Poemas de Ana LuĂ­sa Amaral

3 resultados
Poemas de Ana Luísa Amaral. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

A Mais Perfeita Imagem

Se eu varresse todas as manhĂŁs as pequenas
agulhas que caem deste arbusto e o chĂŁo
que lhes dĂĄ casa, teria uma metĂĄfora perfeita para
o que me levou a desamar-te. Se todas as manhĂŁs
lavasse esta janela e, no fulgor do vidro, além
do meu reflexo, sentisse distrair-se a transparĂȘncia
que o nada representa, veria que o arbusto nĂŁo passa
de um inferno, ausente o decassĂ­labo da chama.
Se todas as manhĂŁs olhasse a teia a enfeitar-lhe os
ramos, também a entendia, a essa imperfeição
de Maio a Agosto que lhe corrompe os fios e lhes
desarma geometria. E a cor. Mesmo se agora visse
este poema em tom de conclusĂŁo, notaria como o seu
verso cresce, sem rimar, numa prosĂłdia incerta e
descontĂ­nua que foge ao meu comum. O devagar do
vento, a erosĂŁo. Veria que a saudade pertence a outra
teia de outro tempo, nĂŁo Ă© daqui, mas se emprestou
a um neurĂŽnio meu, unia memĂłria que teima ainda
uma qualquer beleza: o fogo de uma pira funerĂĄria.
A mais perfeita imagem da arte. E do adeus.

Carta Ă  Minha Filha

Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metĂĄfora dada
pela infĂąncia, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausĂȘncia
de razĂŁo nessa cadeia em sonho de novelo.

Hoje, nesta noite tĂŁo quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirĂĄ.

Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda Ă s vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas – Ă© sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontĂ­nua
de mentiras, em carinho de verso.

E o que queria dizer-te Ă© dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.

Continue lendo…

Um CĂ©u e Nada Mais

Um cĂ©u e nada mais — que sĂł um temos,
como neste sistema: sĂł um sol.
Mas luzes a fingir, dependuradas
em abóbada azul — como de tecto.
E o seu nĂșmero tal, que deslumbrados
neram os teus olhos, se tas mostrasse,
amor, tĂŁo de ribalta azul, como de
circo, e dança então comigo no
trapézio, poema em alto risco,
e um levíssimo toque de mistério.
Pega nas lantejoulas a fingir
de sóis mal descobertos e lança
agora a Ăąncora maior sobre o meu
coração. Que não te assuste o som
desse trovĂŁo que ainda agora ouviste,
era de deus a sua voz, ou mito,
era de um anjo por demais caĂ­do.
Mas, de verdade: natural fenĂłmeno
a invadir-te as veias e o cérebro,
tĂŁo frĂĄgil como ĂĄlcool, tĂŁo de
potente e liso como ĂĄlcool
implodindo do céu e das estrelas,
imensas a fingir e penduradas
sobre abĂłbada azul. Se te mostrasse,
amor, a cor do pesadelo que por
aqui passou agora mesmo, um céu
e nada mais — que nada temos,
que nĂŁo seja esta angĂșstia de
mortais (e a maldição da rima,

Continue lendo…