Casamento
HĂĄ mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque
mas que limpe os peixes.
Eu nĂŁo. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
Ă tĂŁo bom, sĂł a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difĂcil’
‘prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mĂŁo.
O silĂȘncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
Poemas de Adélia Prado
6 resultadosOs Lugares-Comuns
Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carĂȘncia. Mesmo assim,
ele me olhou com olhos admirados
e segurou minha mĂŁo mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionei o facto.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, sĂșbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como o fazem as noivas
e as amantes. Seu nome Ă©:
Salvador do meu corpo.
Exausto
Eu quero uma licença de dormir,
perdĂŁo pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o profundo sono das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raĂzes.
Sensorial
Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo,
mastigo Ă boca nua e me regalo.
Amor, tem que falar meu bem,
me dar caixa de mĂșsica de presente,
conhecer vĂĄrios tons pra uma palavra sĂł.
EspĂrito, se for de Deus, eu adoro,
se for de homem, eu testo
com meus seis instrumentos.
Fico gostando ou perdoo.
Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.
Antes do Nome
NĂŁo me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero Ă© o esplĂȘndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sĂtios escuros onde nasce o «de», o «aliĂĄs»,
o «o», o «porĂ©m» e o «que», esta incompreensĂvel
muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho Ă© Verbo. Morre quem entender.
A palavra Ă© disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentĂssimos,
se poderĂĄ apanhĂĄ-la: um peixe vivo com a mĂŁo.
Puro susto e terror.
A Casa
à um chalé com alpendre,
forrado de hera.
Na sala,
tem uma gravura de Natal com neve.
NĂŁo tem lugar pra esta casa em ruas que se conhecem.
Mas afirmo que tem janelas,
claridade de lĂąmpada atravessando o vidro,
um noivo que ronda a casa
â esta que parece sombria â
e uma noiva lĂĄ dentro que sou eu.
Ă uma casa de esquina, indestrutĂvel.
Moro nela quando lembro,
quando quero acendo o fogo,
as torneiras jorram,
eu fico esperando o noivo, na minha casa aquecida.
NĂŁo fica em bairro esta casa
infensa à demolição.
Fica num modo tristonho de certos entardeceres,
quando o que um corpo deseja Ă© outro corpo pra escavar.
Uma ideia de exĂlio e tĂșnel.