Os Pastores
Guardavam certos pastores
seus rebanhos, ao relento,
sobre os céus consoladores
pondo a vista e o pensamento.Quando viram que descia,
cheio de glĂłria fulgente,
um anjo do céu do Oriente,
que era mais claro que o dia.Jamais os cegara assim
luz do meio-dia ou manhĂŁ.
Dir-se-ia o audaz Serafim,
que um dia venceu SatĂŁ.Cheios de assombro e terror,
rolaram na erva rasteira.
– Mas ele, com voz fagueira,
lhes diz, com suave amor:«Erguei-vos, simples, daĂ,
humildes peitos da aldeia!
Nasceu o vosso Rabi,
que é Cristo – na Galileia!Num berço, o filho real,
nĂŁo o vereis reclinado.
VĂŞ-lo-eis pobre e enfaixado,
sobre as palhas de um curral!Segui dos astros a esteira.
Levai pombas, ramos, palmas,
ao que traz uma joeira
das estrelas e das almas!»Foi-se o anjo: e nas neblinas,
então celestes legiões
soltam mĂsticas canções,
sobre violas divinas.Erguem-se, enfim, os pastores
e vão caminhos dalém,
com palmas, rolas, e flores,
Passagens sobre MĂsticos
78 resultadosRegenerada
De mĂŁos postas, Ă luz de frouxos cĂrios
Rezas para as Estrelas do Infinito,
Para os Azuis dos siderais EmpĂreos
Das Orações o doloroso rito.Todos os mais recĂ´nditos martĂrios,
As angústias mortais, teu lábio aflito
Soluça, em preces de luar e lĂrios,
Num trêmulo de frases inaudito.Olhos, braços e lábios, mãos e seios,
Presos, d’estranhos, mĂsticos enleios,
Já nas Mágoas estão divinizados.Mas no teu vulto ideal e penitente
Parece haver todo o calor veemente
Da febre antiga de gentis Pecados.
A Vaidade de Obrar Bem
De todas as paixões, a que mais se esconde, Ă© a vaidade; e se esconde de tal sorte, que a si mesma se oculta, e ignora: ainda as acções mais pias nascem muitas vezes de uma vaidade mĂstica, que quem a tem, nĂŁo a conhece, nem distingue: a satisfação prĂłpria, que a alma recebe, Ă© como um espelho em que nos vemos superiores aos mais homens pelo bem que obramos, e nisso consiste a vaidade de obrar bem.
Num Leque
Na gaze loura d’este leque adeja
NĂŁo sei que aroma mĂstico e encantado…
Doce morena! Abençoado seja
O doce aroma de teu leque amado!Quando o entreabres, a sorrir, na Igreja,
O templo inteiro fica embalsamado…
AtĂ© minh’alma carinhosa o beija,
Como a toalha de um altar sagrado.E enquanto o aroma inebriante voa,
Unido aos hinos que, no coro, entoa
A voz de um órgão soluçando dores,Só me parece que o choroso canto
Sobe da gaze de teu leque santo,
Cheio de luz e de perfume e flores!
O Significado dos Sonhos
Os meu sonhos eram de muitas espĂ©cies mas representavam manifestações de um Ăşnico estado de alma. Ora sonhava ser um Cristo, a sacrificar-me para redimir a humanidade, ora um Lutero, a quebrar com todas as convenções estabelecidas, ora um Nero, mergulhado em sangue e na luxĂşria da carne. Ora me via numa alucinação o amado das multidões, aplaudido, desfilando ao longo (…), ora o amado das mulheres, atraindo-as arrebatadoramente para fora das suas casas, dos seus lares, ora o desprezado por todos embora o eleito do bem, por todos a sacrificar-me. Tudo o que lia, tudo o que ouvia, tudo o que via — cada ideia vinda de fora, cada (…), cada acontecimento era o ponto de partida de um sonho. Vinha de um circo e ficava em casa ousando imaginar-me um palhaço, com luzes em arco Ă minha volta. Via soldados passarem na minha mente a falarem com uma visĂŁo de mim prĂłprio, tratando-me por capitĂŁo, chefiando, ordenando, vitorioso. Quando lia algo acerca de aventureiros imediatamente me convertia neles, por completo. Quando lia algo acerca de criminosos, morria por cometer crimes atĂ© me apavorar com o meu desarranjo mental. Conforme as coisas que via, ou ouvia, ou lia, vivia em todas as classes sociais,
As explicações mĂsticas passam por profundas; a verdade Ă© que nem sequer sĂŁo superficiais.
Ă€ Janela De Garcia De Resende
Janela antiga sobre a rua plana…
Ilumina-a o luar com seu clarĂŁo…
Dantes, a descansar de luta insana,
Fui, talvez, flor no poĂ©tico balcĂŁo…Dantes! Da minha glĂłria altiva e ufana,
Talvez…Quem sabe?…Tonto de ilusĂŁo,
Meu rude coração de alentejana
Me palpitasse ao luar nesse balcĂŁo…MĂstica dona, em outras Primaveras,
Em refulgentes horas de outras eras,
Vi passar o cortejo ao sol doirado…Bandeiras! Pajens! O pendĂŁo real!
E na tua mĂŁo, vermelha, triunfal,
Minha divisa: um coração chagado!…
Hora MĂstica
Noite caindo … CĂ©u de fogo e flores.
Voz de CrepĂşsculo exalando cores,
O céu vai cheio de Deus e de harmonia.
SilĂŞncio … Eis-me rezando aos fins do dia.NĂ©voa de luz criando imagens na água,
Nome das águas esculpindo os céus,
Tarde aos relevos húmidos de frágua,
Boca da noite, eis-me rezando a Deus.Eis-me entoando, a voz de cinza e ouro,
— Oh, cores na água vindo às mãos em branco! —
Minha Ăłpera de Sol ao Ăşltimo arranco.E, oh! hora mĂstica em que o olhar abraso,
— Sol expirando aos Pórticos do Ocaso! —
Dobra em meu peito um oceano em coro.
O Homem e o Mar
Homem livre, o oceano Ă© um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu Ăntimo sentir, teu coração ardente.Gostas de te banhar na tua prĂłpria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mĂstica linguagem.VĂłs sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!E há sĂ©culos mil, sĂ©c’ulos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n’uma luta selvagem,
De tal modo gostais n’uma luta selvagem,
Eternos lutador’s Ăł irmĂŁos implacáveis!Tradução de Delfim GuimarĂŁes
Alma a Sangrar
Quem fez ao sapo o leito carmesim
De rosas desfolhadas Ă noitinha?
E quem vestiu de monja a andorinha,
E perfumou as sombras do jardim?Quem cinzelou estrelas no jasmim?
Quem deu esses cabelos de rainha
Ao girassol? Quem fez o mar? E a minha
Alma a sangrar? Quem me criou a mim?Quem fez os homens e deu vida aos lobos?
Santa Teresa em mĂsticos arroubos?
Os monstros? E os profetas? E o luar?Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
– Sem nos dar braços para os alcançar?!…
Passo Triste no Mundo
Passo triste no mundo, alheio ao mundo.
Passo no mundo alheio, sem o ver,
E mĂstico, ideal e vagabundo,
Sinto erguer-se minh’Alma do profundo
Abismo do seu Ser.Vivo de Mim, em Mim, e para Mim,
E para Deus em Mim ressuscitado,
Sou Saudade do Longe donde vim,
E sou Ă‚nsia do Longe, em que por fim
Serei transfigurado.Vivo de Deus, em Deus, e para Deus,
E minh’alma, sonâmbula, esquecida,
Nele fitando os tristes olhos seus,
Passa triste e sozinha, olhando os céus,
No caminho da Vida.Fui Outro, e, Outro sendo, Outro serei;
Outro vivendo a mĂstica beleza,
Por esta humana forma que encarnei,
Por lágrimas de sangue que chorei
Na terra da tristeza.EspĂrito na Dor purificado,
Ser que passa no mundo, sem o ver,
Em esta pobre terra de pecado,
Amor divino em Deus extasiado,
O meu Ser Ă© NĂŁo-Ser em Outro-Ser.
A Crença só se Mantém pela Ritualização
Uma verdade racional Ă© impessoal e os factos que a sustentam ficam estabelecidos para sempre. Sendo, ao contrário, pessoais e baseadas em concepções sentimentais ou mĂsticas, as crenças sĂŁo submetidas a todos os factores susceptĂveis de impressionar a sensibilidade. Deveriam, portanto, ao que parece, modificar-se incessantemente.
As suas partes essenciais mantêm-se, contudo, mas cumpre que sejam constantemente alentadas. Qualquer que seja a sua força no momento do seu triunfo, uma crença que não é continuamente defendida logo se desagrega. A história está repleta de destroços de crenças que, por essa razão, tiveram apenas uma existência efémera. A codificação das crenças em dogmas constitui um elemento de duração que não poderia bastar. A escrita unicamente modera a acção destruidora do tempo.
Uma crença qualquer, religiosa, polĂtica, moral ou social mantĂ©m-se sobretudo pelo contágio mental e por sugestões repetidas. Imagens, estátuas, relĂquias, peregrinações, cerimĂ´nias, cantos, mĂşsica, prĂ©dicas, etc., sĂŁo os elementos necessários desse contágio e dessas sugestões.
Confinado num deserto, privado de qualquer sĂmbolo, o crente mais convicto veria rapidamente a sua fĂ© declinar. Se, entretanto, anacoretas e missionários a conservam, Ă© porque incessantemente relĂŞem os seus livros religiosos e, sobretudo, se sujeitam a uma multidĂŁo de ritos e de preces.
Os Tentáculos da Escrita
Os tentáculos da escrita. A escrita Ă© um polvo, um molusco versátil. Tem infinitos recursos. Escapa sempre. Abstractiza-se. Disfarça-se, adensa-se, adelgaça-se, esconde-se. Impele-se rápida. Compreende tudo: ascese, consolo Ăntimo, entrega; fluxos, refluxos, invasões, esvaziamentos, obstinação feroz. O seu rigor Ă© mĂstico. É uma infinita demanda. Perscruta o inaudito. Sideral Alice atravessa todas as portas, todos os espelhos. Cruza, descobre, inventa universos. A escrita Ă© um fragmento do espanto, já alguĂ©m o disse.
De Amor nada Mais Resta que um Outubro
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo mĂstico.NĂŁo me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
A. L.
NĂŁo Ă©s a flor olĂmpica e serena
Que eu vejo em sonhos na amplidĂŁo distante;
NĂŁo tens as formas ideais de Helena,
As formas da beleza triunfante;NĂŁo Ă©s tambĂ©m a mĂstica açucena,
A alva e pura Beatriz do Dante;
És a artista gentil, a flor morena
Cheia de aroma casto e penetrante.Não sei que graça, que esplendor, que arpejo
Eu sinto dentro d’alma quando vejo
Teu corpo aĂ©reo, matinal, franzino…Faz-me lembrar as vĂvidas napeias,
E as formas vaporosas das sereias
Rendilhadas num bronze florentino.
Na Mazurka
Morava num palácio — estranha BabilĂ´nia
De arcadas colossais, de impávidos zimbórios,
Alcovas de damasco e torreões marmóreos,
Volutas primorais de arquitetura jĂ´nia.Assim, quando surgia em meio aos peristilos
Descendo, qual mulher de SĂ©fora, vaidosa,
Envolta em ouropéis, em sedas, luxuosa,
Cercam-na do belo os mĂsticos sigilos!E quando nos saraus, assim como um rainĂşnculo,
O lábio lhe tremia e o olhar, vivo carbúnculo,
Vibrava nos salões, como uma adaga turca,Ou como o sol em cheio e rubro sobre o Bósforo,
— nos crânios os Homens sentiam ter mais fĂłsforo…
Ao vĂŞ-la escultural no passo da Mazurka…
Espera…
NĂŁo me digas adeus, Ăł sombra amiga,
Abranda mais o ritmo dos teus passos;
Sente o perfume da paixĂŁo antiga,
Dos nossos bons e cândidos abraços!Sou a dona dos mĂsticos cansaços,
A fantástica e estranha rapariga
Que um dia ficou presa nos teus braços…
Não vás ainda embora, ó sombra amiga!Teu amor fez de mim um lago triste:
Quantas ondas a rir que nĂŁo lhe ouviste,
Quanta canção de ondinas lá no fundo!Espera… espera… Ăł minha sombra amada…
Vê que pra além de mim já não há nada
E nunca mais me encontras neste mundo!…
Faltam-nos hoje nĂŁo apenas mestres da vida interior, mas simplesmente da vida, de uma vida total, de uma existĂŞncia digna de ser vivida. Faltam cartĂłgrafos e testemunhas do coração humano, dos seus infindos e árduos caminhos, mas tambĂ©m dos nossos quotidianos, onde tudo nĂŁo Ă© e Ă© extraordinariamente simples. Falta-nos uma nova gramática que concilie no concreto os termos que a nossa cultura tem por inconciliáveis: razĂŁo e sensibilidade, eficácia e afetos, individualidade e compromisso social, gestĂŁo e compaixĂŁo, espiritualidade e sentidos, eternidade e instante. Será que do instante dos sentidos podemos fazer uma mĂstica? NĂŁo tenhamos dĂşvidas: o que está dito permanece ainda por dizer.
As explicações mĂsticas sĂŁo consideradas profundas. Na verdade falta-lhes ainda muito para que sejam superficiais.
A Prática Fomenta a Vontade
Se desejamos tornar-nos fortes, temos, primeiro, de comprender o que Ă© a vontade. A vontade nĂŁo Ă© nenhuma entidade mĂstica, que presida aos outros elementos do carácter, qual mestre de banda – sim, a soma, a substância de todos os nossos impulsos e disposições. Essa energia formadora do carácter nĂŁo tem senhor a quem obedeça alĂ©m de si prĂłpria; e Ă© graças a ela que algum poderoso impulso pode vir a dominar e unificar o complexo. Isto forma a «força de vontade» – um supremo desejo que se ergue acima dos mais para arrastá-los num mesmo sentido ou para uma dada meta. Se nĂŁo descobrimos essa meta nĂŁo alcançaremos a unidade – e seremos simples pedra de que outro homem se utiliza nas suas construções.
Vem daĂ a inutilidade da leitura de livros que apontam as estradas reais do carácter. Tenho diante de mim um volume de um tal Leland (Londres, 1912), intitulado Tendes a Vontade Forte? ou Como Desenvolver Qualquer Faculdade do EspĂrito pelo Fácil Processo do Auto-Hipnotismo. Existem centenas destas obras-primas ao alcance dos simplĂłrios de todas as cidades. Mas o caminho Ă© mais penoso e longo.
Esse caminho Ă© o caminho da vida. Vontade, isto Ă©,