Poemas de Casimiro de Brito

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Poemas de Casimiro de Brito. Conheça este e outros autores famosos em Poetris.

O Ofício

Escrevo para sentir nas veias
o voo da pedra.

Antecipação da paz
neste país de granadas
moldadas
no silêncio dos frutos.

Escrevo como quem escava
no bojo da sombra
um mar de claridade.

Pedras vivas de possibilidade
as palavras levantam
o crime, os pássaros do pântano

Escrevo
no grande espaço obscuro
que somos e nos inunda.

Quem Falou em Crime?

Crime quem falou em crime
somos todos irmãos todos a mesma
carne incendiada

Quando houver um crime
o primeiro
todos seremos criminosos

Agora porém somos vivos e amamos
do nascimento à morte

Crime se o há já nos corria nas veias
quando éramos obscuros como o ventre
que nos concebeu

Não há veias que transbordem
neste corpo flexível
que nos eterniza

Vida Sempre

Entre a vida e a morte há apenas
o simples fenómeno
de uma subtil transformação. A morte
não é morte da vida.
A morte não é inação, inutilidade.
A morte é apenas a face obscura,
mínima, em gestação
de uma viagem que não cessa de ser. Aventura
prolongada
desde o porão do tempo. Projectando-se
nas naves inconcebíveis do futuro.

A morte não é morte da vida: apenas
novas formas de vida. Nova
utilidade. Outro papel a desempenhar
no palco velocíssimo do mundo. Novo ser-se (comércio
do pó) e não se pertencer.
Nova claridade, respiração, naufrágio
na maquina incomparável do universo.

Do Amor e da Morte

Temos lábios tenros para o amor
dentes afiados para a morte

Concebemos filhos para o amor
para a guerra os mandamos para a morte

Levantamos casas para o amor
cidades bombardeamos para a morte

Plantamos a seara para o amor
racionamos o trigo para a morte

Florimos atalhos para o amor
rasgamos fronteiras para a morte

Escrevemos poemas para o amor
lavramos escrituras para a morte

O amor e a morte
somos

Peço a Paz

Peço a paz
e o silêncio

A paz dos frutos
e a música
de suas sementes
abertas ao vento

Peço a paz
e meus pulsos traçam na chuva
um rosto e um pão

Peço a paz
silenciosamente
a paz a madrugada em cada ovo aberto
aos passos leves da morte

A paz peço
a paz apenas
o repouso da luta no barro das mãos
uma língua sensível ao sabor do vinho
a paz clara
a paz quotidiana
dos actos que nos cobrem
de lama e sol

Peço a paz e o
silêncio

Tempo Revisitado

O tempo a que sempre regressamos
e nos visita um instante

O tempo que depois destruímos
construímos e ali-
mentamos se nos
alimenta

O tempo onde a luz buscamos e
a morte sempre
encontramos

Da Violência

A violência que trazemos no sangue
ninguém a sabe e todos (casas
desmoronadas) a exaltam e todos
a descombinamos
gota a gota
em nossos movimentos de cinza
transitória — esta violência
residual
tem do corpo a secura a configuração
cavada no sono na fogueira sem cor
de cidades levantadas sobre a doença sobre
a simulação
de fogo suspenso
no arame dos ossos —

Noite por Ti Despida

Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que se dá em troca dos meus ombros
cansados. Reflexos
coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada
sem fim. Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho. A noite
por ti despida. Lume e perfume
do sol. Íntimo rumor do mundo.

O Amigo

1.

Um amigo, o primeiro amigo
dentro da nuvem de um sonho.

O impossível toca-nos as mãos
subitamente — o fogo, a flor concêntrica
de planetas no exílio.

Na terra do silêncio
os frutos caem
de sua própria vontade.

2.

Ao coração das coisas,
ao jugo das cores da memória,
ao pequeno desvio da sombra no deserto,
ao amor que nos alimenta de morte, à morte
que morre connosco
opomos a infinita
constelação
dos nossos sentidos.

Poeta como Tu, Irmão

Não sou mais poeta do que tu, irmão!
Tu cavas na terra a semente da vida,
eu cavo na vida a semente da libertação.

Somos partes perdidas dum só
que a razão de ser das coisas
separou. Não sou mais poeta do que tu, irmão.
A mãe que te gerou a mim me gerou —
não foi ela quem nos trocou
as mãos, a voz do coração.

Abandona um pouco a charrua, arranca
da terra os olhos cansados, e limpa
o sujo da cara ao sujo das mãos — onde
os calos são um só e as rugas da morte
caminhos cobertos de pó.

E olha
na direcção do meu braço cansado, sem
músculos quadrados
nem merda nas unhas, mas que te aponta
o mundo onde as raízes do dia, a luta, o trabalho
reclamam suor
mas não te roubam o pão.
Arranca os olhos da terra, irmão!

Tal a Vida

Em declive trepamos pela nuvem
dos dias — em declive circundamos
obscuros cristais
transportados no sangue— e somos e
levantamos
as cores primitivas da fonte a luz
que resvala corpo a corpo
a semente sazonada de quem roubou
o fogo — em declive canto
a ternura diluída a luz reflectida
neste muro onde vejo
a secreção da fala onde ouço
um caminho de metáforas: tal
a vida —

Estar no Mundo

Ao corpo colados a silenciosas
colunas de sal pavimentados eis os muros
paralelos eis as rápidas deformações da
linguagem (cálido ascetismo)
de quem arde por dentro — estar no mundo
é teu caminho estar na cólera
lavrada
e sobre si mesma dobrada e a guerra
mastigar a morte seca a subalimentada
explosão do corpo deformações suicídio
quotidiano — tal a poesia
se reflecte na luz a erosão do poema
o apodrece e movimenta— cinza mineral
entre restos de música e pão —

Nossa Memória

Nossa memória sempre foi a memória
dos monstros nosso enigmático testamento
de altas labaredas sempre foi
o caminho
devastado pelo sangue pela circuncisa memória
dos mortos pelo perfil
dos astros — nossa colorida volúpia
sempre foi dos monstros
a mais crua linguagem húmida fuga
desolada
através do tempo através do medo
de não sermos belos de não sabermos
esculpir na cinza o sopro
de tanta luz tão prostituída —

Do Poema

O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão-pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes —

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.

Da Música

A musica derrama-se
no corpo terroso
da palavra. Inclina-se
no mundo em mutação
do poema.

A música traz na bagagem
a memória do sangue; o caminho
do sol: Lume e cume
de palavras polidas.

A música rompe um rio de lava
por si mesmo criado. Lágrima
endurecida
onde cabem o mar
e a morte.