Gazel da Paciente Espera
Para Regina Célia Colónia
Quanto te esperei
nas portas do dia
e te esperei
quando a terra nascia:
o espírito metáfora
boiava.E te esperava
mas nenhuma nebulosa
te envolvia e nenhum
peixe era tu e nenhuma
circular água apascentava
esta maternidade.Te esperava
e o dia voltava
e vinha
e nas portas
o relógio de sinais
rangia.E te esperava,
ave lua
ovelha de tuas mãos
a noite.
Te esperava
porque as palavras
as palavras
batem à porta
e se abrem.E te esperarei
a vida repleta
e a morte.Depois na eternidade
recomeço.
Passagens sobre Metáforas
54 resultadosOs deuses são as nossas metáforas, e as nossas metáforas são os nossos pensamentos.
Vida Toda Linguagem
Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjectivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjectivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará — oh metáfora activa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sémen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cintilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajectórias.
Vida toda linguagem —
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra
[a chuva,
tenta fazê-la eterna — como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.
A um Jovem Poeta
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode serque em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheçascomo diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.
A ciência é toda uma metáfora.
As Descrições dos Romances
Jean-Paul Sartre: De um modo geral, aliás, já não sei muito bem porque se escrevem romances. Queria falar do que pensei ser a literatura e além disso do que abandonei.
Simone de Beauvoir: Fale; é muito interessante
Jean-Paul Sartre: Ao princípio, pensava que a literatura era o romance. Dissemo-lo.
Simone de Beauvoir: Sim, uma narrativa, e ao mesmo tempo via-se o mundo através. Isto dá qualquer coisa que nenhum ensaio sociológico, nenhuma estatística, pode dar.
Jean-Paul Sartre: Dá o individual, dá o pessoal, dá o particular. Um romance dará esta sala, por exemplo, a cor dessa parede, desses cortinados, da janela, e só ele o pode dar. E foi do que eu gostei, os objectos serem nomeados e muito próximos no seu carácter individual. Eu sabia que todos os sítios descritos existiam ou tinham existido, que por conseguinte era mesmo a verdade.
Simone de Beauvoir: Embora você não gostasse muito das descrições literárias. Nos seus romances há descrições, de vez em quando, mas sempre muito ligadas à acção, à maneira como as pessoas as vêem.
Jean-Paul Sartre: E breves.
Simone de Beauvoir: Sim. Uma pequena metáfora, três palavrinhas para indicar qualquer coisa, não verdadeiramente uma descrição.
Ter Razão é uma Questão de Explicações
Havia que ser um fanático para querer ter sempre razão. Ter razão era sobretudo uma questão de explicações. O homem intelectual tornara-se uma criatura explicativa. Toda a gente explicava, os pais aos filhos, os maridos às mulheres, os conferencistas ao seu público, os especialistas aos leigos, os colegas aos colegas, os médicos aos pacientes, o homem à sua alma. A génese disto, a causa daquilo, as origens dos acontecimentos, a história, a estrutura, as razões pelas quais. Na maior parte dos casos, a explicação entrava por um ouvido e saía pelo outro. A alma desejava o que desejava. Tinha o seu próprio saber natural. A infeliz poisava, pobre avezinha, sobre superstruturas de explicação, sem saber para onde levantar voo.
(…) Era um afã holandês, pensou Sammler, sempre a dar à bomba para manter enxutos alguns hectares de terra. O mar invasor era uma metáfora da multiplicação dos factos e das sensações; quanto à terra, era uma terra de ideias.
. Sammler’
Sociedade Cíclica
Um dos primeiros erros do mundo moderno é presumir, profunda e tacitamente, que as coisas passadas se tornaram impossíveis. Eis uma metáfora pela qual os modernos são apaixonados; sempre dizem: «Não se pode atrasar o pêndulo». A resposta é clara e simples: «Pode-se sim». Um pêndulo, que é um objecto construído pelo homem, pode ser modificado por um dedo humano a qualquer hora. Assim, a sociedade, que é um objecto de construção humana, pode ser reconstituído sob qualquer forma já experimentada.
A Importância de Aprender várias Línguas
Pessoas com poucas capacidades não conseguirão realmente assimilar com facilidade uma língua estrangeira: embora aprendam as suas palavras, empregam-nas apenas no significado do equivalente aproximado da sua língua materna e continuam a manter as construções e frases próprias desta última. Com efeito, esses indivíduos não conseguem assimilar o espírito da língua estrangeira, que depende essencialmente do facto do seu pensamento não se dar por meios próprios, mas, em grande parte, de ser emprestado pela língua materna, cujas frases e locuções habituais substituem os seus próprios pensamentos. Eis, portanto, a razão de eles sempre se servirem, também na própria língua, de expressões idiomáticas desgastadas, combinando-as de modo tão inábil, que logo se percebe quão pouco se dão conta do seu significado e quão pouco todo o seu pensamento supera as palavras, de modo que tudo se reduz a um palratório de papagaios. Pela razão oposta, a originalidade das locuções e a adequação individual de cada expressão usada por alguém são o sintoma inequivocável de um espírito preponderante.
Por conseguinte, de tudo isso resultam os seguintes factores: no aprendizado de toda a língua estrangeira, são formados novos conceitos para dar significado a novos signos; certos conceitos separam-se uns dos outros, enquanto antes constituíam juntos um conceito mais amplo e,
O homem é um ser que se criou a si próprio ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si próprio.
Profissão De Fé
Meu verso quero enxuto mas sonoro
levando na cantiga essa alegria
colhida no compasso que decoro
com pés de vento soltos na harmonia.Na dança das palavras me enamoro
prossigo passional na melodia
amante da metáfora em meus poros
já vou vagando em vasta arritmia .No vôo aliterado sigo o rumo
dos mares mais remotos navegados
e em faias de catraias me consumo.É meu rito subscrito e bem firmado
sem o temor do velho e seu resumo
num eterno retorno renovado.
O zero é a maior metáfora. O infinito a maior analogia. A existência o maior símbolo.
A Mais Perfeita Imagem
Se eu varresse todas as manhãs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chão
que lhes dá casa, teria uma metáfora perfeita para
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhãs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparência
que o nada representa, veria que o arbusto não passa
de um inferno, ausente o decassílabo da chama.
Se todas as manhãs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusão, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosódia incerta e
descontínua que foge ao meu comum. O devagar do
vento, a erosão. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, não é daqui, mas se emprestou
a um neurônio meu, unia memória que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerária.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.
Carta à Minha Filha
Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas – é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
Se Eu Nunca Disse
Se eu nunca disse que os teus dentes
São pérolas,
É porque são dentes.
Se eu nunca disse que os teus lábios
São corais,
É porque são lábios.
Se eu nunca disse que os teus olhos
São d’ónix, ou esmeralda, ou safira,
É porque são olhos.
Pérolas e ónix e corais são coisas,
E coisas não sublimam coisas.
Eu, se algum dia com lugares-comuns
Houvesse de louvar-te,
Decerto que buscava na poesia,
Na paisagem, na música,
Imagens transcendentes
Dos olhos e dos lábios e dos dentes.
Mas crê, sinceramente crê,
Que todas as metáforas são pouco
Para dizer o que eu vejo.
E vejo lábios, olhos, dentes.
Um credo é uma metáfora fossilizada.
Caim e Abel são também uma metáfora: são os dois rostos de cada um de nós. A Bíblia repete-o continuamente: o nosso coração está em permanente conflito.
A força da metáfora mais poderosa que já existiu até aqui não passa de miséria e bagatela ao lado deste retorno da língua à natureza da expressão figurada.
As Palavras de Adeus
A realidade é maior que a verdade meu amor
somos mais do que o sol e do que o mar e
em nenhuma metáfora cabemos
mesmo quando dizemos eu
sou a música tu és o luarcom cadeias de ferro nos unimos
em nosso nome jurámos
pelas cascas dos frutos bebemos
de mel silvestre nos alimentámosmas de fora sempre ficou
algo que nos próprios sentimentos já não coube
e um gosto que indicou algo
que a boca já dizer não soubeentre as coisas as palavras e a sua mudez
paira a irrealidade de
que nos fizemos
nem uma só vez foram verdade as
palavras de adeus que nos dissemos
Por mais que a vida tenha um sentido, só conhece o combate eterno que os deuses travam entre si, ou, evitando a metáfora, só conhece a incompatibilidade dos pontos de vista últimos possíveis, a impossibilidade de regular os seus conflitos e portanto a necessidade de se decidir a favor de um ou de outro.