Poeta
Poeta, a construíres sonhos contraditórios!
Tu tens na vida uns ideais burgueses
Que não te satisfazem!Poeta, tu desejas
Misérias e reveses
Que te façam cantar.
E amas o conforto,
E gostas de jantar!…Poeta, sempre em luta vã contigo,
— Que sofres de já ser aquilo que não és,
Que sofres de não ser aquilo que queres ser…Poeta, é já bem grande o teu castigo.
É preciso viver.
Poemas sobre Bem
351 resultadosPoema da Auto-estrada
Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta.
Vai na brasa, de lambreta.Leva calções de pirata,
Vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno,
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chega aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.
Se o Queres Partilhar Fica Comigo
O dia estava pronto
mas secreto
embora a claridade o denunciasse
uma denúncia tímida pendente
de uma neutralidade pensativa
os eflúvios ligeiros se cruzavam
tentando revelar a flor de outubro
a sedentária sombra aniquilada
tremia e a lembrança dos teus olhos
se desenhava em soma de silêncio
sobre teu rosto de medalha antiga
eu vinha de cuidados iminentes
buscando te integrar numa elegia
uma elegia simples posta à margem
da solidão metálica da vida
queria a precisão poligeométrica
antecipando o ritmo em teus passos
queria te alcançar antes que a luz
pudesse deflagrar as evidências
sabendo que a evidência era mentira
e te queria plena nos meus braços
sentia esse cuidado que os enfermos
escondem na carência de seus gestos
escondem? não sei bem talvez excluam
por um acto de amor irremediável
eu sou dos que vasados se acumulam
para reconquistar sem se perder
mas aqui ninguém pára
o fruto é suave
se o queres partilhar fica comigo
A Espantosa Realidade das Cousas
A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais. Naturalmente.Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Confissão
Vivo um drama interior.
Já nele pouco a pouco me consumo.
E de tanto te buscar,
Mas sem nunca te encontrar,
Sou como um barco sem leme,
Que perdesse o rumo,
No alto mar.Da minha vida, assim,
O que vai ser nem sei!
Dias alegres houvesse…
E os dias são para mim
Rosas mortas de um jardim
Que um vendaval desfizesse.Tenho horas bem amargas.
Eu o confesso,
Eu o digo.
E se tudo passa e esqueço,
Esquecer o teu perfil
É coisa que eu não consigo.Sofro por ti. O frio do que morre
Amortalha a minha alma em saudade.
Atrás de uma ilusão a minha vida corre,
Como se fora atrás de uma verdade.A Deus peço, por fim, o meu sossego antigo.
Não me persiga mais o teu busto delgado.
Passo os dias e as noites a sonhar contigo,
Na cruz da tua ausência estou crucificado.A tua falta sinto. Não o oculto.
Ocultá-lo seria uma mentira.
Vejo por toda a parte a sombra do teu vulto,
Um Outro que Não Eu
um outro que não eu
bem mais voraz
concreto
e subtil
te poderá depois talvez contar
destes momentos cúmplices de agora
perfeitos na intimidade
da vaga dor de cabeçanão te posso adiar por minha culpa
não te posso invocar
por excesso de altruísmo ou de rancorarquitectura fria
dum gesto quase orgulho
do que já lá não coube
se nutre a tua imagemmais fácil do que tudo
seria perdoar-meperde-se o vício
por falta de virtude
Noite Fechada
L.
Lembras-te tu do sábado passado,
Do passeio que demos, devagar,
Entre um saudoso gás amarelado
E as carícias leitosas do luar?Bem me lembro das altas ruazinhas,
Que ambos nós percorremos de mãos dadas:
Às janelas palravam as vizinhas;
Tinham lívidas luzes as fachadas.Não me esqueço das cousas que disseste,
Ante um pesado tempo com recortes;
E os cemitérios ricos, e o cipreste
Que vive de gorduras e de mortes!Nós saíramos próximo ao sol-posto,
Mas seguíamos cheios de demoras;
Não me esqueceu ainda o meu desgosto
Nem o sino rachado que deu horas.Tenho ainda gravado no sentido,
Porque tu caminhavas com prazer,
Cara rapada, gordo e presumido,
O padre que parou para te ver.Como uma mitra a cúpula da igreja
Cobria parte do ventoso largo;
E essa boca viçosa de cereja
Torcia risos com sabor amargo.A Lua dava trêmulas brancuras,
Eu ia cada vez mais magoado;
Vi um jardim com árvores escuras,
Como uma jaula todo gradeado!E para te seguir entrei contigo
Num pátio velho que era dum canteiro,
3 AM
Mãe
Não consigo adormecer
Já experimentei tudo. Até contar carneirinhos
Não consigo adormecer
Nem chorar
(Que maior tragédia poderá acontecer a um homem do que a de já não ser
capaz de chorar?)Mãe
Sabias que o cordão umbilical pode funcionar
como uma corda num enforcamento?
— tenho aprendido coisas bem singulares neste
convívio com os deuses —
Um dia destes regressarei a Tebas para ser coroado
Reservei hoje mesmo um lugar num avião das Linhas Aéreas Gregas
Gostaria de brindar contigo com uma taça de orvalho
antes de partirMãe
Detesto coberturas de açúcar mesmo que levem limão
Isto é tão certo como o é tu não me compreenderes
Estava a sonhar que estava a sonhar e assim por aí adiante até ao infinito. Depois
acordei. E fui descendo vertiginosamente de sonho para sonho
Ainda não parei de acordar. E de sonharMãe
Tenho uma surpresa para ti
um caramanchão para que te possas sentar todas as tardes a catar estrelas
na minha cabeçaMãe
Abriu um concurso para preencher uma vaga de
ascensorista no Paraíso e eu concorri
Achas que tenho alguma hipótese de ser admitido?
Requiem para um Defunto Vulgar
Antoninho morreu. Seu corpo resignado
é como um rio incolor, regressando à nascente
num silêncio de espanto e mistério revelado.
Está ali – estando ausente.Jaz de corpo inteiro e fato preto.
Ele, da cabeça aos pés,
trivial e completo,
estátua de proa e moço de convés.Jaz como se dormisse (pelo menos
é o que dizem as velhas carpideiras).
Jaz imóvel, sem gestos, sem acenos.
Jaz morto de todas as maneiras.Jaz morto de cansaço, de pobreza, de fome
(sobretudo, de fome). Jaz morto sem remédio.
É apenas, sobre um papel azul, um nome.
De ser mais qualquer coisa, a morte impede-o.Jaz alheio a tudo à sua volta,
à grita dos parentes, companheiros,
como um cavalo à rédea solta
ou no mar largo, os rápidos veleiros.Jaz inútil, feio, pesado,
a colcha de crochet aconchega-o na cama.
Nunca esteve tão quente e animado.
Nunca foi tão menino de mama.Os filhos olham-no e fazem contas cuidadosas:
padre, enterro, velório, certidão
de óbito… E discutem, com manhas de raposas,
Que Mimoso Prazer!
1
Que mimoso prazer! Teu rosto amado
Me raiou na alma! Oh astro meu luzente!
Desfez-se em continente
O negrume cerrado,
Que me assombrava o coração aflito,
Em saudades tristíssimas sopito.2
Bem, como quando aponta o sol radiante
Pelos ervosos cumes dos outeiros;
Fogem bruscos nevoeiros,
Da roxa luz brilhante;
Assim, mal vi teu rosto, assim fugiam
As Mágoas, que de luto a alma cobriam3
Quem sempre assim de amor nos brandos laços!
Doces queixas de amor absorto ouvira!
Da idade não sentira
O voo. Entre os teus braços
Me corte o fio, com a fouce, a Morte;
Que perco a vida, sem sentir o corte!4
Se a meiga Vénus, se o gentil Cupido
Cede a meus votos, cede à minha Amada:
Se esta união prezada
Não rompe um Nume infido…
Não dou por mais feliz o vil Mineiro
Sobre montes de sórdido dinheiro.5
Não dou por mais feliz o Rei no trono
Lisonjado de Cortesãos astutos.
Barrow-on-Furness
I
Sou vil, sou reles, como toda a gente
Não tenho ideais, mas não os tem ninguém.
Quem diz que os tem é como eu, mas mente.
Quem diz que busca é porque não os tem.É com a imaginação que eu amo o bem.
Meu baixo ser porém não mo consente.
Passo, fantasma do meu ser presente,
Ébrio, por intervalos, de um Além.Como todos não creio no que creio.
Talvez possa morrer por esse ideal.
Mas, enquanto não morro, falo e leio.Justificar-me? Sou quem todos são…
Modificar-me? Para meu igual?…
— Acaba já com isso, ó coração!II
Deuses, forças, almas de ciência ou fé,
Eh! Tanta explicação que nada explica!
Estou sentado no cais, numa barrica,
E não compreendo mais do que de pé.Por que o havia de compreender?
Pois sim, mas também por que o não havia?
Água do rio, correndo suja e fria,
Eu passo como tu, sem mais valer…Ó universo, novelo emaranhado,
Que paciência de dedos de quem pensa
Em outras cousa te põe separado?
Não me Peçam Razões…
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.
Sensorial
Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo,
mastigo à boca nua e me regalo.
Amor, tem que falar meu bem,
me dar caixa de música de presente,
conhecer vários tons pra uma palavra só.
Espírito, se for de Deus, eu adoro,
se for de homem, eu testo
com meus seis instrumentos.
Fico gostando ou perdoo.
Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.
Há no Pensador uma Tragédia Limitada
há no pensador uma tragédia limitada
o diabo atira pelas frestas para acertar
na verdade na mãe opressora no pai incalculável
se alguma qualidade pode ser preferida
se os sentidos do filho excluírem a perda
na medida exata dos ancestrais
e reter a morte com outra igual haverá muita
precisão embora tal habilidade não restrinja
a estupidez no vazio e bastará uma brasa para
incendiar o mundo e sei que a miséria
aspirará o ar bem fundo pra estourar a razão
Canção Grata
Por tudo o que me deste:
— Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insónia, pelas ruas, como um louco…
— Obrigado, obrigado!Por aquela tão doce e tão breve ilusão.
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
— Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado…
Sem ironia, amor: — Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!
Litania do Natal
A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sono, e disse: «Meu Jesus…»
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: «Meu Jesus…»
Que então me recordei do santo dia.E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: «Meu Jesus…»
E a tarde descaiu, lenta e sombria.E o Anjo do Senhor: «Ave, Maria!»
De novo a noite, longa, escura, fria,
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: «Meu Jesus…»E assim, mais uma vez, Jesus nascia.
II Bacio
O Beijo! malva-rosa em jardim de carícias!
Vivo acompanhamento no piano dos dentes
Dos refrãos que Amor canta nas almas ardentes
Com a sua voz de arcanjo em lânguidas delícias!Divino e gracioso Beijo, tão sonoro!
Volúpia singular, álcool inenarrável!
O homem, debruçado na taça adorável,
Deleita-se em venturas que nunca se esgotam.Como o vinho do Reno e a música, embalas
E consolas a mágoa, que expira em conjunto
Com os lábios amuados na prega purpúrea…
Que um maior, Goethe ou Will, te erga um verso clássico.Quanto a mim, trovador franzino de Paris,
Só te ofereço um bouquet de estrofes infantis:
Sê benévolo e desce aos lábios insubmissos
De Uma que eu bem conheço, Beijo, e neles ri.Tradução de Fernando Pinto do Amaral
No Dia que para Sempre Separámos do Corpo
No dia que para sempre separámos do corpo,
havia nesse dia sobre o livro de gravuras
um insecto com os breves sinais de uma aranha.Esperávamos um recado que se fez esperar e
tinha as mãos no rosto e fora meu.
A medo a dor para onde não sei bem levava a dor
o rosto.Havia tudo um pouco misturado. Antigas cartas
velhos poemas.
Até do outro lado da janela víamos tristes
tristes rapazes jogando a bola,corpo jogado sob o vento de abril e o de
março.Dentro do quadro via a camisola de lã branca
e o que de loiro havia do recente sol
via a dor o recado desejado no negro azul
das aves.Sobre o céu, o mar, esse tinha-lo agora nos novos
olhos.
ALÉM ALMA
(UMA GRAMA DEPOIS)
Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?
Amar é Pensar
Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,
E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.
Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,
E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.
Amar é pensar.
E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.
Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.
Tenho uma grande distração animada.
Quando desejo encontrá-la
Quase que prefiro não a encontrar,
Para não ter que a deixar depois.
Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero.
Quero só Pensar nela.
Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar.