe destinado)
onde menos temia, foi ferido.Porque o Frecheiro cego me esperava,
para que me tomasse descuidado,
em vossos claros olhos escondido.
Quando, Senhora, Quis Amor Que Amasse
Quando, Senhora, quis Amor que amasse
essa grã perfeição e gentileza,
logo deu por sentença que a crueza
em vosso peito amor acrescentasse.Determinou que nada me apartasse,
nem desfavor cruel, nem aspereza;
mas que em minha rarĂssima firmeza
vossa isenção cruel se executasse.E, pois tendes aqui oferecida e
sta alma vossa a vosso sacrifĂcio,
acabai de fartar vossa vontade.NĂŁo lhe alargueis, Senhora, mais a vida;
acabarĂĄ morrendo em seu oficio,
sua fé defendendo e lealdade.
Despois Que Viu Cibele O Corpo Humano
Despois que viu Cibele o corpo humano
do fermoso Ătis seu verde pinheiro,
em piedade o vĂŁo furar primeiro
convertido, chorou seu grave dano.E, fazendo a sua dor ilustre engano,
a JĂșpiter pediu que o verdadeiro
preço da nova palma e do loureiro,
ao seu pinheiro desse, soberano.Mais lhe concede o filho poderoso
que, as estrelas, subindo, tocar possa,
vendo os segredos lå do Céu superno.Oh! ditoso Pinheiro! Oh! mais ditoso
quem se vir coroar da folha vossa,
cantando Ă vossa sombra verso eterno!
NĂŁo Canse o Cego Amor de me Guiar
Pois meus olhos nĂŁo cansam de chorar
Tristezas nĂŁo cansadas de cansar-me;
Pois nĂŁo se abranda o fogo em que abrasar-me
PĂŽde quem eu jamais pude abrandar;NĂŁo canse o cego Amor de me guiar
Donde nunca de lĂĄ possa tornar-me;
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Enquanto a fraca voz me nĂŁo deixar.E se em montes, se em prados, e se em vales
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, åguas;Ouçam a longa história de meus males,
E curem sua dor com minha dor;
Que grandes mĂĄgoas podem curar mĂĄgoas.
Nunca em amor danou o atrevimento
Nunca em amor danou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida cobardia
De pedra serve ao livre pensamento.Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A Estrela nele encontra que lhe Ă© guia;
Que o bem que encerra em si a fantasia,
São u~as ilusÔes que leva o vento.Abrir-se devem passos à ventura;
Sem si próprio ninguém serå ditoso;
Os princĂpios somente a Sorte os move.Atrever-se Ă© valor e nĂŁo loucura;
PerderĂĄ por cobarde o venturoso
Que vos vĂȘ, se os temores nĂŁo remove.
Num Tão Alto Lugar, De Tanto Preço
Num tão alto lugar, de tanto preço,
este meu pensamento posto vejo,
que desfalece nele inda o desejo,
vendo quanto por mim o desmereço.Quando esta tal baixesa em mim conheço,
acho que cuidar nele Ă© grĂŁo despejo,
e que morrer por ele me Ă© sobejo
e mor bem para mim, do que mereço.O mais que natural merecimento
de quem me causa um mal tĂŁo duro e forte,
o faz que vĂĄ crecendo de hora em hora.Mas eu nĂŁo deixarei meu pensamento,
porque inda que este mal me causa a morte,
Un bel morir tutta la vita onora.
Se Agora nĂŁo Quereis quem vos Ama
EstĂĄ-se a Primavera trasladando
Em vossa vista deleitosa e honesta;
Nas belas faces, e na boca e testa,
Cecéns, rosas, e cravos debuxando.De sorte, vosso gesto matizando,
Natura quanto pode manifesta,
Que o monte, o campo, o rio, e a floresta,
Se estĂŁo de vĂłs, Senhora, namorando.Se agora nĂŁo quereis que quem vos ama
Possa colher o fruto destas flores,
Perderão toda a graça os vossos olhos.Porque pouco aproveita, linda Dama,
Que semeasse o Amor em vĂłs amores,
Se vossa condição produz abrolhos.
E quando um bom em tudo Ă© justo e santo,
Em negĂłcio do mundo pouco acerta,
Que mal co’eles poderĂĄ ter conta
A quieta inocĂȘncia, em sĂł Deus pronta.
Lembre-vos um amor que, cada dia,
Em mim tĂŁo verdadeiro e firme crece
Que alheio me traz jĂĄ do que soĂa.
Coisas impossĂveis, Ă© melhor esquecĂȘ-las que desejĂĄ-las.
Quando Se Vir Com Ăgua O Fogo Arder
Quando se vir com ĂĄgua o fogo arder,
e misturar co dia a noite escura,
e a terra se vir naquela altura
em que se vem os Céus prevalecer;o Amor por razão mandado ser,
e a todos ser igual nossa ventura,
com tal mudança, vossa formosura
então a poderei deixar de ver.Porém não sendo vista esta mudança
no mundo (como claro estĂĄ nĂŁo ver-se),
não se espere de mim deixar de ver-vos.Que basta estar em vós minha esperança,
o ganho de minha alma, e o perder-se,
para nĂŁo deixar nunca de querer-vos.
No Mundo nĂŁo Tem Boa Sorte SenĂŁo quem Tem por Boa a que Tem
Uma cousa sabei de mim: que queria antes o bem do mal, que o mal do bem; porque muito mais se sente o porvir, que o passado; e a morte, até matar, mata. Não sei se sereis marca de voar tão alto; porque, para tomar a palha a esta matéria, são necessårias asas de nebri. Mas vós sois homem de prol, e desculpa-me a conta em que vos tenho. E a que de mim vos sei dar, é que:
Esperança me despede,
tristeza nĂŁo me falece,
e tudo o mais m’aborrece.
JĂĄ que mais nĂŁo mereceu
minha estrela,
só a tristeza conheço,
pois que para mim nasceu
e eu para ela.No mundo nĂŁo tem boa sorte senĂŁo quem tem por boa a que tem. E daqui me vem contentar-me, de triste. Mas olhai de que maneira:
Vivo assi ao revés,
tomando por certa vida
certa morte,
com que folgo, em que me pĂȘs,
pois minha sorte Ă© servida
de tal sorte.Uma cousa sabei: que o mal, ainda que às vezes o vejais louvar, não hå quem o louve com a boca que o não taxe com o coração:
Ajudai-me a sofrer
vida tĂŁo sem sofrimento,
Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
Quanto Mais me Paga, Mais me Deve
Passo por meus trabalhos tĂŁo isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que sĂł por a vontade com que peno
Me fica Amor devendo mais tormento.Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temperando a triaga c’o veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o sofrimento.Porém se esta fineza o Amor sente
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.Mas se me vĂȘ co’os males tĂŁo contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que quanto mais me paga, mais me deve.
Glosa a mote alheio
“Vejo-a na alma pintada,
Quando me pede o desejo
O natural que nĂŁo vejo.”Se sĂł no ver puramente
Me transformei no que vi,
De vista tĂŁo excelente
Mal poderei ser ausente,
Enquanto o nĂŁo for de mi.
Porque a alma namorada
A traz tĂŁo bem debuxada
E a memĂłria tanto voa,
Que, se a nĂŁo vejo em pessoa,
“Vejo-a na alma pintada.”O desejo, que se estende
Ao que menos se concede,
Sobre vĂłs pede e pretende,
Como o doente que pede
O que mais se lhe defende.
Eu, que em ausĂȘncia vos vejo,
Tenho piedade e pejo
De me ver tĂŁo pobre estar,
Que entĂŁo nĂŁo tenho que dar,
“Quando me pede o desejo.”Como Ă quele que cegou
Ă cousa vista e notĂłria,
Que a Natureza ordenou
Que se lhe dobre em memĂłria
O que em vista lhe faltou,
Assim a mim, que nĂŁo rejo
Os olhos ao que desejo,
Na memĂłria e na firmeza
Me concede a Natureza
“O natural que nĂŁo vejo.”
VĂłs Que, D’olhos Suaves E Serenos
VĂłs que, d’olhos suaves e serenos,
com justa causa a vida cativais,
e que os outros cuidados condenais
por indevidos, baixos e pequenos;se ainda do Amor domésticos venenos
nunca provastes, quero que saibais
que Ă© tanto mais o amor despois que amais,
quanto são mais as causas de ser menos.E não cuide ninguém que algum defeito,
quando na cousa amada s’apresenta,
possa deminuir o amor perfeito;antes o dobra mais; e se atormenta,
pouco e pouco o desculpa o brando peito;
que Amor com seus contrairos s’acrescenta.
Que Amor com seus contrĂĄrios se acrescenta.
Seguia Aquele Fogo, Que O Guiava
Seguia aquele fogo, que o guiava,
Leandro, contra o mar e contra o vento;
as forças lhe faltavam jå e o alento,
Amor lhas refazia e renovava.Despois que viu que a alma lhe faltava,
nĂŁo esmorece; mas, no pensamento,
(que a lĂngua jĂĄ nĂŁo pode) seu intento
ao mar que lho cumprisse, encomendava.à mar (dezia o moço só consigo),
jå te não peço a vida; só queria
que a de Hero me salves; nĂŁo me veja…Este meu corpo morto, lĂĄ o desvia
daquela torre. SĂȘ me nisto amigo,
pois no meu maior bem me houveste enveja!
De Deus guiada sĂł e de santa estrela,
SĂł pode o que impossĂbil parecia.