O Prazer do Beneficiador é Sempre Maior do que o do Beneficiado
– Não me podes negar um facto, disse ele; é que o prazer do beneficiador é sempre maior do que o do beneficiado. Que é o benefício? É um acto que faz cessar certa privação do beneficiado. Uma vez produzido o efeito essencial, isto é, uma vez cessada a privação, torna o organismo ao estado anterior, ao estado indiferente. Supõe que tens apertado em demasia o cós das calças; para fazer cessar o incómodo, desabotoas o cós, respiras, saboreias um instante de gozo, o organismo torna à indiferença, e não te lembras dos teus dedos que praticaram o acto. Não havendo nada que perdure, é natural que a memória se esvaeça, porque ela não é uma planta aérea, precisa de chão. A esperança de outros favores, é certo, conserva sempre no beneficiado a lembrança do primeiro; mas este facto, aliás um dos mais sublimes que a filosofia pode achar em seu caminho, explica-se pela memória da privação, ou, usando de outra fórmula, pela privação continuada na memória, que repercute a dor passada e aconselha a precaução do remédio oportuno.
Não digo que, ainda sem esta circunstância, não aconteça, algumas vezes, persistir a memória do obséquio, acompanhada de certa afeição mais ou menos intensa;
Passagens sobre Plantas
164 resultadosA Manhã
A rosada manhã serena desce
Sobre as asas do Zéfiro orvalhadas;
Um cristalino aljôfar resplandece
Pelas serras de flores marchetadas;
Fugindo as lentas sombras dissipadas
Vão em sutil vapor, que se converte
Em transparentes nuvens prateadas.
Saúdam com sonora melodia
As doces aves na frondosa selva
O astro que benéfico alumia
Dos altos montes a florida relva;Uma a cantiga exprime modulada
Com suave gorjeio, outra responde
Cos brandos silvos da garganta inflada,
Como os raios, partindo do horizonte,
Ferem, brilhando com diversas cores,
As claras águas de serena fonte.Salve, benigna luz, que os resplandores,
Qual perene corrente cristalina,
Que de viçoso prado anima as flores,
Difundes da celeste azul campina,
Vivificando a lassa natureza,
Que no seio da noite tenebrosa
O moribundo sonho tinha presa.Como alegre desperta e radiosa!
De encantos mil ornada se levanta,
Qual do festivo leito a nova esposa!
A mesma anosa, carcomida planta
Co matutino orvalho reverdece.
A úmida cabeça ergue viçosa
A flor, que rociada resplandece,
E risonha,
Flores Velhas
Fui ontem visitar o jardinzinho agreste,
Aonde tanta vez a lua nos beijou,
E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,
Soberba como um sol, serena como um vôo.Em tudo cintilava o límpido poema
Com ósculos rimado às luzes dos planetas:
A abelha inda zumbia em torno da alfazema;
E ondulava o matiz das leves borboletas.Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,
A imagem que inspirava os castos madrigais;
E as vibrações, o rio, os astros, a paisagem,
Traziam-me à memória idílios imortais.E nosso bom romance escrito num desterro,
Com beijos sem ruído em noites sem luar,
Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro,
Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar.Mas tu agora nunca, ah! Nunca mais te sentas
Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,
E eu não te beijarei, às horas sonolentas,
Os dedos de marfim, polidos e delgados…Eu, por não ter sabido amar os movimentos
Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,
Eu sinto as decepções e os grandes desalentos
E tenho um riso meu como o sorrir de Judas.
As palavras ditas sem reflexão, inspiradas pela cólera, não deitam raízes em parte alguma; porém quando sugeridas pelo ciúme alastram-se quais plantas parasitas, crescem e deitam ramagem sobre a árvore que é o coração, ensombrecendo-o.
O Tempo e o Espírito
O tempo, embora faça desabrochar e definhar animais e plantas com assombrosa pontualidade, não tem sobre a alma do homem efeitos tão simples. A alma do homem, aliás, age de forma igualmente estranha sobre o corpo do tempo. Uma hora, alojada no bizarro elemento do espírito humano, pode valer cinquenta ou cem vezes mais que a sua duração medida pelo relógio; em contrapartida, uma hora pode ser fielmente representada no mostrador do espírito por um segundo.
A Grande Originalidade
É curioso. Só se julga profundo o que disser coisas diferentes de toda a gente. E todavia a grande originalidade está em dizer as mesmas coisas, mas ao nível do espanto e maravilha que nos despertam. Toda a gente sabe que o homem é mortal, mas poucos vêem isso e se espantam de que seja assim. Toda a gente sabe que há bichos e plantas e estrelas e o mais. Mas conhecê-lo ao nível do extraordinário que aí existe é raro como ser doido.
A grande originalidade não é dizer coisas novas mas ser novo diante das coisas velhas.
A amizade entre duas mulheres é planta rara, que vive geralmente vida breve.
O amor é uma experiência pela qual todo o nosso ser é renovado e refrescado como o são as plantas pela chuva após a seca.
Os Vivos Ouvem Poucamente
Os vivos ouvem poucamente. As plantas,
como o elemento aquático domina,
são dadas à conversa. A menor brisa abala
a urna de concórdia estremecida
que, assim, sensível, se derrama
e é solidão solícita.
Os vivos não ouvem nada.
Mas, havendo acedido a essa malícia
de experiência cândida,
os mortos deixam que o ouvido siga
o fluvial diálogo das plantas
umas com outras e todas com a brisa.
Melhor ainda. Quando, nas noites cálidas,
as plantas se sentem mais sozinhas,
os mortos brincam à imitação das águas
inventando palavras de consonâncias líquidas.
E esse amoroso cuidado de palavras
a urna de concórdia vegetal espevita
até que, a horas altas,
a noite, os mortos e as plantas
caiam no sono duma luz solícita.
Mudançar
Repor
na planta da cor brancura
em pedra solicitadaReler
por vacilação das sílabas
em escuridão afundadaRever
por olho areado com águas
a imagem contaminadaReter
no músculo oxigenado vaso
areal terra aterradaResistir
ao cântico suado no temor
a evolução revoltadaReaver
do padre eterno esquecido
fé febril equivocadaRematar
pontilhados no voo manual
asa de vazio blindadaReacordar
quando o tempo do morto é
vício pele recicladaRecomeçar
linguajar contínua marcha
vivente reinventada.
A Poesia
… Quantas obras de arte… Já não cabem no mundo… Temos de as pendurar fora dos quartos… Quantos livros… Quantos livrecos… Quem será capaz de os ler?… Se fossem comestíveis… Se numa panela de grande calado os fizéssemos em salada, os picássemos, os alinhássemos… Já não se pode mais… Estamos até ao pescoço… O mundo afoga-se na maré… Reverdy dizia-me: «Avisei o correio para que não me trouxesse mais livros… Não poderia abri-los. Não tenho espaço. Trepam pelas paredes, temi uma catástrofe, ruiriam em cima da minha cabeça»… Todos conhecem Eliot… Antes de ser pintor, de dirigir teatros, de escrever luminosas críticas, lia os meus versos… Sentia-me lisonjeado… Ninguém os compreendia melhor… Até que um dia começou a ler-me os seus e eu, egoisticamente, corri a protestar: «Não mos leia, não mos leia»… Fechei-me no quarto de banho, mas Eliot, através da porta, lia-mos… Fiquei muito triste… O poeta Frazer, da Escócia, estava presente… Increpou-me: «Porque tratas assim Eliot?»… Respondi: «Não quero perder o meu leitor. Cultivei-o. Conhece até as rugas da minha poesia… Tem tanto talento… Pode fazer quadros… Pode escrever ensaios… Mas eu quero manter este leitor, conservá-lo, regá-lo como planta exótica… Compreendes-me, Frazer?»… Porque a verdade, se isto continua,
Neblina
Um dedo a bordo aponta
a neblina sentada, sustentada
sobre o topo do monte.O céu está todo azul, com excepção
daqueles trapos brancos, como roupa
de alguém que passou por uma planta
com espinhos e não se acautelou.É uma espécie de água altaneira,
evadida do rio,
que ora entremostra ora esconde
fragadas, pinhal, terra
arroteada.Sim, concedo,
é muito sugestivo.Mas, cansado de pairar
nestes transes de lirismo
que me escaldam sem me purificar,
prefiro a água propriamente dita:
água com peso,
esta boa água, sólida, palpável,
que, poupando-me a pele,
me humedece as entranhas
(para não falar dos olhos,
mas isso é outra história)– e à flor da qual se repete
a neblina do monte.Ou não fosse o rio um espelho
antes de rio.
O Amor na Lama
– Esteban, o homem não poderia fazer grandes obras sem trabalhos pequenos; na maqueta do carpinteiro está todo o edifício do arquiteto, não há profissões grandes e pequenas: alegro-me que tenhas decidido ficar connosco na carpintaria, mas convém que te lembres disso. Não te esqueças de que Deus também se senta numa cadeira e come a uma mesa e dorme numa cama. Como qualquer um. Pode prescindir dos retábulos, das estátuas e dos livros que lhe dedicam, incluindo a Bíblia, mas não da cadeira, da mesa e da cama. — O meu tio esforçava-se muito. Queria que eu me sentisse bem na profissão. Que começasse a gostar dela. Acreditava que eu vivia como um fracasso a decisão de ter abandonado a Escola de Belas–Artes. Intuía certamente que eu precisava de desenvolver a minha autoestima. Mas tudo isso me parecia mera retórica — e era-o —, a verdade é que por essa altura já tinha começado a sair com Leonor e era ela quem eu amava, aprendia a gostar de mim através dela. Descobria o meu corpo em cada palmo do corpo dela, e o meu corpo ganhava valor porque lhe pertencia, era o seu complemento: acreditava que partilhávamos dois corpos que jamais poderiam separar-se e viver cada um por si.
Segue o Teu Destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-proprios.Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Tomava Daliana Por Vingança
Tomava Daliana por vingança
da culpa do pastor que tanto amava,
casar com Gil vaqueiro; e em si vingava
o erro alheio e pérfida esquivança.A discrição segura, a confiança,
as rosas que seu rosto debuxava,
o descontentamento lhas secava,
que tudo muda üa áspera mudança.Gentil planta disposta em seca terra,
lindo fruito de dura mão colhido,
lembranças d’outro amor, e fé perjura,tornaram verde prado em dura serra;
interesse enganoso, amor fingido,
fizeram desditosa a fermosura.
Tem alegria aquele que planta e cria.
Não julgues cada dia pela colheita que fazes, mas pelas sementes que plantas.
Os velhos já foram loucos, já foram rebeldes, já foram gente. E continuam a sê-lo, a malta é que os vê como plantas caídas. Se te permitires escutá-los e lhes deres tempo de antena na emissão da tua vida, não te arrependerás.
Baladas Românticas – Azul…
Lembra-te bem! Azul-celeste
Era essa alcova em que te amei.
O último beijo que me deste
Foi nessa alcova que o tomei!
É o firmamento que a reveste
Toda de um cálido fulgor:
– Um firmamento, em que puseste
Como uma estrela, o teu amor.Lembras-te? Um dia me disseste:
“Tudo acabou!” E eu exclamei:
“Se vais partir, por que vieste?”
E às tuas plantas me arrastei…
Beijei a fimbria à tua veste,
Gritei de espanto, uivei de dor:
“Quem há que te ame e te requeste
Com febre igual ao meu amor?”Por todo o mal que me fizeste,
Por todo o pranto que chorei,
– Como uma casa em que entra a peste,
Fecha essa casa em que fui rei!
Que nada mais perdure e reste
Desse passado embriagador:
E cubra a sombra de um cipreste
A sepultura deste amor!Desbote-a o inverno! o estão a creste!
Abale-a o vento com fragor!
– Desabe a igreja azul-celeste
Em que oficiava o meu amor!
Amor
Dentro da noite,
o som escuro de um monjolo
— pilão como nós chamávamos —
e a azenha mais distante, denunciavam
a clareza do riacho.A fantástica visão do passado,
memória contando histórias!Da janela fechada
uma frincha de luz ia incidir
no galho pendido, nítido aos meus olhos.
E bem na ponta —, seio tentando —
a rósea, a serena forma do pêssego
em sua penugem — puro e obsceno!
Havia vento, (não sei)
mas devia haver
quando o urubu, tétrico
e hirto no seu desequilíbrio,
pousou sobre a planta
e o fruto bicou,
e o fruto bicou
bem no jacto de luz.