O Exercício de Viver
Se o exercício de viver consiste maioritariamente em se ir atraiçoando um por um os sonhos que animaram os nossos anos de infância e juventude, então cada pessoa é o resultado exato de um bom punhado de traições. Às vezes centenas. Traem-se os sonhos mais puros e traem-se também os pesadelos. Por erro humano, fugimos de tempestades sem nos apercebermos de que eram tão nossas e estavam tão mergulhadas na nossa própria medula que sem elas não poderíamos existir. Dizemos, salva-me; dizemos, a ti já não quererei cravar facas nas pernas, não te farei mal, não desejarei ver a tua expressão de dor em nenhum espelho, amar-te-ei de outro modo, adorar-te-ei a partir de um ser que não existe, chamarei suplício ao meu passado, chamar-lhe-ei calvário até chegar a ti. Dir-te-ei que és suave como sonho o céu e que não me importo de fechar os olhos a tudo para sempre se souber que depois irás beijar-me as pálpebras. Não serei eu. Lançarei pazadas e mais pazadas de terra sobre o monstro. Aproximar-me-ei o mais possível do nada, de um caixão sem morto, de uma catedral vazia. Comprar-te-ei flores.
Não pode ser muito difícil porque nada é o que somos em definitivo,
Passagens sobre Monstros
99 resultadosNossa Memória
Nossa memória sempre foi a memória
dos monstros nosso enigmático testamento
de altas labaredas sempre foi
o caminho
devastado pelo sangue pela circuncisa memória
dos mortos pelo perfil
dos astros — nossa colorida volúpia
sempre foi dos monstros
a mais crua linguagem húmida fuga
desolada
através do tempo através do medo
de não sermos belos de não sabermos
esculpir na cinza o sopro
de tanta luz tão prostituída —
Pecado Original
Sim, Mãe! sim, quanta vez te vi chorar…,
Sem desistir de te fazer sofrer!
Gozava então nem sei que atroz prazer
De te arranhar no peito… e me arranhar.Mas quis lutar comigo, Mãe! lutar
Contra esse monstro obscuro do meu ser.
Que sonho, Mãe!: ter-me eu em meu poder,
Talhar-me bom, feliz, simples, vulgar…Mãe! com que força eu vi que era impotente!
… Porque de bem mais longe e bem mais fundo
A culpa do meu ser a nós dois veio.Perdoemos um ao outro, humildemente:
Eu, Mãe! — ter-me o teu seio dado ao mundo;
Tu, — ter-me eu feito vida no teu seio.
Amor à Vista
Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.Mas o mar e os montes…
isso, sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.Mar e montes teus beijos, meu amor!…
Analisar as Nossas Relações
Nenhuma mudança psíquica sustentável ocorre rapidamente. São necessários o autoconhecimento, a educação, o treino, a utilização de ferramentas e, em especial, a compreensão básica do mais complexo dos universos, a mente humana.
Qualquer mulher gostaria de remover a impaciência, a ansiedade, as fobias, o humor depressivo e a timidez da sua mente. Mas a vontade consciente de mudança ou superação de um conflito, por mais forte e poderosa que seja, não é eficiente. Não basta o Eu querer reorganizar a sua personalidade, é preciso utilizar estratégias adequadas. Até um psicopata gostaria de ser gentil e afetivo em toda a sua agenda psíquica, mas, no calor das crises, os monstros alojados no seu inconsciente devoram-no e magoam os outros.O Eu deve ser equipado, em especial, para ser o Autor da sua história. Porque brilhamos no mundo exterior, mas somos tão opacos no mundo interior? Porque é que as guerras, os homicídios, as discriminações, os distúrbios psíquicos, os conflitos sociais fazem a pauta da nossa história? Por que razão sonham os pais em proporcionar a melhor educação aos seus filhos, mas nem sempre têm êxito? Porque é que casais apaixonados que fazem juras de amor podem acabar inimigos?
Pobres são as crianças que não têm felicidade no lar, pois lá fora o monstro chamado delinqüência os espera de boca aberta.
Meu Senhor, livrai-me do ciúme! É um monstro de olhos verdes, que escarnece do próprio pasto que o alimenta. Quão felizardo é o enganado que, cônscio de o ser, não ama a sua infiel! Mas que torturas infernais padece o homem que, amando, duvida, e, suspeitando, adora.
Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti.
Amo o público, mas não o admiro. Como indivíduos, sim. Mas, como multidão, não passa de um monstro sem cabeça.
Visão Realizada
Sonhei que a mim correndo o gnídeo nume
Vinha coa Morte, co Ciúme ao lado,
E me bradava: “Escolhe, desgraçado,
Queres a Morte, ou queres o Ciúme?”“Não é pior daquela fouce o gume
Que a ponta dos farpões que tens provado;
Mas o monstro voraz, por mim criado,
Quanto horror há no Inferno em si resume.”Disse; e eu dando um suspiro: “Ah, não m’espantes
Coa a vista dessa fúria!… Amor, clemência!
Antes mil mortes, mil infernos antes!”Nisto acordei com dor, com impaciência;
E não vos encontrando, olhos brilhantes,
Vi que era a minha morte a vossa ausência!
Esse Cabra Ou Cabrão, Que Anda Na Berra
Esse cabra ou cabrão, que anda na berra,
Que mamou no Brasil surra e mais surra,
O vil estafador da vil bandurra,
O perro, que nas cordas nunca emperra:O monstro vil que produziste, ó Terra
Onde narizes Natureza esmurra,
Que os seus nadas harmônicos empurra,
Com parda voz, das paciências guerra;O que sai no focinho à mãe cachorra,
O que néscias aplaudem mais que a “Mirra”,
O que nem veio de prosápia forra;O que afina inda mais quando se espirra,
Merece à filosófica pachorra
Um corno, um passa-fora, um arre, um irra.
O dia em que nasci moura e pereça,
O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao Mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.A luz lhe falte, O Sol se [lhe] escureça,
Mostre o Mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao Mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
Eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas mágoas.
As Ideias dependem das Sensações
À primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas e aparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que conceber os objectos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do pensamento, excepto o que implica absoluta contradição.
Entretanto, embora o nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada (…) ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e todo o poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas idéias compatíveis,
Meu Camarada e Amigo
Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo e redigo
meu camarada e amigoAs canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
saem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e a poesia tem de ser
como um cavalo que passa.É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguém
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e amigo.Sei bem as mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monstros marinhos
vão movendo Portugal
— mas um poeta só fala
por sofrimento total!Por isso calo e sobejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Personalidades Potenciais
Trazemos connosco personalidades potenciais que acontecimentos ou acidentes podem potencializar. Assim, a Revolução fez surgir o génio político ou militar nos jovens destinados a uma carreira medíocre numa época normal; a guerra provoca o advento de heróis e de carrascos; a ditadura totalitária transformou seres pálidos em monstros. O exercício incontrolado do poder pode «tornar o sábio louco» (Alain) mas pode tornar sábio o louco, e dar génio ao medíocre, como no caso de Hitler e Estaline. E também as possibilidades de génio ou de demência, de crueldade ou de bondade, de santidade ou de monstruosidade, virtuais em todos os seres, podem desenvolver-se em circunstâncias excepcionais.
Inversamente, estas possibilidades nunca chegarão à luz do dia na chamada vida normal: nos nossos dias, César seria funcionário da CEE, Alexandre teria escrito uma vida de Aristóteles para uma colecção de divulgação, Robespierre seria adjunto de Pierre Mauroy na Câmara de Arras, e Bonaparte seria do séquito de Pascua.
O ciúme é um monstro que zomba da carne que consome.
Intangível
Quero-te como quero à abóbada nocturna,
Ó vazo de tristeza, ó grande taciturna!
E tanto mais te quero, ó minha bem amada,
Por te ver a fugir, mostrado-te empenhada
Em fazer aumentar, irónica, a distânciaQue me separa a mim da celestial estância.
Bem a quero atingir, a abóbada estrelada,
Mas, se julgo alcançar, vejo-a mais afastada!
Pois se eu adoro até – ferro monstro, acredita! –
O teu frio desdém, que te faz mais bonita!Tradução de Delfim Guimarães
O Homem – Uma Mácula da Natureza
Existe no mundo apenas um ser mentiroso: o homem. Todos os outros seres são verdadeiros e sinceros, pois mostram-se abertamente como são e manifestam o que sentem. Uma expressão emblemática ou alegórica dessa diferença fundamental é o facto de que todos os animais andam com o seu aspecto natural, o que contribui bastante para a impressão agradável que se tem ao vê-los; especialmente quando se trata de animais livres, tal visão enche o meu coração de alegria. Em contrapartida, devido ao seu vestuário, o ser humano tornou-se uma caricatura, um monstro; o simples facto de vê-lo é ja algo de repugnante, que se destaca até pelo branco da sua pele, tão natural a ele, e pelas consequências repulsivas da sua alimentação à base de carne, que vai contra a natureza, bem como das bebidas alcoólicas, do tabaco, dos excessos e das doenças.