O Abraço
O abraço. O abraço que parece estar a acabar. O abraço raro, o abraço verdadeiro. Da mĂŁe que recebe o filho, da mulher que recebe o marido, do amigo que recebe o amigo. O abraço que nĂŁo se pensa, que nĂŁo se imagina. O abraço que nĂŁo Ă©; o abraço que tem de ser. O abraço que serve para viver. O abraço que acontece â e que nĂŁo se esquece. Um dia hei-de passar todo o dia a ensinar o abraço. A visitar as escolas e a explicar que abraçar nĂŁo Ă© dois corpos unidos e apertados pelos braços. Abraçar Ă© dois instantes que se fundem por dentro do que une dois corpos. Abraçar Ă© um orgasmo de vida, um clĂmax de partilha â uma orgia de gente. Abraçar Ă© fechar os olhos e abrir a alma, apertar os mĂșsculos e libertar o sonho. Abraçar Ă© fazer de conta que se Ă© herĂłi â e sĂȘ-lo mesmo. Porque nada Ă© mais herĂłico do que um abraço que se deixa ser. Porque nada Ă© mais herĂłico do que ter a coragem de abraçar, em frente do mundo, em frente da dor, em frente do fim, em frente da derrota. Abraçar Ă© a vitĂłria do homem sobre o homem,
Passagens sobre Meninos
264 resultadosA esperança Ă© a Ășltima a morrer. Diz-se. Mas nĂŁo Ă© verdade. A esperança nĂŁo morre por si mesma. A esperança Ă© morta. NĂŁo Ă© um assassĂnio espectacular, nĂŁo sai nos jornais. Ă um processo lento e silencioso que faz esmorecer os coraçÔes, envelhecer os olhos dos meninos e nos ensina a perder crença no futuro.
Ode aos Natais Esquecidos
Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memĂłria
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecĂveis.
Tinha comigo os cĂŁes e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidĂŁo dos quartos,
os cadernos invadidos pĂȘlos saberes inĂșteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava jĂĄ dentro do sono,
no territĂłrio dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingĂvel a clamar pela nossa paciĂȘncia,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma årvore sem nome.Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusÔes também.
Tudo se tornou gélido, esquivo e distante
como a tristeza de um fantasma confrontado
com a beleza da vida para sempre perdida.
Deixaram de me dar presentes e de dizer
que era o Menino Jesus que os trazia
para premiar a minha grandeza de alma,
Vi Jesus Cristo Descer Ă Terra
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer Ă terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e ĂĄrvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda Ă roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustraçÔes.
Nem sequer o deixavam ter pai e mĂŁe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que nĂŁo era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estĂșpida,
Do Aprendiz de Escultor
Existe uma voz na pedra?
LĂĄ no alto daquela pedra
mora um colomi de pedra
chamado Itacolomi.
O colomi, lĂĄ da pedra
me fala: – NĂŁo queiras ouro.
Menino, teu ouro Ă© outro.
Escuta, AntĂŽnio Francisco,
tuas mĂŁos querem lavrar.
Procura tornar mais que ouro
a pedra que te encontrar.Existe voz na madeira?
LĂĄ do alto daquela igreja
vive uma cruz de madeira,
a mais alta que jĂĄ vi.
A cruz, lĂĄ do alto, me fala:
â Escuta, AntĂŽnio Francisco,
nĂŁo te coube em Vila Rica
muita lenha. Coube lenho
e mĂŁos que querem talhar.
Procura tornar madeiro
a madeira que te achar.
arte poética
o poema nĂŁo tem mais que o som do seu sentido,
a letra p nĂŁo Ă© a primeira letra da palavra poema,
o poema Ă© esculpido de sentidos e essa Ă© a sua forma,
poema nĂŁo se lĂȘ poema, lĂȘ-se pĂŁo ou flor, lĂȘ-se erva
fresca e os teus lĂĄbios, lĂȘ-se sorriso estendido em mil
ĂĄrvores ou cĂ©u de punhais, ameaça, lĂȘ-se medo e procura
de cegos, lĂȘ-se mĂŁo de criança ou tu, mĂŁe, que dormes
e me fizeste nascer de ti para ser palavras que nĂŁo
se escrevem, LĂȘ-se paĂs e mar e cĂ©u esquecido e
memĂłria, lĂȘ-se silĂȘncio, sim tantas vezes, poema lĂȘ-se silĂȘncio,
lugar que nĂŁo se diz e que significa, silĂȘncio do teu
olhar doce de menina, silĂȘncio ao domingo entre as conversas,
silĂȘncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silĂȘncio
de ti, pai, que morreste em tudo para sĂł existires nesse poema
calado, quem o pode negar?, que escreves sempre e sempre, em
segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem.
o poema nĂŁo Ă© esta caneta de tinta preta, nĂŁo Ă© esta voz,
H
Sei que dez anos nos separam de pedras
e raĂzes nos ouvidose ver-te, Ăł menina do quarto vermelho,
era ver a tua bondade, o teu olhar terno
de Borboleta no Infinitoe toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço
em que tu eras uma estrela que caiu
e incendiou a terralĂĄ longe numa fonte cheia de fogos-fĂĄtuos.
O Amor Vulgar
Pinta-se o Amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de Jacob, nunca chega Ă idade de uso de razĂŁo. Usar de razĂŁo, e amar, sĂŁo duas coisas que nĂŁo se juntam. A alma de um menino, que vem a ser? Uma vontade com afectos, e um entendimento sem uso. Tal Ă© o amor vulgar. Tudo conquista o amor, quando conquista uma alma; porĂ©m o primeiro rendido Ă© o entendimento. NinguĂ©m teve a vontade febricitante, que nĂŁo tivesse o entendimento frenĂ©tico. O amor deixarĂĄ de variar, se for firme, mas nĂŁo deixarĂĄ de tresvariar, se Ă© amor. Nunca o fogo abrasou a vontade, que o fumo nĂŁo cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração, que nĂŁo houvesse fraqueza no juĂzo. Por isso os mesmos Pintores do Amor lhe vendaram os olhos. E como o primeiro efeito, ou a Ășltima disposição do amor, Ă© cegar o entendimento, daqui vem, que isto que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorĂąncia: e quantas partes tem de ignorĂąncia, tantas lhe faltam de amor. Quem ama, porque conhece, Ă© amante; quem ama, porque ignora, Ă© nĂ©scio. Assim como a ignorĂąncia na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento.
Purinha
O Espirito, a Nuvem, a Sombra, a Chymera,
Que (aonde ainda nĂŁo sei) neste mundo me espera
Aquella que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Sr. Padre me darĂĄ p’ra mim
E a seus pés me dirå, toda corada: Sim!
Ha-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabello em cachos, cachos d’uvas,
E negro como a capa das viuvas…
(Ă maneira o trarĂĄ das virgens de Belem
Que a Nossa Senhora ficava tĂŁo bem!)
E serĂĄ uma espada a sua mĂŁo,
E branca como a neve do MarĂŁo,
E seus dedos serĂŁo como punhaes,
Fuzos de prata onde fiarei meus ais!
E os seus seios serĂŁo como dois ninhos,
E seus sonhos serĂŁo os passarinhos,
E serĂĄ sua bocca uma romĂŁ,
Seus olhos duas Estrellinhas da ManhĂŁ!
Seu corpo ligeiro, tĂŁo leve, tĂŁo leve,
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de suppor estar a ver, ao vel-a,
Cabrinhas montezas da Serra da Estrella…
E ha-de ser natural como as hervas dos montes
E as rolas das serras e as agoas das fontes…
Em Cruz nĂŁo Era Acabado
As crianças viravam as folhas
dos dias enevoados
e da pĂĄgina do Natal
nasciam os montes prateadosda infùncia. Intérmina, a mãe
fazia o bolo unido e quente
da noite na boca das crianças
acordadas de repente.Torres e ovelhas de barro
que do armĂĄrio saĂam
para formar a cidade
onde o menino nascia.Menino pronunciado
como uma palavra vagarosa
que terminava numa cruz
e começava numa rosa.Natal bordado por tias
que teciam com seus dedos
estradas que entĂŁo havia
para a capital dos brinquedos.E as crianças com a tinta invisĂvel
do medo de serem futuro
escreviam os seus pedidos
no muro que dava para o impossĂvel,chĂŁo de estrelas onde dançavam
a sua louca identidade
de serem no dicionĂĄrio
da dor futura: saudade.
Terra – 24
AntĂłnio, Ă© preciso partir!
o moleiro nĂŁo fia,
a terra é estéril,
a arca vazia,
o gado minga e se fina!
AntĂłnio, Ă© preciso partir!
A enxada sem uso,
o arado enferruja,
o menino quere o pĂŁo; a tua casa Ă© fria!
Ă preciso emigrar!
O vento anda como doido â levarĂĄ o azeite;
a chuva desaba noite e dia â inundarĂĄ tudo;
e o lar vazio,
o gado definhando sem pasto,
a morte e o frio por todo o lado,
sĂł a morte, a fome e o frio por todo o lado, AntĂłnio!
Ă preciso embarcar!
BadalĂŁo! BadalĂŁo! â o sino
jĂĄ entoa a despedida.
Os juros crescem;
o dinheiro e o rico nĂŁo tĂȘm coração.
E as décimas, António?
NinguĂ©m perdoa â que mais para vender?
Foi-se o cordĂŁo,
foram-se os brincos,
foi-se tudo!
A fome espia o teu lar.
Para quĂȘ lutar com a secura da terra,
com a indiferença do céu,
com tudo, com a morte, com a fome, coma a terra,
com tudo!
Ărida,
Imagens sĂŁo adonde Amor se Adora
Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juĂzo sossegado,
Se o Menino, que de olhos Ă© privado,
Nas Meninas dos vossos olhos mora?Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que vivo lume, e o rosto delicado,
Imagens sĂŁo adonde Amor se adora.Quem vĂȘ que em branca neve nascem rosas
Que crespos fios de ouro vĂŁo cercando?
Se por entre esta luz a vista passa,Raios de ouro verĂĄ, que as duvidosas
Almas estĂŁo no peito traspassando,
Assim como um cristal o Sol traspassa.
Os Sinos
1
Os sinos tocam a noivado,
No Ar lavado!
Os sinos tocam, no Ar lavado,
A noivado!Que linda criança que assoma na rua!
Que linda, a andar!
Em extasi, o povo commenta que Ă© a Lua,
Que vem a andar…Tambem, algum dia, o povo na rua,
Quando eu cazar,
Ao ver minha noiva, dirĂĄ que Ă© a Lua
Que vae cazar…2
E o sino toca a baptizado
Que lindo fado?
E o sino toca um lindo fado,
A baptizado!E banham o anjinho na agoa de neve,
Para o lavar,
E banham o anjinho na agoa de neve,
Para o sujar.Ă boa madrinha, que o enxugas de leve,
Tem dĂł d’esses gritos! Comprehende esses ais:
Antes o enxugue a Velha! antes Deus t’o leve!
NĂŁo soffre mais…3
Os sinos dobram por anjinho,
Coitadinho!
Os sinos dobram, coitadinho…
Pelo anjinho!Que aceiada que vae p’ra cova!
Olhae! olhae!
Sapatinhos de sola nova,
Olhae!
Mentir é uma falta do menino, uma arte do amante, um aperfeiçoamento do solteiro e uma segunda natureza do marido.
O que se Passa na Cama
O que se passa na cama
Ă© segredo de quem ama.Ă segredo de quem ama
nĂŁo conhecer pela rama
gozo que seja profundo,
elaborado na terra
e tĂŁo fora deste mundo
que o corpo, encontrando o corpo
e por ele navegando,
atinge a paz de outro horto,
noutro mundo: paz de morto,
nirvana, sono do pénis.Ai, cama, canção de cuna,
dorme, menina, nanana,
dorme a onça suçuarana,
dorme a cĂąndida vagina,
dorme a Ășltima sirena
ou a penĂșltima… O pĂ©nis
dorme, puma, americana
fera exausta. Dorme, fulva
grinalda de tua vulva.
E silenciem os que amam,
entre lençol e cortina
ainda hĂșmidos de sĂ©men,
estes segredos de cama.
Os Sinais
Saibam quantos vivem
neste mundo imenso:
Deus nĂŁo cheira a incenso.
Ă no estrume fresco
e na alga viscosa
que devemos ver
os sinais divinos
com os olhos de quando
éramos meninos.
A flor com que a menina sonha estĂĄ no sonho? Ou na fronha? A lua com que a menina sonha Ă© o lindo do sonho ou a lua da fronha?
O Ideal PortuguĂȘs como Ideal para o Mundo
TrĂȘs pontos, segundo CamĂ”es, sobre os quais temos que meditar, e ver como Ă©. Ponto nĂșmero 1: Ă© preciso que os corpos se apaziguem para que a cabeça possa estar livre para entender o mundo Ă volta. Enquanto nĂłs estamos perturbados com existir um corpo que temos que alimentar, temos que fartar, que temos de tratar o melhor possĂvel, cometendo para isso muitas coisas extremamente difĂceis, nessa altura, quando a nossa cabeça estiver inteiramente livre e lĂmpida, nĂłs podemos ouvir aquilo que CamĂ”es chama «a voz da deusa». E que faz a voz da deusa? Arranca Ă queles marinheiros as limitaçÔes do tempo e as limitaçÔes do espaço. Arranca-os Ă s limitaçÔes do tempo o que faz que eles saibam qual vai ser o futuro de Portugal. E arranca-os Ă s limitaçÔes do espaço porque eles vĂȘem todo o mundo ao longe, o universo que estĂĄ ao longe, a deusa lho mostra, embora com o sistema errado, digamos assim, ou imperfeito, de Ptolomeu, e eles estĂŁo portanto inteiramente fora do espaço. Aquilo que foi o ideal dos gregos, e que os gregos nunca conseguiram realizar. EntĂŁo o que Ă© que aconteceu? Aconteceu que um dia houve outro portuguĂȘs que tinha ido para o Brasil,
Delirio
NĂŁo posso crĂȘr na morte do Menino!
E julgo ouvi-lo e vĂȘ-lo, a cada passo…
Ă ele? NĂŁo. Sou eu que desatino;
à a minha dÎr soffrida, o meu cansaço.Delirio que me prendes num abraço,
EmendarĂĄs a obra do Destino?
VĂȘ-lo-ei sorrir, de novo, no regaço
Da mĂŁe? Verei seu rosto pequenino?Misterio! Sombra imensa! Alto segredo!
Jamais! jamais! Quem sabe? Tenho mĂȘdo!
Que vejo em mim? A treva? a luz futura?Ah, que a dĂŽr infinita de o perder
Seja a alegria de o tornar a ver,
Meu Deus, embora noutra creatura!
à Tranças De Que Amor PrisÔes Me Tece
à tranças de que Amor prisÔes me tece,
Ă mĂŁos de neve, que regeis meu fado!
à tesouro! à mistério! à par sagrado,
Onde o menino alĂgero adormece!Ă ledos olhos, cuja luz parece
TĂȘnue raio de sol! Ă gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!Ă lĂĄbios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcĂssimos favores
Talvez o prĂłprio JĂșpiter suspira!Ă perfeiçÔes! Ă dons encantadores!
De quem sois? Sois de VĂȘnus? – Ă mentira;
Sois de MarĂlia, sois dos meus amores.