Não confies em homem que não sabe mentir.
Passagens de Mia Couto
388 resultadosNascemos e choramos. A nossa língua materna não é a palavra. O choro é o nosso primeiro idioma.
Há mulheres que procuram um homem que lhes abra o mundo. Outras buscam um que as tire do mundo. A maior parte, porém, acaba por se unir a alguém que lhes tira o mundo.
O destino o que é senão um embriagado conduzido por um cego?
Eis a armadilha da glória: quanto maior for a vitória, mais o herói será perseguido e cercado pelo passado. Esse passado devorará o presente. Nào importa quantas condecorações recebeu ou venha a receber: a única medalha que, no final, lhe irá sobrar é a triste e fatal solidão.
O culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade.
O que me move é a vocação divina da palavra, que não apenas nomeia mas que inventa e produz encantamento.
O respirar dos adormecidos é um ruído que inquieta. Como se neles soasse uma outra alma.
Diz o Meu Nome
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem
[os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteçaPorque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contornoPorque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venciPorque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativosNo húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
Os nossos endinheirados dão uma imagem infantil de quem somos. Parecem crianças que entraram numa loja de rebuçados. Derretem-se perante o fascínio de uns bens de ostentação. Servem-se do erário público como se fosse a sua panela pessoal. Envergonha-nos a sua arrogância, a sua falta de cultura, o seu desprezo pelo povo, a sua atitude elitista para com a pobreza.
A Armadilha da Realidade
Uma das primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de «realidade». Falo, é claro, da ideia de realidade que actua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse recinto que uns chamam de «razão», outros de «bom-senso». A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado real para ser verdadeira. Nós não temos sempre que a levar tão a sério.
Quando Ho Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: «Eu desvalorizei as paredes.» Essa lição se converteu num lema da minha conduta.
Ho Chi Minh ensinou a si próprio a ler para além dos muros da prisão. Ensinar a ler é sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentidos visíveis e invisíveis. E ensinar a pensar no sentido original da palavra «pensar» que significava «curar» ou «tratar» um ferimento. Temos de repensar o mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescrições médicas é mantermos a habilidade da transcendência, recusando ficar pelo que é imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado inquietação crítica.
Vou contar a estória. Nem isso, pedaços da estória. Pedaços rasgados como as nossas vidas. Juntamos os bocados, mas nunca completa.
Os pobres não sentem o seu próprio cheiro. Não é a magreza mas o olfacto que distingue os miseráveis dos mais ricos.
Vivemos hoje uma atabalhoada preocupação em exibirmos falsos sinais de riqueza. Criou-se a ideia de que o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais pobres.
O coração de um homem ou de uma mulher não obedece a imperativos de consciência. Ninguém namora por dever.
Nenhum sonho se pode contar. Seria preciso uma língua sonhada para que o devaneio fosse transmissível. Não há essa ponte. Um sonho só pode ser contado num outro sonho.
As palavras que movem e que constituem perigo são as palavras que não podem ser ditas em nenhuma língua: as palavras dos sonhos. (…) Quando não se fecha uma estória, a multidão fica contaminada pela doença de sonhar.
É que em todo o lado, mesmo no invisível, há uma porta. Longe ou perto, não somos donos, mas simples convidados. A vida, por respeito, requer licença.
Em tempos de guerra filhos são um peso que atrapalha muito.
Podemos ser diversas coisas. O erro é quando queremos ser apenas uma. O erro é quando queremos negar que somos diversas coisas ao mesmo tempo.