Passagens de Luís de CamÔes

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Cara Minha Inimiga

Cara minha inimiga, em cuja mĂŁo
PĂŽs meus contentamentos a ventura,
Faltou-te a ti na terra sepultura,
Por que me falte a mim consolação.

Eternamente as ĂĄguas lograrĂŁo
A tua peregrina formosura:
Mas enquanto me a mim a vida dura,
Sempre viva em minha alma te acharĂŁo.

E, se meus rudos versos podem tanto,
Que possam prometer-te longa histĂłria
Daquele amor tĂŁo puro e verdadeiro,

Celebrada serĂĄs sempre em meu canto:
Porque, enquanto no mundo houver memĂłria,
SerĂĄ a minha escritura o teu letreiro.

Chorai, Ninfas, Os Fados Poderosos

Chorai, Ninfas, os fados poderosos
daquela soberana fermosura!
Onde foram parar na sepultura
aqueles reais olhos graciosos?

Ó bens do mundo, falsos e enganosos!
Que mĂĄgoas para ouvir! Que tal figura
jaza sem resplandor na terra dura,
com tal rosto e cabelos tĂŁo fermosos!

Das outras que serĂĄ, pois poder teve
a morte sobre cousa tanto bela
que ela eclipsava a luz do claro dia?

Mas o mundo nĂŁo era dino dela,
por isso mais na terra nĂŁo esteve;
ao Céu subiu, que jå *se* lhe devia.

Correm Turvas As Águas Deste Rio

Correm turvas as ĂĄguas deste rio,
que as do Céu e as do monte as enturbaram;
os campos florecidos se secaram,
intratĂĄvel se fez o vale, e frio.

Passou o VerĂŁo, passou o ardente Estio,
ĂŒas cousas por outras se trocaram;
os fementidos Fados jĂĄ deixaram
do mundo o regimento, ou desvario.

Tem o tempo sua ordem jĂĄ sabida;
o mundo, nĂŁo; mas anda tĂŁo confuso,
que parece que dele Deus se esquece.

Casos, opiniÔes, natura e uso
fazem que nos pareça desta vida
que nĂŁo hĂĄ nela mais que o que parece.

Quantas vezes as ondas se encreparam
Com meus suspiros! Quantas com meu pranto
Se pararam com mĂĄgoa, e me escutaram!

Senhora minha, se de pura inveja

Senhora minha, se de pura inveja
Amor me tolhe a vista delicada,
A cor, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz que o Sol deseja,

NĂŁo me pode tolher que vos nĂŁo veja
Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel inimigo que me seja.

Nela vos vejo, e vejo que nĂŁo nasce
Em belo e fresco prado deleitoso
SenĂŁo flor que dĂĄ cheiro a toda a serra.

Os lĂ­rios tendes nu~a e noutra face.
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se hĂĄ tanto bem na terra!

Nunca vi coisa mais para lembrar, e menos lembrada, que a morte: sendo menos aborrecida que a verdade, tem-se em menos conta que a virtude.

Que o Rudo Engenho Meu me Desengana

De tĂŁo divino acento em voz humana,
De elegĂąncias que sĂŁo tĂŁo peregrinas,
Sei bem que minhas obras nĂŁo sĂŁo dignas,
Que o rudo engenho meu me desengana.

Porém da vossa pena ilustre mana
Licor que vence as ĂĄguas Cabalinas;
E convosco do Tejo as flores finas
FarĂŁo inveja Ă  cĂłpia Mantuana.

E pois a vĂłs, de si nĂŁo sendo avaras,
As filhas de MnemĂłsine fermosa
Partes dadas vos tĂȘm ao mundo claras;

A minha Musa, e a vossa tĂŁo famosa,
Ambas se podem nele chamar raras,
A vossa de alta, a minha de invejosa.

Amor Ă© fogo que arde sem se ver

Amor Ă© fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos coraçÔes humanos amizade,
Se tĂŁo contrĂĄrio a si Ă© o mesmo Amor?

Lågrimas Tristes Tomarão Vingança

Se somente hora alguma em vĂłs piedade
De tĂŁo longo tormento se sentira,
Amor sofrera, mal que eu me partira
De vossos olhos, minha saudade.

Apartei-me de vĂłs, mas a vontade,
Que por o natural na alma vos tira,
Me faz crer que esta ausĂȘncia Ă© de mentira;
Porém venho a provar que é de verdade.

Ir-me-ei, Senhora; e neste apartamento
Lågrimas tristes tomarão vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.

Desta arte darei vida a meu tormento,
Que, enfim, cå me acharå minha lembrança
Sepultado no vosso esquecimento.

Pelos Extremos Raros Que Mostrou

Pelos extremos raros que mostrou
em saber, Palas, Vénus em fermosa,
Diana em casta, Juno em animosa,
África, Europa e Asia as adorou.

Aquele saber grande que ajuntou
esprito e corpo em liga generosa,
esta mundana mĂĄquina lustrosa,
de sĂł quatro Elementos fabricou.

Mas mor milagre fez a natureza
em vĂłs, Senhoras, pondo em cada ĂŒa
o que por todas quatro repartiu.

A vĂłs seu resplandor deu Sol e LĂŒa,
a vós com viva luz, graça e pureza,
Ar, Fogo, Terra e Água vos serviu.

A Fermosura Fresca Serra

A fermosura fresca serra,
e a sombra dos verdes castanheiros,
o manso caminhar destes ribeiros,
donde toda a tristeza se desterra;

o rouco som do mar, a estranha terra,
o esconder do sol pelos outeiros,
o recolher dos gados derradeiros,
das nuvens pelo ar a branda guerra;

enfim, tudo o que a rara natureza
com tanta variedade nos ofrece,
me estĂĄ (se nĂŁo te vejo) magoando.

Sem ti, tudo me enoja e me aborrece;
sem ti, perpetuamente estou passando
nas mores alegrias, mor tristeza.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, Muda-se o ser, muda-se a confiança; Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.

Tal Mostra DĂĄ De Si Vossa Figura

Tal mostra dĂĄ de si vossa figura,
Sibela, clara luz da redondeza,
que as forças e o poder da natureza
com sua claridade mais apura.

Quem viu ĂŒa confiança tĂŁo segura,
tĂŁo singular esmalte da beleza,
que não padeça mais, se ter defesa
contra vossa gentil vista procura?

Eu, pois, por escusar essa esquivança,
a razĂŁo sujeitei ao pensamento,
que, rendida, os sentidos lhe entregaram.

Se vos ofende o meu atrevimento,
inda podeis tomar nova vingança
nas relĂ­quias da vida, que escaparam.

Aquela luz que a do Sol claro priva,
E a minha me cegou;
Aquele mover de olhos, minhas dores
Causando no olhar manso e divino.

Com Grandes Esperanças Jå Cantei

Com grandes esperanças jå cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
despois vim a chorar porque cantara
e agora choro jĂĄ porque chorei.

Se cuido nas passadas que jĂĄ dei,
custa me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mĂĄgoas que passara
tenho pola mor mĂĄgoa que passei.

Pois logo, se estĂĄ claro que um tormento
dĂĄ causa que outro n’alma se acrescente,
jĂĄ nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente?

Sete anos de pastor Jacob servia LabĂŁo, pai de Raquel, serrana bela; mas nĂŁo servia o pai, servia a ela, e a ela sĂł por prĂȘmio pretendia.

Eu Vivia De LĂĄgrimas Isento

Eu vivia de lĂĄgrimas isento,
num engano tĂŁo doce e deleitoso
que em que outro amante fosse mais ditoso,
nĂŁo valiam mil glĂłrias um tormento.

Vendo-me possuir tal pensamento,
de nenhĂŒa riqueza era envejoso;
vivia bem, de nada receoso,
com doce amor e doce sentimento.

Cobiçosa, a Fortuna me tirou
deste meu tĂŁo contente e alegre estado,
e passou-me este bem, que nunca fora:

em troco do qual bem sĂł me deixou
lembranças, que me matam cada hora,
trazendo-me Ă  memĂłria o bem passado.

Porque, inda que presentes nĂŁo estejam
As que eles ver desejam,
Mudança do lugar, menos de estado,
Não muda um coração de seu cuidado.