Sentindo Se Tomada A Bela Esposa
Sentindo se tomada a bela esposa
de Céfalo, no crime consentido,
para os montes fugia do marido;
e nĂŁo sei se de astuta, ou vergonhosa.Porque ele, enfim, sofrendo a dor ciosa,
de amor cego e forçoso compelido,
apĂłs ela se vai como perdido,
já perdoando a culpa criminosa.Deita se aos pés da Ninfa endurecida,
que do cioso engano está agravada;
já lhe pede perdão, já pede a vida.Ó força de afeição desatinada!
Que da culpa contra ele cometida,
perdĂŁo pedia Ă parte que Ă© culpada!
Passagens de LuĂs de Camões
351 resultadosLouvado Seja Amor em Meu Tormento
No tempo que de amor viver soĂa,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.Que ardesse n’um sĂł fogo nĂŁo queria
O Céu porque tivesse experimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co’o peso descansou
Por tornar a cansar com mais alento.Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tĂŁo cansado sofrimento!
Se tanta pena tenho merecida
Se tanta pena tenho merecida
Em pago de sofrer tantas durezas,
Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,
Que aqui tendes u~a alma oferecida.Nela experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas,
Que mores sofrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.Mas contra vosso olhos quais serĂŁo?
Forçado é que tudo se lhe renda,
Mas porei por escudo o coração.Porque, em tão dura e áspera contenda,
É bem que, pois não acho defensão,
Com me meter nas lanças me defenda.
A FĂ© que me Obriga a Tanto Amar-vos
Dai-me ũa lei, Senhora, de querer-vos,
Porque a guarde sob pena de enojar-vos;
Pois a fé que me obriga a tanto amar-vos
Fará que fique em lei de obedecer-vos.Tudo me defendei, senão só ver-vos
E dentro na minha alma contemplar-vos;
Que se assim nĂŁo chegar a contentar-vos,
Ao menos nunca chegue a aborrecer-vos.E se essa condição cruel e esquiva
Que me deis lei de vida nĂŁo consente,
Dai-ma, Senhora, já, seja de morte.Se nem essa me dais, é bem que viva,
Sem saber como vivo, tristemente;
Mas contente estarei com minha sorte.
Os Vestidos Elisa Revolvia
Os vestidos Elisa revolvia
que lh’Eneias deixara por memĂłria:
doces despojos da passada glĂłria,
doces, quando seu Fado o consentia.Entr’eles a fermosa espada via
que instrumento foi da triste histĂłria;
e, como quem de si tinha a vitĂłria,
falando sĂł com ela, assi dezia:-Fermosa e nova espada, se ficaste
sĂł para executares os enganos
de quem te quis deixar, em minha vida,Sabe que tu comigo t’enganaste;
que, para me tirar de tantos danos,
sobeja me a tristeza da partida.
Lancei contentamentos a voar;
Tarde os espero ver, que Ă© seu costume
Ter asas ao fugir, freio ao tornar.
E sou já do que fui tão diferente
Que, quando por meu nome alguém me chama,
Pasmo, quando conheço
Que ainda comigo mesmo me pareço.
Vossos Olhos, Senhora, Que Competem
Vossos olhos, Senhora, que competem
co Sol em fermosura e claridade,
enchem os meus de tal suavidade
que em lágrimas, de vê-los, se derretem.Meus sentidos vencidos se sometem
assi cegos a tanta majestade;
e da triste prisĂŁo, da escuridade,
cheios de medo, por fugir remetem.Mas se nisto me vedes por acerto,
o áspero desprezo com que olhais
torna a espertar a alma enfraquecida.Ă“ gentil cura e estranho desconcerto!
Que fará o favor que vós não dais,
quando o vosso desprezo torna a vida?
Tempo É Já Que Minha Confiança
Tempo é já que minha confiança
se desça de üa falsa opinião;
mas Amor nĂŁo se rege por razĂŁo;
não posso perder, logo, a esperança.A vida, si; que üa áspera mudança
não deixa viver tanto um coração.
E eu na morte tenho a salvação?
Si, mas quem a deseja não a alcança.Forçado é logo que eu espere e viva.
Ah! dura lei de Amor, que nĂŁo consente
quietação nüa alma que é cativa!Se hei de viver, enfim, forçadamente,
para que quero a glĂłria fugitiva
de üa esperança vã que me atormente?
Cegos estão meus olhos, já não vêem
Pois que nĂŁo podem ver meu claro bem.
Quanto Mais vos pago, Mais vos Devo
Quem vĂŞ, Senhora, claro e manifesto
O lindo ser de vossos olhos belos,
Se nĂŁo perder a vista sĂł com vĂŞ-los,
Já não paga o que deve a vosso gesto.Este me parecia preço honesto;
Mas eu, por de vantagem merecĂŞ-los,
Dei mais a vida e alma por querĂŞ-los;
Donde já me não fica mais de resto.Assim que Alma, que vida, que esperança,
E que quanto for meu, Ă© tudo vosso:
Mas de tudo o interesse eu só o levo.Porque é tamanha bem-aventurança
O dar-vos quanto tenho, e quanto posso,
Que quanto mais vos pago, mais vos devo.
Lágrimas de Honesta Piedade e Imortal Contentamento
Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faĂscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas a alva neve.A vista, que em si mesma nĂŁo se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.Jura Amor, que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoidece, se cuida que Ă© verdade.Olhai como Amor gera, em um momento,
De lágrimas de honesta piedade
Lágrimas de imortal contentamento.
Se pena por amar-vos se merece
Se pena por amar-vos se merece,
Quem dela livre está? ou quem isento?
Que alma, que razĂŁo, que entendimento
Em ver-vos se nĂŁo rende e obedece?Que mor glĂłria na vida se oferece
Que ocupar-se em vĂłs o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
Em ver-vos se nĂŁo sente, mas esquece.Mas se merece pena quem amando
ContĂnuo vos está, se vos ofende,
O mundo matareis, que todo é vosso.Em mim, Senhora, podeis ir começando,
Que claro se conhece e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.
Que dias há que na alma me tem posto
Um nĂŁo sei quĂŞ, que nasce nĂŁo sei onde,
Vem nĂŁo sei como, e dĂłi nĂŁo sei porquĂŞ.
Quem viu um olhar seguro, um gesto brando,
Uma suave e angélica excelência,
Que em si está sempre as almas transformando,
Que tivesse contra ela resistĂŞncia?
Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança:
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem (se algum houve) as saudades.O tempo cobre o chĂŁo de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.E afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que nĂŁo se muda já como soĂa.
A Morte, que da vida o nó desata, os nós, que dá o Amor, cortar quisera na Ausência, que é contra ele espada fera, e com o Tempo, que tudo desbarata.
O Céu, A Terra, O Vento Sossegado
O cĂ©u, a terra, o vento sossegado…
As ondas, que se estendem pela areia…
Os peixes, que no mar o sono enfreia…
O nocturno silĂŞncio repousado…O pescador AĂłnio, que, deitado
onde co vento a água se meneia,
chorando, o nome amado em vĂŁo nomeia,
que nĂŁo pode ser mais que nomeado:Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
torna-me a minha Ninfa, que tĂŁo cedo
me fizestes à morte estar sujeita.Ninguém lhe fala; o mar de longe bate;
move-se brandamente o arvoredo;
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
Se as Penas com que Amor TĂŁo Mal me Trata
Se as penas com que Amor tĂŁo mal me trata
Permitirem que eu tanto viva delas,
Que veja escuro o lume das estrelas,
Em cuja vista o meu se acende e mata;E se o tempo, que tudo desbarata,
Secar as frescas rosas, sem colhĂŞ-las,
Deixando a linda cor das tranças belas
Mudada de ouro fino em fina prata;Também, Senhora, então vereis mudado
O pensamento e a aspereza vossa,
Quando não sirva já sua mudança.Ver-vos-eis suspirar por o passado,
Em tempo quando executar-se possa
No vosso arrepender minha vingança.
Amor Ă© fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer