Primeiras Vigílias
Dos revoltos lençóis sobre o deserto
Despejava-se, em ondas silenciosas,
O luar dessas noites vaporosas,
De seu lânguido cálix todo aberto.Rangia a cama, e deslizavam, perto
Alvas, femíneas formas ondulosas;
E eu a idear, nas ânsias amorosas,
Uns ombros nus, um colo descoberto.E a gemer: – “Abeirai-vos de meu leito,
Ó sensuais visões da adolescência,
E inflamai-vos na pira em que me inflamo!Fervem paixões despertas no meu peito;
Descai a flor virgínea da inocência,
E irrompe o fruto dolorido… Eu amo!”
Passagens sobre Noite
1300 resultadosCeleste
Aos corações ideais
Lembra-me ainda — ao lado de um repuxo,
Pela brancura de um luar de agosto,
O teu maninho, um loiro pequerrucho
Brincava, rindo, te afagando o rosto…Lembra-me ainda — as sombras do sol posto,
Numa saleta sem brasões de luxo,
De alguns bordados de fineza e gosto
Delineavas o gentil debuxo…E o gás que forte e cintilante ardia,
Te iluminava, te alagava… ria…
Da luz ficavas no imponente abrigo.E agora… deixa que ao cair da noite,
Esta lembrança dentro de mim se acoite,
Como a andorinha no telhado amigo!
A economia da Argentina só cresce porque de noite os políticos e empresários estão dormindo e não podem roubar. E enquanto isso, à noite o trigo cresce e a vacas fornicam com luxúria.
Nunca se sabe aquilo que basta. Talvez baste um poema, uma coisa mínima, viva, nossa, uma coisa sub-reptícia para empunhar diante do implacável acordo das formas exteriores. Também pode ser que nada baste. E nesse caso tanto faz escrever um romance ou cem poemas ou apenas um poema, ou ler ou emendar o céu astronómico ou manter-se parado no meio de um jardim húmido e silencioso, à noite. Até pode suceder que a morte não seja bastante.
Canção do Mar Aberto
Onde puseram teus olhos
A mágoa do teu olhar?
Na curva larga dos montes
Ou na planura do mar?De dia vivi este anseio;
De noite vem o luar,
Deixa uma estrada de prata
Aberta para eu passar.Caminho por sobre as ondas
Não paro de caminhar.
O longe é sempre mais longe…
Ai de mim se me cansar!…Morre o meu sonho comigo,
Sem te poder encontrar
Onde estivestes de noite Que de manhã regressais com o ultramundo nas veias, entre flores abissais?
Rua de Roma
Quero uma rua de Roma
com seus rubros com seus ocres
com essa igreja barroca
essa fonte esse quiosque
aquele pátio na sombra
ao longe a luz de um zimbório
mais o cimo dessa torre
que não tem raiz no solo
Em troca darei Moscovo
Oslo Tóquio Banguecoque
Fugaz e secreta à força
de se mostrar rumorosa
só essa rua de Roma
em cada nervo me toca
Por isso a quero assim toda
opulenta de tão pobre
com o voo desta pomba
o ribombar desta moto
com este bar de mau gosto
em cuja esplanada tomo
este espresso após o almoço
à tarde um campari soda
Em troca darei Lisboa
Londres Rio Nova Iorque
toda a prata todo o ouro
que não tenho em nenhum cofre
só no cotão do meu bolso
e no que a pátria me explora
Quero essa rua de Roma
Aqui onde estou sufoco
Aqui as manhãs irrompem
de noites que nunca morrem
Quero esse musgo essa fonte
essas folhas que se movem
sob o sopro do siroco
ora tépido ora tórrido
frente à igreja barroca
tão apagada por fora
mas que do altar ao coro
por dentro aparece enorme
Quero essa rua de Roma
casta rugosa remota
Em troca darei as lobas
que não aleitaram Rómulo
mas me deixaram na boca
o travo do transitório
Quero essa rua de Roma
sem conhecer quem lá mora
além da madonna loura
misto de corça e de cobra
que ao longo de tantas noites
tanta insónia me provoca
Quanto às restantes pessoas
inventarei como sofrem
Quero essa rua de Roma
Terá de ser sem demora
Sabemos lá quando rondam
abutres à nossa roda
Mas não me lembro do nome
da rua que assim evoco
soberba se bem que tosca
direita se bem que torta
com um Sol que tanto a doura
como a seguir a devora
Em troca darei o troco
do que por nada se troca
o florescer de uma bomba
o deflagrar de uma rosa
Quero essa rua de Roma
Amanhã Ontem Agora
Que importa saber-lhe o nome
se a trago dentro dos olhos
Há uma igual em Verona
Outra ainda mais a norte
Outra talvez nem tão longe
num burgo que o mundo ignora
Outra que apenas se encontra
onde a paixão a descobre
Mas rua sempre de Roma
Romana em todo o seu porte
mistura de alma e de corpo
aquém além do ilusório
Romana mesmo que em Roma
não haja quem a recorde
Onde quer que o sexo a sonhe
e o coração a coloque
é lá que todo sou todo
Aqui não Aqui não posso
Nos sonhos envergamos a semelhança com aquele homem mais universal, verdadeiro e eterno que habita na escuridão da noite primordial.
Criei, não Possuí
Criei, não possuí.
Instante de infinitude, o que moldei na voz
respira. A firme casa do meu corpo se fez
pelo contraste, que só o contrário cria.
Não possuí,
denso ou raro,
pequeno até ao nada,
nenhum símbolo,
nenhum olhar de brasa,
nenhum odor colado à pele.
Pretendi a verdade, mas tudo se muda
pelos meus olhos e a fosca luz do que foi viver
só no amor se moveu. Morto o amor,
transforma-se a água.
Onde a noite não há e o dia não é,
esqueço as mudanças do tempo
e com meus ardis me defendo
do terror de mim.
LXXII
Já rompe, Nise, a matutina aurora
O negro manto, com que a noite escura,
Sufocando do Sol a face pura,
Tinha escondido a chama brilhadora.Que alegre, que suave, que sonora,
Aquela fontezinha aqui murmura!
E nestes campos cheios de verdura
Que avultado o prazer tanto melhora!Só minha alma em fatal melancolia,
Por te não poder ver, Nise adorada,
Não sabe inda, que coisa é alegria;E a suavidade do prazer trocada,
Tanto mais aborrece a luz do dia,
Quanto a sombra da noite lhe agrada.
Náufragos que Navegam Tempestades
As tempestades são sempre períodos longos. Poucas pessoas gostam de falar destes momentos em que a vida se faz fria e anoitece, preferem histórias de praias divertidas às das profundas tragédias de tantos naufrágios que são, afinal, os verdadeiros pilares da nossa existência.
Gente vazia tende a pensar em quem sofre como fraco… quando fracos são os que evitam a qualquer custo mares revoltos, tempestades em que qualquer um se sente minúsculo, mas só os que não prestam o são verdadeiramente. Para a gente de coração pequeno, qualquer dor é grande. Os homens e mulheres que assumem o seu destino sabem que, mais cedo ou mais tarde, morrerão, mas há ainda uma decisão que lhes cabe: desviver a fugir ou morrer sofrendo para diante.
Da morte saímos, para a morte caminhamos. O que por aqui sofremos pode bem ser a forma que temos de nos aproximarmos do coração da verdade.Haverá sempre quem seja mestre de conversas e valente piloto de naus alheias, os que sabem sempre tudo, principalmente o que é (d)a vida do outro, e mais especificamente se estiver a passar um mau bocado. Logo se apressam a dizer que depois da tempestade vem a bonança,
A Rua Dos Cataventos – II
Dorme, ruazinha… E tudo escuro…
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilosDorme… Não há ladrões, eu te asseguro…
Nem guardas para acaso persegui-los…
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos…O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão…
Dorme, ruazinha… Não há nada…Só os meus passos… Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração…
Poema de Amor
A noite é cheia de vales e baías.
E do meu peito aberto um rio largo de sangue…
Águas densas, de correntes lentas,
serpentes mortas a arrastarem-se.
Águas?
Águas negras, pastosas, alcatrão rolante.
Mas águas puras, verde-claras, atraindo
a margem donde os crocodilos fogem mastigando.
Águas em transparências lucilantes, para cima,
e as estrelas do mar, um polvo e um mefistófeles
ficam no ar sobre ilhéus e lodosos calhaus
que se descobrem.
Plantas brancas e extáticas…
Lágrimas… nuvens… e a cabeça, o perfil,
os olhos, todo o corpo da mulher amada, a prostituta
antes de virgem, que é bela e feia, velha e nova,
e não conhece os filhos!O fogo envolve essa mulher amada
e é um guindaste erguendo-a e atirando-a,
enquanto dispersas pelo chão brilham mandíbulas
naturalmente à espera…
As Vozes Da Natureza
As vozes que nos vêm da natureza
Traduzem sempre um mútuo sentimento.
Cantam as frondes pela voz do vento,
Pelo manancial canta a represa.Pelas estrelas canta o firmamento
Nas suas grandes noites de beleza.
Cada nota a outra nota vive presa,
É um pensamento de outro pensamento.Pelas folhas murmura a voz da estrada,
Pelos salgueiros canta a água parada
E o amigo sol, apenas se levanta,Jogando o manto de ouro ao céu deserto,
Chama as cigarras todas para perto,
Que é na voz das cigarras que ele canta.
A Morte
Oh! que doce tristeza e que ternura
No olhar ansioso, aflito dos que morrem…
De que âncoras profundas se socorrem
Os que penetram nessa noite escura!Da vida aos frios véus da sepultura
Vagos momentos trêmulos decorrem…
E dos olhos as lágrimas escorrem
Como faróis da humana Desventura.Descem então aos golfos congelados
Os que na terra vagam suspirando,
Com os velhos corações tantalizados.Tudo negro e sinistro vai rolando
Báratro abaixo, aos ecos soluçados
Do vendaval da Morte ondeando, uivando…
-Que é que eu faço? É de noite e estou viva. Estar viva está me matando aos poucos, e eu estou toda alerta no escuro.
Os homens, enquanto não forem completos e livres, hão-de sonhar sempre de noite.
A Senhora de Brabante
Tem um leque de plumas gloriosas,
na sua mão macia e cintilante,
de anéis de pedras finas preciosas
a Senhora Duquesa de Brabante.Numa cadeira de espaldar dourado,
Escuta os galanteios dos barões.
— É noite: e, sob o azul morno e calado,
concebem os jasmins e os corações.Recorda o senhor Bispo acções passadas.
Falam damas de jóias e cetins.
Tratam barões de festas e caçadas
à moda goda: — aos toques dos clarins!Mas a Duquesa é triste. — Oculta mágoa
vela seu rosto de um solene véu.
— Ao luar, sobre os tanques chora a água…
— Cantando, os rouxinóis lembram o céu…Dizem as lendas que Satã vestido
de uma armadura feita de um brilhante,
ousou falar do seu amor florido
à Senhora Duquesa de Brabante.Dizem que o ouviram ao luar nas águas,
mais louro do que o sol, marmóreo, e lindo,
tirar de uma viola estranhas mágoas,
pelas noites que os cravos vêm abrindo…Dizem mais que na seda das varetas
do seu leque ducal de mil matizes…
Alvorecer
A noite empalidece. Alvorecer…
Ouve-se mais o gargalhar da fonte…
Sobre a cidade muda, o horizonte
É uma orquídea estranha a florescer.Há andorinhas prontas a dizer
A missa d’alva, mal o sol desponte.
Gritos de galos soam monte em monte
Numa intensa alegria de viver.Passos ao longe… um vulto que se esvai…
Em cada sombra Colombina trai…
Anda o silêncio em volta a q’rer falar…E o luar que desmaia, macerado,
Lembra, pálido, tonto, esfarrapado,
Um Pierrot, todo branco, a soluçar…
Alma Perdida
Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente …
Talvez sejas a alma, a alma doente
Dalguém que quis amar e nunca amou!Toda a noite choraste … e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh’alma
Que chorasse perdida em tua voz! …