Este é um dos Lugares
Este é um dos lugares (ou parte alguma?)
que nunca esperei ocupar ou ver sequer;
alheio em tudo, igual a tantos outros
que breves soube e de que nada guardo.
Um só espaço em verdade me pertence,
– meu berço, meu texto, meu legado:
a casa que é a mãe e viverá
enquanto eu não abdique do seu sangue.
Lá estou e serei: sou as paredes,
a escuridão que a procura e adormece,
sublimando-a tanto como a luz,
trave do seu lar frio e seu apelo,
pelas janelas vendadas defendida.
Batei à porta, chamai do seu jardim
devastado até não me ser senão lembrança:
lá dentro, responderei, embora aqui,
desde sempre à espera de ninguém.
Poemas sobre Alheio
65 resultadosO Primeiro Filho
(Carta ao amigo Bernardo Pindela)
Entre tanta miséria e tantas coisas vis
Deste vil grão de areia,
Ainda tenho o condão de me sentir feliz
Com a ventura alheia.À minha noite triste, à noite tormentosa,
Onde busco a verdade,
Chegou com asas d’oiro a canção cor-de-rosa
Da tua felicidade.És pai, viste nascer um fragmento d’aurora
Da tua alma, de ti…
Oh, momento divino em que o sorriso chora,
E em que o pranto sorri!Que ventura radiante! oh que ventura infinda!
Olímpicos amores
Ter frutos em Abril com o vergel ainda
Carregado de flores!Deslumbramento!… ver num berço o teu futuro
Sorrindo ao teu presente!…
Ter a mulher e a mãe: juntar o beijo puro
Com o beijo inocente!…Eu que vou, javali de flanco ensanguentado,
Pelos rudes caminhos
Ajoelho quando escuto à beira dum valado
Os murmúrios dos ninhos!Em tudo que alvorece há um sorriso d’esperança,
Candura imaculada!…
E quer seja na flor, quer seja na criança
Sente-se a madrugada.Quando,
Ode ao Amor
Tão lentamente, como alheio, o excesso de desejo,
atento o olhar a outros movimentos,
de contacto a contacto, em sereno anseio, leve toque,
obscuro sexo á flor da pele sob o entreaberto
de roupas soerguidas, vibração ligeira, sinal puro
e vago ainda, e súbito contrai-se,
mais não é excesso, ondeia em síncopes e golpes
no interior da carne, as pernas se distendem,
dobram-se, o nariz se afila, adeja, as mãos,
dedos esguios escorrendo trémulos
e um sorriso irónico, violentos gestos,
amor…
ah tu, senhor da sombra e da ilusão sombria,
vida sem gosto, corpo sem rosto, amor sem fruto,
imagem sempre morta ao dealbar da aurora
e do abrir dos olhos, do sentir memória, do pensar na vida,
fuga perpétua, demorado espasmo, distração no auge,
cansaço e caridade pelo desejo alheio,
raiva contida, ódio sem sexo, unhas e dentes,
despedaçar, rasgar, tocar na dor ignota,
hesitação, vertigem, pressa arrependida,
insuportável triturar, deslize amargo,
tremor, ranger, arcos, soluços, palpitar e queda.Distantemente uma alegria foi,
imensa, já tranquila, apascentando orvalhos,
de contacto a contacto, ansiosamente serenando,
Gozo Sonhado é Gozo, ainda que em Sonho
Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.
Nós o que nos supomos nos fazemos,
Se com atenta mente
Resistirmos em crê-lo.
Não, pois, meu modo de pensar nas coisas,
Nos seres e no fado me consumo.
Para mim crio tanto
Quanto para mim crio.
Fora de mim, alheio ao em que penso,
O Fado cumpre-se. Porém eu me cumpro
Segundo o âmbito breve
Do que de meu me é dado.
Já não posso ser contente
Já não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida,
Ando perdido entre a gente,
Nem morro, nem tenho vida.Prazeres que tenho visto
Onde se foram, que é deles,
Fora-se a vida com eles
Não ma vira agora nisto,
Vejo-me andar entre a gente
Como coisa esquecida,
Eu triste, outrém contente,
Eu sem vida, outrém com vida.Vieram os desenganos,
Acabaram os receios;
Agora choro meus danos,
E mais choro bens alheios;
Passou o tempo contente,
E passou tão de corrida,
Que me deixou entre a gente
Sem esperança de vida.
Tudo nos Dá o Mundo
Tudo, desde ermos astros afastados
A nós, nos dá o mundo
E a tudo, alheios, nos acrescentamos,
Pensando e interpretando.
A próxima erva a que não chega basta,
O que há é o melhor.
Meu corpo, que mais receias?
-Meu corpo, que mais receias?
-Receio quem não escolhi.-Na treva que as mãos repelem
os corpos crescem trementes.
Ao toque leve e ligeiro
O corpo torna-se inteiro,
Todos os outros ausentes.Os olhos no vago
Das luzes brandas e alheias;
Joelhos, dentes e dedos
Se cravam por sobre os medos…
Meu corpo, que mais receias?-Receio quem não escolhi,
quem pela escolha afastei.
De longe, os corpos que vi
Me lembram quantos perdi
Por este outro que terei.
Parafuso
Sabem-me o rosto,
sabem-me os pés,
sabem-me a roupa.Viram-me nu,
viram-me inteiro
no corpo imóvel.Mas só me sabem,
mas só me vêem,
mas só me enterram:inexistente,
alheio e estranho,
entrado em mim.
Hora
Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta – por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.E dormem mil gestos nos meus dedos.
Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.E de novo caminho para o mar.
Porque o Melhor, Enfim
Porque o melhor, enfim,
É não ouvir nem ver…
Passarem sobre mim
E nada me doer!_ Sorrindo interiormente,
Co’as pálpebras cerradas,
Às águas da torrente
Já tão longe passadas. _Rixas, tumultos, lutas,
Não me fazerem dano…
Alheio às vãs labutas,
Às estações do ano.Passar o estio, o outono,
A poda, a cava, e a redra,
E eu dormindo um sono
Debaixo duma pedra.Melhor até se o acaso
O leito me reserva
No prado extenso e raso
Apenas sob a ervaQue Abril copioso ensope…
E, esvelto, a intervalos
Fustigue-me o galope
De bandos de cavalos.Ou no serrano mato,
A brigas tão propício,
Onde o viver ingrato
Dispõe ao sacrifícioDas vidas, mortes duras
Ruam pelas quebradas,
Com choques de armaduras
E tinidos de espadas…Ou sob o piso, até,
Infame e vil da rua,
Onde a torva ralé
Irrompe, tumultua,Se estorce, vocifera,
Selvagem nos conflitos,
Com ímpetos de fera
Nos olhos,
Passo Triste no Mundo
Passo triste no mundo, alheio ao mundo.
Passo no mundo alheio, sem o ver,
E místico, ideal e vagabundo,
Sinto erguer-se minh’Alma do profundo
Abismo do seu Ser.Vivo de Mim, em Mim, e para Mim,
E para Deus em Mim ressuscitado,
Sou Saudade do Longe donde vim,
E sou Ânsia do Longe, em que por fim
Serei transfigurado.Vivo de Deus, em Deus, e para Deus,
E minh’alma, sonâmbula, esquecida,
Nele fitando os tristes olhos seus,
Passa triste e sozinha, olhando os céus,
No caminho da Vida.Fui Outro, e, Outro sendo, Outro serei;
Outro vivendo a mística beleza,
Por esta humana forma que encarnei,
Por lágrimas de sangue que chorei
Na terra da tristeza.Espírito na Dor purificado,
Ser que passa no mundo, sem o ver,
Em esta pobre terra de pecado,
Amor divino em Deus extasiado,
O meu Ser é Não-Ser em Outro-Ser.
O Mesmo
O mesmo Teucro duce et auspice Teucro
É sempre cras — amanhã — que nos faremos ao mar.Sossega, coração inútil, sossega!
Sossega, porque nada há que esperar,
E por isso nada que desesperar também…
Sossega… Por cima do muro da quinta
Sobe longínquo o olival alheio.
Assim na infância vi outro que não era este:
Não sei se foram os mesmos olhos da mesma alma que o viram.
Adiamos tudo, até que a morte chegue.
Adiamos tudo e o entendimento de tudo,
Com um cansaço antecipado de tudo,
Com uma saudade prognóstica e vazia.
De Longe Te Hei-de Amar
De longe te hei-de amar
– da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo, constância.Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?E, no fundo do mar,
a Estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.
Somos Estrangeiros Onde quer que Estejamos
Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde que quer que estejamos.Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros
Onde quer que moremos, tudo é alheio
Nem fala língua nossa.
Façamos de nós mesmos o retiro
Onde esconder-nos, tímidos do insulto
Do tumulto do mundo.
Que quer o amor mais que não ser dos outros?
Como um segredo dito nos mistérios,
Seja sacro por nosso.
Quarenta Anos
a Carlos Nejar
Sinto a velhice em mim oculta e rude
em meio ao sol e ao riso da manhã,
nesse engano das horas, nessa vã
esperança de eterna juventude
que se desfaz de mim, e sou maça
mordida, podre, e rio e não me ilude
esse carinho, essa algazarra. O alude
dentro de mim começa. Mesmo sã,
a estrutura se abala em sombra e ruga
e os caminhos só descem, pesa o fardo,
e entre cinzas de mim, alheio, ardo,
de um fogo já morrente em sua fuga.Mesquinho embora, curvo e pungitivo,
meu corpo vibra e se deseja vivo.
O Teu Amor, Bem Sei
o teu amor, bem sei, é uma palavra musical,
espalha-se por todos nós com a mesma ignorância,
o mesmo ar alheio com que fazes girar, suponho, os epiciclos;
ergues os ombros e dizes, hoje, amanhã, nunca mais,
surpreende o vigor, a plenitude
das coxas masculinas, habituadas ao cansaço,
separamo-nos, à procura de sinais mais fixos,
e o circuito das chamas recomeça.é um país subtil, o olho franco das mulheres,
há nos passeios garrafas com leite apenas cinzento,
os teus pais disseram: o melhor de tudo é ser engenheiro,
morrer de casaco, com todas as pirâmides acesas,
viajar de navio de buenos aires a montevideu.
esta é a viagem que não faremos nunca, soltos
na minuciosa tarde dos lábios,
ágil pobreza.permanentemente floresce o horizonte em colinas,
os animais olham por dentro, cheios de vazio,
como um ladrão de pouca perícia a luz
desfaz devagarmente os corpos.
ele exclama: quando me libertarás da tosca voz dormida,
para que seja
alto e altivo o coração da coisas? até quando aguardarei,
no harmonioso beliche, que a tua visão cesse?
Podemos Crer-nos Livres
Aqui, Neera, longe
De homens e de cidades,
Por ninguém nos tolher
O passo, nem vedarem
A nossa vista as casas,
Podemos crer-nos livres.Bem sei, é flava, que inda
Nos tolhe a vida o corpo,
E não temos a mão
Onde temos a alma;
Bem sei que mesmo aqui
Se nos gasta esta carne
Que os deuses concederam
Ao estado antes de Averno.Mas aqui não nos prendem
Mais coisas do que a vida,
Mãos alheias não tomam
Do nosso braço, ou passos
Humanos se atravessam
Pelo nosso caminho.Não nos sentimos presos
Senão com pensarmos nisso,
Por isso não pensemos
E deixemo-nos crer
Na inteira liberdade
Que é a ilusão que agora
Nos torna iguais dos deuses.
A Secreta Viagem
No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada…
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa…
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos…
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa…Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem…
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa… alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
Pequenos Poemas Mentais
Mental: nada, ou quase nada sentimental.
I
Quem não sai de sua casa,
não atravessa montes nem vales,
não vê eiras
nem mulheres de infusa,
nem homens de mangual em riste, suados,
quem vive como a aranha no seu redondel
cria mil olhos para nada.
Mil olhos!
Implacáveis.
E hoje diz: odeio.
Ontem diria: amo.
Mas odeia, odeia com indômitos ódios.
E se se aplaca, como acha o tempo pobre!
E a liberdade inútil,
inútil e vã,
riqueza de miseráveis.II
Como sempres, há-de-chegar, desde os tempos!
Vozes, cumprimentos, ofegantes entradas.
Mas que vos reunirá, pensamentos?
Chegais a existir, pensamentos?
É provável, mas desconfiados e inválidos,
Rosnando estúpidos, com cães.Ó inúteis, aquietai-vos!
Voltai como os cães das quintas
ao ponto da partida, decepcionados.
E enrolai-vos tristonhos, rabugentos, desinteressados.III
Esse gesto…
Esse desânimo e essa vaidade…
A vaidade ferida comove-me,
comove-me o ser ferido!A vaidade não é generosa, é egoísta,
Mas chega a ser bela,
Aqui Louvo os Animais
Súbdito só de quem não reina,
aqui louvo os animais.
Há, entre mim e eles, uma funda
relação de videntes:
as paisagens que fendem
e a minha, sepulta,
perfazem um mesmo habitat.
Desde que os não sondo,
fez-se luz em nosso convívio.
O ar inicial
que ensaiava, icárico,
nas bolas de sabão,
mas não atina com o vácuo
da cidade, vem-me
dos seus pulmões arborescentes.
Alheios à sua pele
na osmose dos textos,
ignoram que nas águas
por correr, desta página,
cruzam, saudando-se,
o «Beagle» e a Arca de Noé.