A SĂ©sta
Pierrot escondido por entre o amarello dos gyrassois espreita em cautela o somno d’ella dormindo na sombra da tangerineira. E ella nĂŁo dorme, espreita tambem de olhos descidos, mentindo o sĂ´no, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silencios por entre o amarelo dos gyrassois. E porque Elle se vem chegando perto, Ella mente ainda mais o sĂ´no a mal-resonar.
Junto d’Ella, nĂŁo teve mĂŁo em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pĂ© pequenino. Depois os joelhos redondos e lizos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ella acordou cançada de tanto sĂ´no fingir.
E Elle ameaça fugida, e Ella furta-lhe a fuga nos braços nús estendidos.
E Ella, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdĂŁo. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ella dormisse outra vez.
Passagens sobre PĂ©s
670 resultadosNão é esta forma para seu pé.
Desobriga
Os meus peccados, Anjo! os meus peccados!
Contar-t’os? Para que, se nĂŁo tĂŞm fim…
Sou santo ao pé dos outros desgraçados,
Mas tu és mais que santa ao pé de mim!A ti accendo cyrios perfumados,
Faço novenas, queimo-te alecrim,
Quando soffro, me vejo com cuidados…
Nas tuas rezas, lembra-te de mim!Que eu seja puro d’alma e pensamento!
E que, em dia do grande julgamento,
Minhas culpas não sejam de maior:Pois tenho, que o céu tudo aponta e marca,
Um processo a correr n’essa comarca,
Cujo delegado Ă© Nosso Senhor…
Caminho II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quĂŞ, nem eu o sei.
– Bom dia, companheiro, te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinhoÉ longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei…
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!… Foi no entantoQue choramos a dor de cada um…
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
AlguĂ©m caminha a meu lado sem rumor, como se tivesse os pĂ©s nus… A nĂ©voa entra pela boca, ocupa os pulmões. Perto de Canalazzo flutua e se acumula. O desconhecido torna-se cinza, mais leve; se faz sombra… Sob a casa onde fica o antiquário, desaparece de improviso.
Caminho
II
Encontraste-me um dia no caminho
Em procura de quĂŞ, nem eu o sei.
– Bom dia, companheiro – te saudei,
Que a jornada é maior indo sozinho.É longe, é muito longe, há muito espinho!
Paraste a repousar, eu descansei…
Na venda em que poisaste, onde poisei,
Bebemos cada um do mesmo vinho.É no monte escabroso, solitário.
Corta os pés como a rocha dum calvário,
E queima como a areia!… Foi no entantoQue chorámos a dor de cada um…
E o vinho em que choraste era comum:
Tivemos que beber do mesmo pranto.
Nem Sempre Sou Igual no que Digo e Escrevo
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas nĂŁo mudo muito.
A cor das flores nĂŁo Ă© a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores sĂŁo cor da sombra.
Mas quem olha bem vĂŞ que sĂŁo as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo,
Reparem bem para mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E Ă minha clara simplicidade de alma …
O Amor em Visita
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lĂşbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marĂtimo
e o pĂŁo for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze,
Este método estoico de prover as nossas necessidades suprimindo os nossos desejos é como cortar os pés quando necessitamos de sapatos.
Minha Alegria
Minha alegria foi no teu caixĂŁo;
Deitou-se ao pé de ti, na sepultura,
A fim de acalentar teu coração
E tornar-te mais branda a terra dura.Por isso, é para mim consolação
Esta sombria dĂ´r que me tortura!
E ponho-me a cantar na solidĂŁo,
Meu cantico esculpido em noite escura!Consola-me saber minha alegria
Longe de mim, perto de ti, na fria
Cova a que tu baixaste apoz a morte.FĂ´ste tu que m’a deste, meu amĂ´r;
Agora, dou-t’a eu: Ă© a minha flĂ´r;
Eu quero que ela soffra a tua sorte.
Alegria
De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho…,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nĂłdoa escuraduma nova amargura…
De cada crueldade
que pĂ´s de luto a minha mocidade…
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte…
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas herĂłica alegria.Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
VolĂşpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa Ă raĂz.
A mão no peito e o pé no leito.
O Solitário Gesto de Viver
Onde as patas da vida pisam firme,
armei o meu bivaque. Sou gaudério
nos longes destes campos assolados
por sóis intermináveis que ressecam
os verdes pervagados das querĂŞncias.
Ali onde me encontro, planto as solas
dos pés como o quebracho da fronteira.
A solas me interrogo no horizonte,
sombrero descaĂdo para a nuca,
desarmado, cismando, a bomba e a cuia
me servindo do amargo todo vida.
Bombachas encardidas, poncho roto,
nĂŁo afrouxo o garrĂŁo, sigo adelante.
Quem sou eu, afinal? Alma penada,
lobisomem perdido na campina,
um ratĂŁo do banhado espavorido
no incĂŞndio da macega desta vida,
ela prĂłpria rompida em suas partes
mais vitais, mais profundas, mais curtidas,
um pelego no sol, colgado em varas
nas ventanas do pampa enlouquecido.
Em Viagem
Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um sĂł prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarĂŁo.A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que Ă© o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.Beijo tĂŁo longo e dolente,
TĂŁo longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim…Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.Num gemido tĂŁo suave,
TĂŁo triste na noite escura,
Que Ă© como uma queixa d’ave
Presa numa sepultura!…Em sonho, Ă s vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.E sem extremo conforto
Que eu ness’hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.
O Homem Primitivo Moderno
Reparai num homem civilizado, rico, inteligente e feliz; olhai-o bem; tirai-lhe o chapéu alto, o casaco, as botas de verniz; despi-o, enfim: vereis a miséria da carne tentando um feroz regresso às formas caricatas do orogotango inicial.
Ide mais longe; penetrai-lhe o esqueleto, atravessai-lhe as entranhas: vereis então a maior das pobrezas, a miséria absoluta, a ausência de alma.
Sim: conforme a alma vai desaparecendo, o corpo vai-se sumindo e, apagando nas indecisas, grosseiras formas originárias. Por cada sentimento que morre, o cóccix aumenta um elo.
As criaturas de que se compõe a parte dominante da sociedade, estĂŁo já mais prĂłximas do macaco do que do homem. As abas da casaca sĂŁo feitas para encobrir os primeiros movimentos comprometedores da cauda… a bota de verniz tenta apertar e reduzir o pĂ© que principia a prolongar-se assustadoramente. A luva realiza, nas mĂŁos, o mesmo papel hipĂłcrita…
Continuai na vossa análise do homem civilizado que parou agora, alĂ©m, em frente duma vitrine de ourives, atraĂdo, como os moscardos, pelo fulgor dos brilhantes, das esmeraldas, dos rĂşbis, dos topázios, de todas as pedras, enfim, que o homem nĂŁo pode atirar ao seu semelhante.
Olhai-o bem; a primeira coisa que nos fere Ă© a hostilidade que se exala de toda a sua fisionomia.
Botas… as botas apertadas sĂŁo uma das maiores venturas da terra, porque, fazendo doer os pĂ©s, dĂŁo azo ao prazer de as descalçar.
…as escadas sociais vĂŁo se tornando mais largas Ă medida que se sobe. Embaixo, mal há lugar para se botar o pĂ©. Em cima, os degraus tĂŞm uma largura de vinte jardas.
ConfissĂŁo
Trinta e nove anos. Meia vida passada, se isto se for aguentando, tomba daqui, tomba dali. E tudo por fazer! Comecei tarde, sem nenhuma preparação, e com defeitos horrĂveis, que tenho ido limando pouco a pouco, mas que resistem como fortalezas. Nasci afirmativo demais, puritano demais, uno demais, apesar duma timidez confrangedora, duma aceitação natural da volĂşpia e duma dispersĂŁo aflitiva a cada instante. Tenho medo dum polĂcia e sou capaz de enfrentar um exĂ©rcito; passo a vida a praticar virtudes que proĂbo terminantemente aos outros; escrevo um poema, a dar uma consulta. De maneira que nunca consegui encontrar aquele equilĂbrio criador onde julgo existir o pomar das grandes obras. Debato-me entre forças contraditĂłrias, e ao cabo de cada livro sinto-me insatisfeito e culpado como um pecador que nĂŁo cumpriu bem a sua penitĂŞncia. NĂŁo tenho ambições fora da arte, e, dentro dela, sĂł desejo conquistar a glĂłria de a ter servido humilde e totalmente; mas nĂŁo consegui ainda dar-lhe tudo, jogar a vida e a morte por ela. Para isso era preciso calcar aos pĂ©s o homem civil que sou, e nĂŁo posso. Necessito de ter as minhas contas em dia como qualquer mortal honrado, e afligem-me os assuntos do mundo como casos pessoais.
Estamos a Cair na Mediocridade Governativa
Estamos a cair na mediocridade porque estamos muito subservientes aos padrões de eficácia e da racionalidade europeia. Os tempos festivos da revolução passaram. Teriam naturalmente que passar, mas aplica-se a terapĂŞutica da racionalização tecnocrática e isso mata o sonho. Devia haver outras vias. Vias apropriadas Ă quilo que somos. NĂŁo somos um PaĂs de grandes voos capitalistas. Se o quisermos ser caĂmos, inexoravelmente, nas garras do monopolismo. Portanto, devĂamos cultivar as pequenas e mĂ©dias empresas. Esta devia ser a lĂłgica da economia portuguesa. Devia dar-se grande valor Ă s pequenas e mĂ©dias empresas e realmente deixarmo-nos de ambições que nos alcem aos grandes padrões europeus.
(…) Os (partidos polĂticos tĂŞm) os mesmos defeitos e algumas qualidades em comum. Evidentemente que os partidos sĂŁo um defeito necessário, porque dividem, mas Ă© uma divisĂŁo necessária para agrupar, para reunir a ideia da democracia parlamentar que temos. Agora, o erro das pessoas Ă© adorná-los com mĂ©ritos extraordinários, porque isso faz-nos cair numa partidolatria, imprĂłpria de espĂritos livres! NĂŁo penso que a nossa classe polĂtica seja pior do que a classe polĂtica de outros paĂses. Ponhamos as coisas neste pĂ©: as minhas exigĂŞncias estĂ©ticas e Ă©ticas nĂŁo tornam muito fáceis as minhas relações com a classe polĂtica.
A Dádiva da Evidência de Si
Que havia, pois, mais para a vida, para responder ao seu desafio de milagre e de vazio, do que vivê-la no imediato, na execução absoluta do seu apelo? Eliminar o desejo dos outros para exaltar o nosso. Queimar no dia-a-dia os restos de ontem. Ser só abertura para amanhã. A vida real não eram as leis dos outros e a sua sanção e o seu teimoso estabelecimento de uma comunidade para o furor de uma plenitude solitária. O absoluto da vida, a resposta fechada para o seu fechado desafio só podia revelar-se e executar-se na união total com nós mesmos, com as forças derradeiras que nos trazem de pé e são nós e exigem realizar-se até ao esgotamento. Este «eu» solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo? E de que serve esse «eu» e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo! Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é. Que o despreze e o amordace o que vive no dia-a-dia animal. Mas quem teve a dádiva da evidência de si, como condenar-se a si ao silêncio prisional? Ninguém pode pagar, nada pode pagar a gratuitidade deste milagre de sermos.