Fado das queixas
P’ra que te queixas de mim
Se eu sou assim
como tu és,
Barco perdido no mar
Que anda a bailarCom as marés?
Tu já sabias
Que eu tinha o queixume
Do mesmo ciúme
Que sempre embalei…
Tu já sabias
Que amava deveras;
Também quem tu eras,
Confesso, não sei!Estribilho:
Não sei
Quem és
Nem quero saber,
Errei
Talvez,
Mas que hei-de fazer?
A tal paixão
Que jamais findará,
– Pura ilusão! –
Ninguém sabe onde está!
Dos dois,
Diz lá
O que mais sofreu!
Diz lá
Que o resto sei eu!P’ra que me queixo eu também
Do teu desdem
Que me queimou
Se é eu queixar-me afinal
Dum temporal
Que já passou?
Tu nem calculas
As mágoas expressas
E a quantas promessas
Calámos a voz!
Tu nem calculas
As bocas que riam
E quantas podiam
Queixar-se de nós!Estribilho
Passagens sobre Mágoa
243 resultadosA um Poeta Morto
Quando a primeira vez a harmonia secreta
De uma lira acordou, gemendo, a terra inteira,
– Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lágrima primeira.E o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe â boca, ansioso, o primeiro queixume:
Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.E na terra, por onde o sonhador passava,
Ia a roxa corola espalhando as sementes:
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lágrimas ardentes.Foi assim que se fez a Via Dolorosa,
A avenida ensombrada e triste da Saudade,
Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos órfãos do carinho e da felicidade.Recalcando no peito os gritos e os soluços,
Tu conheceste bem essa longa avenida,
– Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços,
Para, infeliz, galgar o Calvário da Vida.Teu pé também deixou um sinal neste solo;
Também por este solo arrastaste o teu manto…
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,
Todo mundo então era pérfido, mentiroso e falso? E lágrimas lhe vieram aos olhos, pois choramos sempre a morte das nossas ilusões com a mesma mágoa com que choramos os nossos mortos.
Não nego nada do que fiz, também não tenho arrependimentos ou mágoas: eu não poderia ter agido de outra maneira.
Regenerada
De mãos postas, à luz de frouxos círios
Rezas para as Estrelas do Infinito,
Para os Azuis dos siderais Empíreos
Das Orações o doloroso rito.Todos os mais recônditos martírios,
As angústias mortais, teu lábio aflito
Soluça, em preces de luar e lírios,
Num trêmulo de frases inaudito.Olhos, braços e lábios, mãos e seios,
Presos, d’estranhos, místicos enleios,
Já nas Mágoas estão divinizados.Mas no teu vulto ideal e penitente
Parece haver todo o calor veemente
Da febre antiga de gentis Pecados.
Medo de Casar
Resumo de todos os argumentos a favor e contra o meu casamento:
1. Incapacidade de suportar a vida sozinho, o que não implica incapacidade de viver, pelo contrário; até é improvável que eu saiba viver com alguém, mas sozinho não consigo aguentar o assalto da minha própria vida, as exigências da minha pessoa, os ataques do tempo e da idade, a vaga pressão do desejo de escrever, a insónia, a proximidade da loucura — não consigo aguentar isto só. É claro que junto «talvez» a tudo isto. A relação com F. vai dar à minha existência mais força para resistir.
2. Tudo me faz imediatamente pensar. Todas as piadas no jornal humorístico, o que me lembro de Flaubert e de Grillparzer, as camisas de noite nas camas dos meus pais, ali postas para a noite, o casamento de Max. Ontem a minha irmã disse: «Todas as pessoas casadas (as pessoas que conhecemos) são felizes. Não percebo», esta afirmação também me fez pensar, fiquei outra vez com medo.
3. Tenho de estar só muito tempo. O que consegui fazer foi apenas o resultado de estar só.
4. Odeio tudo o que não se relacione com a literatura,
Elegia do Amor
Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear,
Para fora do povo
Alegre e dos casais,
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar?
Tu levavas, na mão,
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti…
E, além, o sol doirado
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo terno
E doce diluía,
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos…
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia.
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória…
Assim o que partiu
Em frágil caravela,
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.Olhavas para mim,
Às vezes, distraída,
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos…
E eu ficava a sonhar,
Qual névoa adormecida,
Quando o vento também
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim…
Meu corpo rude e bruto
Vibrava,
Tão Conformes na Ventura
Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
Outras tantas de um áspero receio
Salteado Laurénio a cor perdia.Ela, que a Sílvio mais que a si queria,
Para podê-lo ver não tinha meio.
Ora como curara o mal alheio
Quem o seu mal tão mal curar podia?Ele, que viu tão clara esta verdade,
Com soluços dizia (que a espessura
Inclinavam, de mágoa, a piedade):Como pode a desordem da natura
Fazer tão diferentes na vontade
Aos que fez tão conformes na ventura?
O Meu Impossível
Minh’alma ardente é uma fogueira acesa,
É um brasido enorme a crepitar!
Ânsia de procurar sem encontrar
A chama onde queimar uma incerteza!Tudo é vago e incompleto! E o que mais pesa
É nada ser perfeito.É deslumbrar
A noite tormentosa até cegar,
E tudo ser em vão! Deus, que tristeza!…Aos meus irmãos na dor já disse tudo
E não me compreenderam!…Vão e mudo
Foi tudo o que entendi e o que pressinto…Mas se eu pudesse a mágoa que em mim chora
Contar, não a chorava como agora,
Irmãos, não a sentia como a sinto!…
Versos D’um Exilado
Eu vou partir. Na límpida corrente
Rasga o batel o leito d’água fina
– Albatroz deslizando mansamente
Como se fosse vaporosa Ondina.Exilado de ti, oh! Pátria! Ausente
Irei cantar a mágoa peregrina
Como canta o pastor a matutina
Trova d’amor, à luz do sol nascente!Não mais virei talvez e, lá sozinho,
Hei de lembrar-me do meu pátrio ninho,
D’onde levo comigo a nostalgiaE esta lembrança que hoje me quebranta
E que eu levo hoje como a imagem santa
Dos sonhos todos que já tive um dia!
As Sete Penas do Amor Errante
Eu não sei se os teus olhos se gaivotas
mas era o mar e a Índia já perdida
as ilhas e o azul o longe e as rotas
minha vida em pedaços repartida.Eu não sei se o teu rosto se um navio
mas era o Tejo a mágoa a brisa o cais
meu amor a partir-se à beira-rio
em uma nau chamada nunca mais.Eu não sei se os teus dedos se as amarras
mas era algo que partia e que
ficava. Ou talvez cordas de guitarras
ó meu amor de embarque desembarque.Eu não sei se era amor ou se loucura
mas era ainda o verbo descobrir
ó meu amor de risco e de aventura
não sei se Ceuta ou Alcácer Quibir.Eu não sei se era perto se distante
mas era ainda o mar desconhecido
ou Camões a penar por Violante
as sete penas do amor proibido.Eu não sei se ventura se castigo
mas era ainda o sangue e a memória
talvez o último cantar de amigo
amor de perdição amor de glória.
A Um Livro
No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.Estranho livro que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto!…Poeta igual a mim, ai quem me dera
Dizer o que tu dizes!… Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!…
Esta é a Cidade
Esta é a Cidade, e é bela.
Pela ocular da janela
foco o sémen da rua.
Um formigueiro se agita,
se esgueira, freme, crepita,
ziguezagueia e flutua.Freme como a sede bebe
numa avidez de garganta,
como um cavalo se espanta
ou como um ventre concebe.Treme e freme, freme e treme,
friorento voo de libélula
sobre o charco imundo e estreme.
Barco de incógnito leme
cada homem, cada célula.
É como um tecido orgânico
que não seca nem coagula,
que a si mesmo se estimula
e vai, num medido pânico.Aperfeiçoo a focagem.
Olho imagem por imagem
numa comoção crescente.
Enchem-se-me os olhos de água.
Tanto sonho! Tanta mágoa!
Tanta coisa! Tanta gente!
São automóveis, lambretas,
motos, vespas, bicicletas,
carros, carrinhos, carretas,
e gente, sempre mais gente,
gente, gente, gente, gente,
num tumulto permanente
que não cansa nem descança,
um rio que no mar se lança
em caudalosa corrente.Tanto sonho! Tanta esperança!
Tanta mágoa! Tanta gente!
Se Pudesses Estar Comigo Vinte e Quatro horas do Dia
Se pudesses estar comigo durante as vinte e quatro horas do dia, observar cada gesto meu, dormir comigo, comer comigo, trabalhar comigo, tudo isto não poderia ter lugar. Quando me vejo afastado de ti, penso em ti constantemente e isso dá cor a tudo o que eu diga ou faça. Se soubesses o quão fiel te sou! Não apenas fisicamente, mas mentalmente, moralmente, espiritualmente. Aqui não há qualquer tentação para mim, absolutamente nenhuma. Estou imune a Nova Iorque, aos meus velhos amigos, ao passado, a tudo. Pela primeira vez na minha vida, estou completamente centrado em outro ser… Em ti. Sinto-me capaz de dar tudo, sem ter medo de ficar exaurido ou de me ver perdido. Quando ontem escrevi no meu artigo que «se eu nunca tivesse ido para a Europa…», não era a Europa que tinha em mente, mas sim tu.
Mas não posso dizer isso ao mundo num artigo. Tu és a Europa. Pegaste em mim, um homem despedaçado, e tornaste-me completo. E não hei-de desintegrar-me — não existe o menor perigo disso. Mas agora vejo-me mais sensível, mais receptivo a qualquer sinal de perigo. Se te persigo loucamente, se te imploro para ouvires, se fico à tua porta e espero por ti,
Saudade
Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença, em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.À noute qaundo em funda soledade
Minh’alma se recolhe tristemente,
P’ra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.
Stella
A Sebastião Alves
“Eu sou fraca e pequena…”
Tu me disseste um dia,
E em teu lábio sorria
Uma dor tão serena,Que a tua doce pena
Em mim se refletia
– Profundamente fria,
– Amargamente amena!.Mas essa mágoa, Stella,
De golpe tão profundo,
Faz tu por esquece-la –Das vastidões no fundo
– É bem pequena a estrela –
– No entanto – a estrela é um mundo!…
O Verão
Estás no verão,
num fio de repousada água, nos espelhos perdidos sobre
a duna.
Estás em mim,
nas obscuras algas do meu nome e à beira do nome
pensas:
teria sido fogo, teria sido ouro e todavia é pó,
sepultada rosa do desejo, um homem entre as mágoas.
És o esplendor do dia,
os metais incandescentes de cada dia.
Deitas-te no azul onde te contemplo e deitada reconheces
o ardor das maçãs,
as claras noções do pecado.
Ouve a canção dos jovens amantes nas altas colinas dos
meus anos.
Quando me deixas, o sol encerra as suas pérolas, os
rituais que previ.
Uma colmeia explode no sonho, as palmeiras estão em
ti e inclinam-se.
Bebo, na clausura das tuas fontes, uma sede antiquíssima.
Doce e cruel é setembro.
Dolorosamente cego, fechado sobre a tua boca.
Obrigada!
A Nininha Andrade
… E tu rezas por mim! Como agradeço
Essa esmola gentil de teu carinho…
Como as torturas de minh’alma esqueço
Nessa tua oração, floco de arminho!Eu te bendigo, ó santa que estremeço,
Alma tão pura como a flor do linho.
É tua prece à mágoa que padeço
Asa de pomba defendendo um ninho!Reza, criança! Junta as mãos nevadas
E cerra as níveas pálpebras amadas
Sobre os teus olhos como um lindo véu…Depois, nas asas de uma prece ardente,
Deixa cantar minh’alma docemente,
Deixa subir meu coração ao céu!
O prazer visita-nos muitas vezes; mas a mágoa agarra-se cruelmente a nós.
Nome Para Uma Casa
Ossos enxutos de repente as mãos
sobre o repousado peito entrelaçadas
como quem adormeceu
à sombra de uma quieta
e morosa árvore de copa alargada.
Dos olhos direi que abertos
para dentro me parecem
não os verei mais de agitação ansiosa
e húmido afago brandos no seu ferver
de amor avarento agora tão acalmados também
tão de longe observando incrédulos e astuciosos
a escura gente de roda com ladainhas de
abjuradas mágoas.Julgo ouvir a chuva no tépido pinhal
mas pode ser engano
ainda há pouco o vento limpara o céu anoitecido
por entre o sussuro do lamuriado tédio
alguém se aproxima em bicos dos pés
por entre hortências ou dálias
de ambas minha mãe gostavaas ratazanas heréticas perseguem-se no sótão
como no tempo de não sei quando
os estalidos de madeira seca
no tecto antigo que os bichos mastigam aplicadamente
enquanto as velas agónicas se revezam
uma a uma dançando no sereno rosto que dorme
sem precisar de dormir tão perto o rosto e tão ausente
tão da vida agreste aliviado
as pessoas vão repartindo ais estórias lembranças
vão repartindo haveres e contos largos
enquanto no barco do tempo o morto se afasta
solene e majestático mesmo que o medo
o persiga até ao limite das águas.