Passagens de Miguel Esteves Cardoso

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Havendo amor, tudo se torna num prazer ou numa preparação para ele. Fazermos as coisas juntos torna-se numa extensão de fazermos amor.

Como é que se Esquece Alguém que se Ama?

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa – como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração.

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A única coisa é a vida. A única coisa é a vida de cada um. Sem vida, nada feito. Viver não é a melhor coisa que há: é a única coisa. Cada momento da vida não é único. Mas há momentos únicos. A nossa felicidade não é passá-los como quisermos. É dar por ela a aproveitá-los.

Porque é que precisamos de inimigos? Para que haja quem não goste de nós. É saudável. Reduz-nos ao nosso tamanho natural. Mantém o nosso ego dentro das proporções desejáveis.

Buscam-se as consolações onde se acham, conforme se vão encontrando. É um ditado irlandês ou uma fórmula católica; já não sei dizer. Também não me lembro quem foi o grande pessimista que, quando lhe perguntaram, já velho, se havia alguma coisa que ajudava a suportar o peso e a amargura da vida, respondeu que não, que não havia – que só restava a consolação da música.

O ser humano, por natureza, prefere o passado ao futuro ou vice-versa, sempre à custa do presente. Tanto a ideia que as coisas vão melhorar (não podem piorar mais) como a ideia que não vão piorar (é triste ficar na mesma).

O amor é um processo contínuo de conhecimento e aceitação. Não é um arrebatamento. Não é uma loucura. É um acto de inteligência, de curiosidade e de carinho sem fim. Não pode amar, nem ser devidamente amado, quem não pode suportar a verdade ou for incapaz de resignação.

Pode ser-se giro e inteligente ao mesmo tempo e é por saber e exigir isso que as raparigas são mais inteligentes que os rapazes. A ideia de que «ou se é giro ou se é inteligente», «ou se é desportista ou se é intelectual» é tipicamente uma ideia de rapaz.

Os rapazes não andam à procura de uma rapariga ideal. Aliás, para falar verdade, o ideal de um rapaz é ter uma data de raparigas à procura dele. E quanto menos ideais, melhor. É por isso que os rapazes são mais estúpidos que as raparigas.

Alguém que tenha a coragem de ter mão em nós. A democracia liberal é obviamente o único sistema político que é aceitável, tem inúmeras qualidades, mas também são inumeráveis os defeitos. É, na verdade, a expressão institucional do ser humano. O pior é que os seres humanos, fora algumas excepções, são fracos, volúveis, egoístas, vaidosos, influenciáveis e maus.

Maior que qualquer esperança, mais poderoso que todos os sonhos, é a felicidade de querer que as coisas se mantenham como estão. Como quem tem a certeza que não podem melhorar – por muito más que estejam. É essa a essência absoluta de amar.

As pessoas podem fazer o que quiserem, mas ninguém liga ao que elas fazem. Para os portugueses só interessa a cara que têm. Pode ser-se arquitecto mas se calha ter «cara de quem nunca fez um desenho na vida» está lixado. Pode nunca ter provado uma pinga de vinho na vida mas se alguém afirma que é alcoólico e há outro que diz «Tem cara disso…» pode considerar-se bêbado para todos os efeitos. Pode ser a pessoa mais amistosa e gregária do mundo, mas se tem «cara de pouco amigos» toda a gente foge dele.

Quando se usam palavrões sem ser com o sentido concreto que têm, é como se estivéssemos a desinfectá-los, a torná-los decentes, a recuperá-los para o convívio familiar.

É dificílimo ser certinho. Qualquer palerma consegue ser um doidivanas que faz tudo o que lhe vem à cabeça. Qualquer trinca-tortas pode ser «imprevisível». Desde quando é que houve o mínimo custo em ser «irresponsável». Ser desorganizado não tem graça nem mérito. É estar inacabado.

O Meu Amor

[Citações da entrevista do jornal Público a Miguel Esteves Cardoso (MEC) e Maria João Pinheiro (MJ), no dia 21 de Abril de 2013]

MEC – Ela é sempre maravilhosa. Vivia muito desconfiado nos, sei lá, nos primeiros meses e anos. Desconfiava de que ela tivesse uma Maria João verdadeira que não fosse assim mágica. Que fosse prática e muito diferente. Que houvesse – há sempre – uma pessoa escondida dentro dela. Mas não. Não há.
(…)
MJ – O Miguel é uma pessoa. Uma pessoa maravilhosa. Um tesouro.
(…)
MJ – Foi conhecer a pessoa mais generosa, perfeita, bondosa. A alma mais pura.
MEC – Devíamos dar mais entrevistas. Eu nunca ouço isto. Estou inchado. Se achavas isso antes, por que é que não disseste?
(…)
MEC – Sim. E fiquei como nunca fiquei antes. Fiquei assim toinggg. Parecia extremamente feliz. E eu: «Ah!!» E luminosa. Risonha. Como se fosse um prémio. Sabe?, um prémio. «Aqui está a tua sorte.» Senti uma ausência de dúvida. Eh pá. Só queria que fosse minha.
(…)
MEC – É a mulher mais bonita que alguma vez vi. Era linda de morrer e podia ser uma víbora.

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Como Provar a Vida

Com a idade, como castigo dos excessos da juventude mas também como consolação, começa-se a provar as coisas que dantes se consumiam sem pensar. Até quase morrer de uma hepatite alcóolica eu bebia «whiskey» como se fosse água: o «uisce beatha» gaélico; a água da vida. Agora, com o fígado restaurado por anos de abstinência, apenas provo.
Suspeito que seja assim com todos os prazeres – até o de acordar bem disposto ou passar um dia sem dores ou respirar como se quer ou não precisar de mais ninguém para funcionar. Parecem prazeres pequenos quando ainda temos prazeres maiores com os quais podemos compará-los. Mas tornam-se prazeres enormes quando são os únicos de que somos capazes.
Sei que a última felicidade de todos nós será repararmos no último momento em que conseguimos provar a vida que vivemos e achá-la – não tanto apesar como por causa de tudo – boa.

Portugal está a tornar-se europeu. Em vez de se tornar europeu pelo lado bom e difícil – cuidando dos doentes, dos velhos e dos estudantes – está a tornar-se europeu da maneira mais estúpida e mais fácil. Está a ficar snob e xenófobo, como o Reino Unido, a França e a Itália.

Se Deus existe, é para responder quando mais ninguém nos pode responder. Mas não responde a orações nem a pedidos – responde Existindo. Responde como destino. É a posta-restante das nossas almas aflitas. “Ao menos que alguém me ouça…”.

O amor não é um fim nem um meio – é uma condição. É por isso que o verbo “amar” é o que mais se parece com “encontrar”.