Leitor e Autor, num Mundo á Parte
Ler um livro é desinteressar-se a gente deste mundo comum e objectivo para viver noutro mundo. A janela iluminada noite adentro isola o leitor da realidade da rua, que é o sumidouro da vida subjectiva. Árvores ramalham. De vez em quando passam passos. Lá no alto estrelas teimosas namoram inutilmente a janela iluminada. O homem, prisioneiro do círculo claro da lãmpada, apenas ligado a este mundo pela fatalidade vegetativa do seu corpo, está suspenso no ponto ideal de uma outra dimensão, além do tempo e do espaço. No tapete voador só há lugar para dois passageiros: leitor e autor.
Passagens sobre Noite
1300 resultadosDa noite vim para a noite vamos uma rosa de guimarães nos ramos de graciliano.
O Sapo
Não há jardineiro assim,
Não há hortelão melhor
Para uma horta ou jardim,
Para os tratar com amor.É o guarda das flores belas,
da horta mais do pomar;
e enquanto brilham estrelas,
lá anda ele a rondar…Que faz ele? Anda a caçar
os bichos destruidores
que adoecem o pomar
e fazem tristes as flores.Por isso, ficam zangadas
as flores, se se faz mal
a quem as traz tão guardadas
com o seu cuidado leal.E ele guarda as flores belas,
a horta mais o pomar;
brilham no céu as estrelas,
e ele ronda, a trabalhar…E ao pobre sapo, que é cheio
de amor pela terra amiga,
dizem-lhe que é feio
e há quem o mate e persigaMas as flores ficam zangadas,
choram, e dizem por fim:
– «Então ele traz-nos guardadas,
e depois pagam-lhe assim?»E vendo, à noite, passar
o sapo cheio de medo,
as flores, para o consolar,
chamam-lhe lindo, em segredo…
O Amor é um Acidente, uma Renúncia, um Hábito, uma Maldição
O amor é um acidente.
Eu estava sentada no regaço de uma mulher de cobre, uma escultura de Henry Moore, e Bill debruçou-se sobre mim e beijou-me nos lábios. E de repente eu amava-o. Amava-o e só isso importava. Reparei nas mãos dele, mãos de pianista. Mãos preparadas para o amor. Ainda hoje gosto de lhe ver as mãos enquanto folheia um livro, enquanto lê um jornal. As mãos dele envelheceram, envelheceram a apertar outras mãos, milhares de outras mãos, a jogar golfe, a assinar autógrafos e documentos importantes. Envelheceram, sim, mas continuam belas. Continuam a excitar-me.
O amor é uma renúncia. Amar alguém é desistir de amar outros, é desistir por esse amor do amor de outros. Eu desisti de tudo. A partir desse dia dei-lhe todos os meus dias. Entreguei-lhe os meus sonhos, os meus segredos, as minhas convicções mais profundas. Não me queixo!
Não sou ingénua nem estúpida. Quando digo que o amor é uma renúncia, quero dizer que foi assim para mim. Para Bill foi sempre uma outra coisa. Eu sabia que ele reparava noutras mulheres, e que outras mulheres reparavam nele. Um homem feio, com poder, é quase bonito. Um homem bonito,
Soneto Da Sentida Solidão
A falta é complemento da saudade,
servida em larga ausência nos ponteiros,
bandeja dos segundos que se evade,
em pasto das desoras, sorrateira.Estar é seduzir sem muito alarde,
no avaro aqui agora companheiro,
o porto da atenção que se me guarde
o ser presente da sanha viageira.Partir é sentimento de voltar,
liberta, eu sei, no vento e seu afoite,
navega a sina em rasa preamar;ela, essa ausente, é dona e meu açoite,
no seu impulso presto em navegar,
vai se enfunando em névoa pela noite.
Aprender a Ler
Tive muita dificuldade em aprender a ler. Não me parecia lógico que a letra «m» se chamasse «éme» e, no entanto, com a vogal seguinte não se dissesse «éme» e sim «ma». Era-me impossível ler assim. Por fim, quando cheguei ao Montessori, a professora não me ensinou os nomes mas sim os sons das consoantes. Assim pude ler o primeiro livro que encontrei numa arca poeirenta da arrecadação da casa. Estava descosido e incompleto, mas absorveu-me de uma forma tão intensa que o namorado da Sara, ao passar, deixou cair uma premonição aterradora: «Caramba!, este menino vai ser escritor».
Dito por ele, que vivia de escrever, causou-me uma grande impressão. Passaram vários anos antes de saber que o livro era «As Mil e Uma Noites». O conto de que mais gostei – um dos mais curtos e o mais simples que li — continuou a parecer-me o melhor para o resto da minha vida, embora agora não esteja seguro de que fosse lá que o li nem ninguém me tenha podido esclarecer. O conto é este: um pescador prometeu a uma vizinha oferecer-lhe o primeiro peixe que pescasse se ela lhe emprestasse um chumbo para a sua rede e,
XVIII
Aquela cinta azul, que o céu estende
A nossa mão esquerda, aquele grito,
Com que está toda a noite o corvo aflito
Dizendo um não sei quê, que não se entende;Levantar me de um sonho, quando atende
O meu ouvido um mísero conflito,
A tempo, que o voraz lobo maldito
A minha ovelha mais mimosa ofende;Encontrar a dormir tão preguiçoso
Melampo, o meu fiel, que na manada
Sempre desperto está, sempre ansioso;Ah! queira Deus, que minta a sorte irada:
Mas de tão triste agouro cuidadoso
Só me lembro de Nise, e de mais nada.
Ninguém Meu Amor
Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos
Noite Trágica
O pavor e a angústia andam dançando…
Um sino grita endechas de poentes…
Na meia-noite d´hoje, soluçando,
Que presságios sinistros e dolentes!…Tenho medo da noite!… Padre nosso
Que estais no céu… O que minh´alma teme!
Tenho medo da noite!… Que alvoroço
Anda nesta alma enquanto o sino geme!Jesus! Jesus, que noite imensa e triste!
A quanta dor a nossa dor resiste
Em noite assim que a própria dor parece…Ó noite imensa, ó noite do Calvário,
Leva contigo envolto no sudário
Da tua dor a dor que me não ´squece!
No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem.
Espectros
Espectros que velais, enquanto a custo
Adormeço um momento, e que inclinados
Sobre os meus sonos curtos e cansados
Me encheis as noites de agonia e susto!…De que me vale a mim ser puro e justo,
E entre combates sempre renovados
Disputar dia a dia à mão dos Fados
Uma parcela do saber augusto,Se a minh’alma há-de ver, sobre si fitos,
Sempre esses olhos trágicos, malditos!
Se até dormindo, com angústia imensa,Bem os sinto verter sobre o meu leito,
Uma a uma verter sobre o meu peito
As lágrimas geladas da descrença!
Aqueles que nós definimos como os nossos dias mais belos não são mais do que um brilhante relâmpago numa noite de tempestade.
Sei agora, o fim e o desespero são a serenidade de uma solidão eterna e irremediável, são uma mágoa que é um sofrimento eterno e irremediável, tudo eterno e tudo irremediável, são o silêncio de quem chora sozinho numa noite inteira.
Entre o Luar e a Folhagem
Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.
Segue-o minha alma na passagem.Tênue lembrança ou saudade,
Princípio ou fim do que não foi,
Não tem lugar, não tem verdade.
Atrai e dói.Segue-o meu ser em liberdade.
Vazio encanto ébrio de si,
Tristeza ou alegria o traz?
O que sou dele a quem sorri?
Nada é nem faz.
Só de segui-lo me perdi.
Rumor dos Fogos
hoje à noite avistei sobre a folha de papel
o dragão em celulóide da infância
escuro como o interior polposo das cerejas
antigo como a insónia dos meus trinta e cinco anos…dantes eu conseguia esconder-me nas paisagens
podia beber a humidade aérea do musgo
derramar sangue nos dedos magoados
foi há muito tempo
quando corria pelas ruas sem saber ler nem escrever
o mundo reduzia-se a um berlinde
e as mãos eram pequenas
desvendavam os nocturnos segredos dos pinhaisnão quero mais perceber as palavras nem os corpos
deixou de me pertencer o choro longínquo das pedras
prossigo caminho com estes ossos cor de malva
som a som o vegetal silêncio sílaba a sílaba o abandono
desta obra que fica por construir… o receio
de abrir os olhos e as rosas não estarem onde as sonhei
e teu rosto ter desaparecido no fundo do marficou-me esta mão com sua sombra de terra
sobre o papel branco… como é louca esta mão
tentando aparar a tristeza antiga das lágrimas
Tigre, tigre que flamejas Nas florestas da noite. Que mão que olho imortal Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?
A Um Moribundo
Não tenhas medo, não! Tranquilamente,
Como adormece a noite pelo Outono,
Fecha os teus olhos, simples, docemente,
Como, à tarde, uma pomba que tem sono…A cabeça reclina levemente
E os braços deixa-os ir ao abandono,
Como tombam, arfando, ao sol poente,
As asas de uma pomba que tem sono…O que há depois? Depois?… O azul dos céus?
Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?Que importa? Que te importa, ó moribundo?
– Seja o que for, será melhor que o mundo!
Tudo será melhor do que esta vida!…
Luz entre Sombras
É noite medonha e escura,
Muda como o passamento*
Uma só no firmamento
Trêmula estrela fulgura.Fala aos ecos da espessura
A chorosa harpa do vento,
E num canto sonolento
Entre as árvores murmura.Noite que assombra a memória,
Noite que os medos convida,
Erma, triste, merencória.No entanto…minha alma olvida
Dor que se transforma em glória,
Morte que se rompe em vida.
Levei vinte anos para fazer sucesso da noite para o dia.
Sonhei, Confuso, E O Sono Foi Disperso
Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,
Mas, quando despertei da confusão,
Vi que esta vida aqui e este universo
Não são mais claros do que os sonhos sãoObscura luz paira onde estou converso
A esta realidade da ilusão
Se fecho os olhos, sou de novo imerso
Naquelas sombras que há na escuridão.Escuro, escuro, tudo, em sonho ou vida,
É a mesma mistura de entre-seres
Ou na noite, ou ao dia transferida.Nada é real, nada em seus vãos moveres
Pertence a uma forma definida,
Rastro visto de coisa só ouvida.