Passagens de Mia Couto

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Rirmos juntos é melhor do que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso.

Qual é a responsabilidade do escritor para com a democracia e com os direitos humanos? É toda. Porque o compromisso maior do escritor é com a verdade e com a liberdade. Para combater pela verdade o escritor usa uma inverdade: a literatura. Mas é uma mentira que não mente.

A gente ama alguém que desconhece, casa com quem conhece e vive com uma pessoa irreconhecível. Às vezes, temos luas-de-mel, outras vezes, luas melosas. A maior parte do tempo, porém, são noites sem luar nenhum.

Para nós, africanos, o Tempo é todo nosso. O branco tem o relógio, nós temos o Tempo.

No conto (como em qualquer outro género literário) o mais importante não é o seu conteúdo literário mas a forma como ele nos comove e nos ensina a entender não através do raciocínio mas do sentimento (será que existem estas categorias, assim separadas?).

Versos para a Patrícia

1. Ilha

Tenho a sede das ilhas
e esquece-me ser terra

Meu amor, aconchega-me
meu amor, mareja-me

Depois, não
me ensines a estrada.

A intenção da água é o mar
a intenção de mim és tu.

2. Véspera

Há um perfume
que trabalha em mim
e me acende,
antigo,
sobre a poeira

Há um rosto
que regressa à fonte
água readormecendo

E só hoje reparo
o labor das nuvens
corais solares
arquitectando o céu

Pássaros brancos
vão pousando
na varanda dos teus olhos

Só hoje enfrento o sol
fogo imóvel,
labareda de água

Andemos, meu amor,
de coração descalço sobre o sol

A arrogância da espécie humana coexiste com um sentimento contraditório de desprotecção total. Nos dias de hoje, todas as nações, mesmo as mais poderosas, estremecem nas mãos de algo que nos escapa, um destino cego, um horizonte enevoado. De súbito, o Homem redescobre a sua fragilidade, a sua infinita solidão.

O único segredo, a única sabedoria é sermos verdadeiros, não termos medo de partilhar publicamente as nossas fragilidades.

O que faz a lágrima? A lágrima nos universa, nela regressamos ao primeiro início.

Os espíritos não vêm de nenhum lugar. São como a água: estão dentro de nós.

A boca é grande e os olhos são pequenos. Ou como se diz aqui: o burro come espinhos com a sua língua suave.

A cidade não é um lugar. É a moldura de uma vida. A moldura à procura de retrato, é isso que eu vejo quando revisito o meu lugar de nascimento. Não são ruas, não são casas. O que revejo é um tempo, o que escuto é a fala desse tempo. Um dialecto chamado memória, numa nação chamada infância.

Nenhum homem é distante. Todo o homem se torna próximo na luta a favor da humanidade.

Na aldeia, até as plantas tinham garras. Tudo o que é vivo, em Kulumani, está treinado para morder. As aves abocanham o céu, os ramos rasgam as nuvens, a chuva morde a terra, os mortos usam os dentes para se vingarem do destino.