Soneto XIX
Qual mísera Calisto, quando atenta
Que abrindo o dia vão ao largo estanho
As mais estrelas a seu doce banho,
Só com seu Plaustro só ficar lamenta,Tal, quando me a memória representa
Banharem-se outros nesse mar estranho,
De graças mil gosando bem tamanho,
A falta dessa glória me atormenta.E como inda que irada Juno a tolha
Decer ao mar, não deixa em noite clara
Ferir nele seus raios do alto assento,Assi, por mais que a sorte em tudo avara
Para si deste corpo a parte escolha,
Livre, porém, me fica o pensamento.
Passagens sobre Mil
475 resultadosAs Atracções Inferiores
Faz pena. A gente elege entre trinta mil almas meia dúzia de indivíduos para conviver, e, afinal, chega perto deles a defender uma pureza política, uma pureza profissional, uma pureza sexual, e caem sobre nós mil argumentos dum pragmatismo dúbio, suspeito, que confrange. Longe de se receber estímulo para combater as tentações, encontra-se um escorregadoiro conivente para o abismo delas. — É o meio — repito de cada vez, a tentar iludir-me. Mas é inútil vendar o olhos. Até o meio geográfico se pode vencer, quanto mais o meio social. Na luta contra as atracções inferiores do ambiente humano é que está precisamente a beleza duma vida. O meio! Eles é que são o meio, assim perdidos, duplos, comprometidos com a podridão até à raiz.
Timidez
Eu sei que é sempre assim, – longe dela imagino
mil versos que não fiz mas que ainda hei de compor,
perto dela, – meu Deus!… lembro mais um menino
que esquecesse a lição diante do professor…Penso, que a minha voz terá sons de violino
enchendo os seus ouvidos de canções de amor,
– e hei de deixá-la tonta ao vinho doce e fino
dos meus beijos, no instante em que minha ela for…Ao seu lado, no entanto, encabulado, emudeço,
e se os seus lábios frios, trêmulos, se calam,
eu, de tudo, das cousas, de mim mesmo, esqueço…E ficamos assim, ela em silêncio… eu, mudo…
Mas meus olhos, nem sei… ah! Quantas cousas falam!
e seus olhos, seus olhos!… dizem tudo, tudo!
A Miséria do Divertimento
Se o homem fosse feliz, sê-lo-ia tanto mais quanto menos divertido, como os Santos e Deus. – Sim; mas não sendo feliz pode animar-se pelo divertimento? – Não; porque vem doutro sítio e de fora; e assim é dependente e, portanto, sujeito a ser perturbado por mil acidentes que tornam as aflições inevitáveis.
(…) A única coisa que nos consola das nossas misérias é o divertimento, e contudo é a maior das nossas misérias. Porque é isto que nos impede principalmente de pensar em nós, e que nos faz perder insensivelmente. Sem isso, estaríamos no tédio, e este tédio levava-nos a procurar um meio mais sólido de sair dele. Mas o divertimento distrai-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.
Ages Impelido por Mil Coisas
Dizes-te livre e todos os dias ages impelido por mil coisas. Vês uma mulher e ama-la, morres de amor por ela; serás livre de acalmar esse sangue que pulsa, de serenar essa cabeça ardente, de refrear esse coração, de aplacar esses ardores que te devoram? Serás livre de pensar? Mil cadeias te retêm, mil aguilhões te impelem, mil entraves te fazem parar. Vês um homem pela primeira vez, há um dos seus traços que te choca, e durante a tua vida sentes aversão por esse homem, que talvez tivesses amado se tivesse o nariz mais pequeno. Tens mau estômago, e és brutal para com aquele que terias acolhido com benevolência. E de todos estes factos derivam, ou neles se encadeiam, também fatalmente, outras séries de factos, de que outros derivam por sua vez.
Um homem é capaz de gastar um milhão de moedas para casar uma filha, mas não sabe gastar cem mil para instruí-la.
A martelada do mestre vale por mil dos operários.
A Evidência da Morte
Às vezes ponho-me a pensar se a aceitação calma da morte no homem da terra não será o resultado desta íntima comunhão com o ritmo da natureza. No inverno, árvores despidas; na primavera, folhas e flores; no verão, frutos. No inverno seguinte, árvores despidas; na primavera, folhas e flores; no verão, frutos. No inverno a seguir… Eu bem sei que o homem da cidade tem por sua vez mil maneiras de notar este eterno retorno da vida e da morte. Parece-me é que ali a coisa não tem esta nitidez, esta evidência, esta fatalidade.
Preciso de Ti
Antes de começar… Acabei de suplicar dez minutos para este bilhete… Terrivelmente, terrivelmente vivo, dorido, e sentindo absolutamente que preciso de ti. Permiti o silêncio deliberadamente, sentindo uma grande necessidade de me retirar em mim mesmo, para escrever, e mil coisas prevalecendo.
Mudei para outra máquina, assustadora; a máquina francesa… maldita, e eu bêbedo com o desejo de te escrever. Ouve, ligo-te de manhã: esta noite ou escrevo ou rebento, mas tenho de te ver. Vejo-te brilhante e maravilhosa e ao mesmo tempo tenho estado a escrever à June e todo dividido mas tu compreenderás — tens de compreender. Vou atirar-me a uma pausa e faço uma chamada. Anais, apoia-me. Não deixes que os silêncios te preocupem: estás toda à minha volta como uma chama clara. Nada a não ser dois pontos, não encontro o ponto nem os apóstrofos. Nenhuma cópia disto também: óptimo: bêbedo… bêbedo de vida… Anais, por Cristo: se tu soubesses o que estou a sentir agora.
Isto foi [escrito] ao chegar [ao escritório]. Agora 3h20 da manhã no quarto do Fred… Toda a força desaparecida e destruída por imagens. O Fred está na cama com a Gaby do chambre 48. Está deitada como um cadáver.
Uma viagem de mil léguas começou com o primeiro passo.
Deixar Sempre as Coisas a Meio
A grandeza, o verdadeiro luxo, está nessa displicência algo aristocrática, não na pior aceção da palavra, de deixar sempre as coisas a meio: esse copo de conhaque que se abandona na varanda do bar, as moedas que nunca mais se acabam de recolher da bandejinha em que o criado nos trazia o troco, os pratos por limpar, as tardes inteiras de torpor e moleza, desperdiçadas sem culpa porque sobra vida, porque haverá tempo. Essa é a atitude que se opõe à do miserável a quem a necessidade mais visceral e mesquinha faz ver poesia nesse sorver até à última gota o que a vida lhe oferece. E não deita nada fora, então, e guarda para amanhã, e mesquinhamente esconde as sobras para as aproveitar depois como um cão saciado que enterra os ossos junto de uma árvore para não desperdiçar nem um grama de alimento; e molha no chocolate todos os churros que fazem parte da dose, mesmo a rebentar de cheio, caibam ou não dentro do seu estômago. E mil vezes preferível deixar sempre qualquer coisa no prato, desdenhar com elegância de parte do festim; jantar, por exemplo, com uma senhora admirável e permitir graciosamente que escape viva. E,
Se uma imagem vale mais do que mil palavras, então diga isto com uma imagem.
Tudo Está ao Nosso Alcance
A vida traz a cada um a sua tarefa e, seja qual for a ocupação escolhida, álgebra, pintura, arquitectura, poesia, comércio, política — todas estão ao nosso alcance, até mesmo na realização de miraculosos triunfos, tudo na dependência da selecção daquilo para que temos aptidão: comece pelo começo, prossiga na ordem certa, passo a passo. É tão fácil retorcer âncoras de ferro e talhar canhões como entrelaçar palha, tão fácil ferver granito como ferver água, se você fizer tudo na ordem correcta. Onde quer que haja insucesso é porque houve titubeio, houve alguma superstição sobre a sorte, algum passo omitido, que a natureza jamais perdoa. Condições felizes de vida podem ser obtidas nos mesmos termos. A atracção que elas suscitam é a promessa de que estão ao nosso alcance. As nossas preces são profetas. É preciso fidelidade; é preciso adesão firme. Quão respeitável é a vida que se aferra aos seus objectivos! As aspirações juvenis são coisas belas, as suas teorias e planos de vida são legítimos e recomendáveis: mas você será fiel a eles? Nem um homem sequer, receio eu, naquele pátio repleto de gente, ou não mais que um em mil. E, se tentar cobrar deles a traição cometida,
No Amor, Mil Almas, Mil Maneiras Diferentes
Nem todas as mulheres experimentam os mesmos sentimentos. Encontrareis mil almas com mil maneiras diferentes. Para as conquistar, empregai mil maneiras. A mesma terra não produz todas as coisas: tal convém à vinha, tal à oliveira; aqui despontarão cereais em abundância. Há nos corações tantos caracteres diferentes, quantos rostos há no mundo. O homem prudente acomodar-se-á a estes inumeráveis caracteres; novo Proteu, tão depressa se diluirá em ondas fluidas para logo ser um leão, uma árvore, um javali de eriçadas cerdas. Os peixes apanham-se aqui com o arpão, ali com o anzol, acolá com as redes puxadas pela corda estendida. E o mesmo método não convirá a todas as idades: uma corça velha descobrirá a armadilha de mais longe; se te mostrares experiente junto de uma noviça, demasiado petulante junto de uma recatada, ela desconfiará que a vais tornar infeliz. Assim é que a mulher que às vezes teme entregar-se a um homem honesto, caiu vergonhosamente nos braços de alguém que a não merece.
Aquele canta e ri; não se embaraça
Com essas coisas vãs que o mundo adora
Este (oh, cega ambição!) mil vezes chora
Porque não acha bem que o satisfaça.
6
(À morte da esposa)
Ó alma pura enquanto cá vivias,
Alma, lá onde vives, já mais pura,
Porque me desprezaste? Quem tão dura
Te tornou ao amor que me devias?Isto era o que mil vezes prometias,
Em que minha alma estava tão segura?
Que ambos juntos Da hora desta escura
Noute nos subiria aos claros dias?Como em tão triste cárcer’ me deixaste?
Como pude eu sem mi deixar partir-te?
Como vive este corpo sem sua alma?Ah! que o caminho tu bem mo mostraste,
Porque correste à gloriosa palma!
Triste de quem não mereceu seguir-te!
Da Liberdade
A: Eis uma bateria de canhões que atira junto aos nossos ouvidos; tendes a liberdade de ouvi-la e de a não ouvir?
B: É claro que não posso evitar ouvi-la.
A: Desejaríeis que esse canhão decepasse a vossa cabeça e as da vossa mulher e da vossa filha que estivessem convosco?
B: Que espécie de proposição me fazeis? Eu jamais poderia, no meu são juízo, desejar semelhante coisa. Isso é-me impossível.
A: Muito bem; ouvis necessariamente esse canhão e, também necessariamente, não quereis morrer, vós e a vossa família, de um tiro de canhão; não tendes nem o poder de não o ouvir nem o poder de querer permanecer aqui.
B: Isso é evidente.
A: Em consequência, destes uma trintena de passos a fim de vos colocardes ao abrigo do canhão: tivestes o poder de caminhar comigo estes poucos passos?
B: Nada mais verdadeiro.
A: E se fôsseis paralítico? Não teríeis podido evitar ficar exposto a essa bateria; não teríeis o poder de estar onde agora estais: teríeis então necessariamente ouvido e recebido um tiro de canhão e necessariamente estaríeis morto?
B: Nada mais claro.
A: Em que consiste, pois,
Magro, de Olhos azuis, Carão Moreno
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno;Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades;Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia em que se achou mais pachorrento.
O Tempo Gastador de Mil Idades
O Tempo gastador de mil idades,
Que na décima esfera vive e mora,
Não descansa co’a Fúria tragadora,
De exercitar, feroz, suas crueldades.Ele destrói as ínclitas cidades,
As egípcias pirâmides devora:
Sua dentada fouce assoladora,
Rompe forças viris, destrói beldades.O bronze, o ouro, o rígido diamante,
A sua mão pesada amolga e gasta
Levando tudo ao nada, em giro errante.Como trovão feroz rugindo arrasta,
Quanto cobre na Terra o sol radiante,
Só da Virtude com temor se afasta.
Os Grandes Forjam-se na Adversidade
Todo o ambiente é favorável ao forte; de um modo ou de outro ele o ajuda a cumprir a missão que se impôs e a conseguir ir porventura mais além das barreiras marcadas. A derrota deve mais atribuir-se à invalidez do impulso interior do que aos obstáculos que lhe ponham diante, mais à alma incapaz de se bater com vigor e tenazmente do que às resistências, às invejas e às dificuldades que o mundo possa levantar perante Hércules que luta.
O mal que se vê é aguilhão para o bem que se deseja; e quanto mais duro, quanto mais agressivo, se bate em peito de aço, tanto mais valioso auxiliar num caminho de progresso; o querer se apura, a visão do futuro nos surge mais intensa a cada golpe novo; o contentamente e a mansa quietude são estufa para homens; por aí se habituaram a ser escravos de outros homens, ou da cega Natureza; e eu quero a terra povoada de rijos corações que seguem os calmos pensamentos e a mais nada se curvam.
Mais custa quebrar rochar do que escavar a terra; mais sólido, porém, o edifício que nela se firmou. A grandeza da obra é quase sempre devida à dificuldade que se encontra nos meios a empregar,