Eu
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida nĂŁo tem norte,
Sou a irmĂŁ do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…Sombra de nĂ©voa tĂ©nue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!…Sou aquela que passa e ninguĂ©m vĂȘ…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquĂȘ…Sou talvez a visĂŁo que AlguĂ©m sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
Passagens sobre Névoa
88 resultadosA Ăgua
Eu fui a sombra a converter-se em luz,
E fui a névoa a transformar-se em cor,
E fui o pranto a consagrar a dor,
Quando brilhei nos olhos de Jesus.E fui a nuvem a buscar a altura,
E recebi do Sol a cor da chama.
CaĂ na terra e converti-me em lama
Para a tornar melhor e menos dura!Fui pranto de perdĂŁo e de humildade…
E foi nuns olhos cheios de saudade
Que mais linda me fiz e desejei!…E fui rio… e fui mar… e onda… e espuma…
E, em sonho de Poetas, fui Ă bruma…
O vago… o indeciso… o que nĂŁo sei….
8A Sombra – Ăltimo Fantasma
Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso,
Que te elevas da noite na orvalhada?
Tens a face nas sombras mergulhada…
Sobre as nĂ©voas te libras vaporoso …Baixas do cĂ©u num vĂŽo harmonioso!…
Quem és tu, bela e branca desposada?
Da laranjeira em flor a flor nevada
Cerca-te a fronte, Ăł ser misterioso! …Onde nos vimos nĂłs? Ăs doutra esfera ?
Ăs o ser que eu busquei do sul ao norte. . .
Por quem meu peito em sonhos desespera?Quem Ă©s tu? Quem Ă©s tu? – Ăs minha sorte!
Ăs talvez o ideal que est’alma espera!
Ăs a glĂłria talvez! Talvez a morte!
Dormindo
De qual de vĂłs desceu para o exĂlio do mundo
A alma desta mulher, astros do céu profundo?
Dorme talvez agora… AlvĂssimas, serenas,
Cruzam-se numa prece as suas mĂŁos pequenas.
Para a respiração suavĂssima lhe ouvir,
A noite se debruça… E, a oscilar e a fulgir,
Brande o glĂĄdio de luz, que a escuridĂŁo recorta,
Um arcanjo, de pé, guardando a sua porta.
Versos! podeis voar em torno desse leito,
E pairar sobre o alvor virginal de seu peito,
Aves, tontas de luz, sobre um fresco pomar…
Dorme… Rimas febris, podeis febris voar…
Como ela, num livor de névoas misteriosas,
Dorme o céu, campo azul semeado de rosas;
E dois anjos do céu, alvos e pequeninos,
VĂȘm dormir nos dois cĂ©us dos seus olhos divinos…
Dorme… Estrelas, velai, inundando-a de luz!
Caravana, que Deus pelo espaço conduz!
Todo o vosso dano nesta pequena alcova
Sobre ela, como um nimbo esplĂȘndido, se mova:
E, a sorrir e a sonhar, sua leve cabeça
Como a da Virgem Mie repouse e resplandeça!
A Poesia
DifĂcil, estreita passagem,
força quente perscrutada,
corpo de névoa, de imagem,
com sulcos de tatuagem,
voz absoluta escutada…Destino de aranha, tece
com fios vĂĄrios da vida
alegria se amanhece
ou chora se a luz fenece
pela noite perseguida.Intimidade exterior,
pureza de impuras formas,
conhecimento e amor,
ĂĄgua lĂmpida, estertor,
sem regras feita de normas.
Lisbon Revisited (1926)
Nada me prende a nada.
Quero cinqĂŒenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angĂșstia de fome de carne
O que nĂŁo sei que seja –
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.Fecharam-me todas as portas abstratas e necessĂĄrias.
Correram cortinas de todas as hipĂłteses que eu poderia ver da rua.
NĂŁo hĂĄ na travessa achada o nĂșmero da porta que me deram.Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
AtĂ© a vida sĂł desejada me farta – atĂ© essa vida…Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
NĂŁo sei que destino ou futuro compete Ă minha angĂșstia sem leme;
NĂŁo sei que ilhas do sul impossĂvel aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darĂŁo ao menos um verso.NĂŁo, nĂŁo sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espĂrito,
Um dia esbranquiçado passava pela janela sem cortinas, entreviam-se as copas das årvores, e mais além a pradaria meio afogada na névoa que fumava ao luar.
AlguĂ©m caminha a meu lado sem rumor, como se tivesse os pĂ©s nus… A nĂ©voa entra pela boca, ocupa os pulmĂ”es. Perto de Canalazzo flutua e se acumula. O desconhecido torna-se cinza, mais leve; se faz sombra… Sob a casa onde fica o antiquĂĄrio, desaparece de improviso.