O Medo
Ninguém me roubará algumas coisas,
nem acerca de elas saberei transigir;
um pequeno morto morre eternamente
em qualquer sítio de tudo isto.É a sua morte que eu vivo eternamente
quem quer que eu seja e ele seja.
As minhas palavras voltam eternamente a essa morte
como, imóvel, ao coração de um fruto.Serei capaz
de não ter medo de nada,
nem de algumas palavras juntas?
Poemas sobre Coração
411 resultadosSe um Dia a Juventude Voltasse
se um dia a juventude voltasse
na pele das serpentes atravessaria toda a memória
com a língua em teus cabelos dormiria no sossego
da noite transformada em pássaro de lume cortante
como a navalha de vidro que nos sinaliza a vidasulcaria com as unhas o medo de te perder… eu
veleiro sem madrugadas nem promessas nem riqueza
apenas um vazio sem dimensão nas algibeiras
porque só aquele que nada possui e tudo partilhou
pode devassar a noite doutros corpos inocentes
sem se ferir no esplendor breve do amordepois… mudaria de nome de casa de cidade de rio
de noite visitaria amigos que pouco dormem e têm gatos
mas aconteça o que tem de acontecer
não estou triste não tenho projectos nem ambições
guardo a fera que segrega a insónia e solta os ventos
espalho a saliva das visões pela demorada noite
onde deambula a melancolia lunar do corpomas se a juventude viesse novamente do fundo de mim
com suas raízes de escamas em forma de coração
e me chegasse à boca a sombra do rosto esquecido
pegaria sem hesitações no leme do frágil barco…
A Matança
Não penses
que a carne apenas é aquela oca
lívida carcaça
em imóvel galope alucinado,
embarrada numa trave da adega.Não penses
que o milagre anual da salgadeira
vem sem morte e sem trabalhos. Não:Contar-te-ei
que primeiro atam o porco em sua loja
com uma corda em torno do focinho
e o arrastam à força para o ar lavado e frio.Contar-te-ei
que o porco luta e resiste: ora sentado
sobre os quartos traseiros (os futuros presuntos),
ora comicamente no solo as quatro patas
fincando com bravura se defende
da mal-agourada violação. Por fim, cedendo,
colocam-no, ainda contrafeito,
entre roncos, bufos e sacões,
no banco, deitado sobre o lado,
por forma a expor o vulnerável,
comestível coração.Contar-te-ei
que quando a faca penetra nas entranhas,
qual punhal vingador de antiga fome,
o grito é tal, tão desolado e aflito,
tão humano, tão digno de compaixão,
tão de criatura insultada e indefesa –
que tenho de tapar a mãos ambas os ouvidos
e recuar para os fundos da casa,
A Piedosa Beppa
Enquanto o meu corpo for belo
É pecado ser piedosa,
É sabido que Deus gosta das mulheres,
E das bonitas sobretudo.
Ele perdoará, tenho a certeza,
Facilmente ao pobre fradezinho
Que tanto procura a minha companhia
Como muitos outros fradezinhos.Não é um velhorro padre da Igreja, .
Não, é jovem, muitas vezes vermelho,
Muitas vezes, apesar da mais cinzenta tristeza,
Pleno de desejo e de ciúme.
Não gosto dos velhos.
Ele não gosta das velhas:
Que admiráveis e sábios
São os caminhos do Senhor!A Igreja sabe viver,
Sonda os corações e os rostos,
Insiste em perdoar-me…
Quem não me perdoará, então?
Três palavras na ponta da língua,
Uma reverência e ide embora:
O pecado deste minuto
Apagará o antigo.Bendito seja Deus na Terra,
Gosta das raparigas bonitas
E perdoa de bom grado
Os tormentos do amor.
Enquanto o meu corpo for belo
É pena ser piedosa;
Case o diabo comigo
Quando eu já não tiver dentes.
Gozo e Dor
Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
– Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.Dói-me a alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida – ou a razão.
Todo o Amor em Nosso Amor se Encerra
Minha moça selvagem, tivemos
que recuperar o tempo
e caminhar para trás, na distância
das nossas vidas, beijo a beijo,
retirando de um lugar o que demos
sem alegria, descobrindo noutro
o caminho secreto
que aproximava os teus pés dos meus,
e assim tornas a ver
na minha boca a planta insatisfeita
da tua vida estendendo as raízes
para o meu coração que te esperava.
E entre as nossas cidades separadas
as noites, uma a uma,
juntam-se à noite que nos une.
Tirando-as do tempo, entregam-nos
a luz de cada dia,
a sua chama ou o seu repouso,
e assim se desenterra
na sombra ou na luz nosso tesouro,
e assim beijam a vida os nossos beijos:
todo o amor em nosso amor se encerra:
toda a sede termina em nosso abraço.
Aqui estamos agora frente a frente,
encontrámo-nos,
não perdemos nada.
Percorremo-nos lábio a lábio,
mil vezes trocámos
entre nós a morte e a vida,
tudo o que trazíamos
quais mortas medalhas
atirámo-lo ao fundo do mar,
tudo o que aprendemos
de nada serviu:
começámos de novo,
Uma flor de verde pinho
Eu podia chamar-te pátria minha
dar-te o mais lindo nome português
podia dar-te um nome de rainha
que este amor é de Pedro por Inês.Mas não há forma não há verso não há leito
para este fogo amor para este rio.
Como dizer um coração fora do peito?
Meu amor transbordou. E eu sem navio.Gostar de ti é um poema que não digo
que não há taça amor para este vinho
não há guitarra nem cantar de amigo
não há flor não há flor de verde pinho.Não há barco nem trigo não há trevo
não há palavras para dizer esta canção.
Gostar de ti é um poema que não escrevo.
Que há um rio sem leito. E eu sem coração.
Bela
Bela,
como na pedra fresca
da fonte, a água
abre um vasto relâmpago de espuma,
assim é o sorriso do teu rosto,
bela.Bela,
de finas mãos e delicados pés
como um cavalinho de prata,
caminhando, flor do mundo,
assim te vejo,
bela.Bela,
com um ninho de cobre enrolado
na cabeça, um ninho
da cor do mel sombrio
onde o meu coração arde e repousa,
bela.Bela,
não te cabem os olhos na cara,
não te cabem os olhos na terra.
Há países, há rios
nos teus olhos,
a minha pátria está nos teus olhos,
eu caminho por eles,
eles dão luz ao mundo
por onde quer que eu vá,
bela.Bela,
os teus seios são como dois pães feitos
de terra cereal e lua de ouro,
bela.Bela,
a tua cintura
moldou-a o meu braço como um rio quando
passou mil anos por teu doce corpo,
bela.Bela,
não há nada como as tuas coxas,
O Homem e o Mar
Homem livre, o oceano é um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu íntimo sentir, teu coração ardente.Gostas de te banhar na tua própria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mística linguagem.Vós sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!E há séculos mil, séc’ulos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n’uma luta selvagem,
De tal modo gostais n’uma luta selvagem,
Eternos lutador’s ó irmãos implacáveis!Tradução de Delfim Guimarães
Tempo
Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.Tempo…
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!
Povoamento
No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera
A Sensibilidade Humanizada
Que lindos olhos de azúl inocente os do pequenito do agiota!
Santo Deus, que entroncamento esta vida!
Tive sempre, feliz ou infelizmente, a sensibilidade humanizada.
E toda a morte me doeu sempre pessoalmente,
Sim, não só pelo mistério de ficar inexpressivo o orgânico,
Mas de maneira directa, cá do coração.Como o sól doura as casas dos réprobros!
Poderei odiá-los sem desfazer no sol?Afinal que coisa a pensar com o sentimento distraído
Por causa dos olhos de criança de uma criança …
Amor Pacífico e Fecundo
Não quero amor
que não saiba dominar-se,
desse, como vinho espumante,
que parte o copo e se entorna,
perdido num instante.Dá-me esse amor fresco e puro
como a tua chuva,
que abençoa a terra sequiosa,
e enche as talhas do lar.
Amor que penetre até ao centro da vida,
e dali se estenda como seiva invisível,
até aos ramos da árvore da existência,
e faça nascer
as flores e os frutos.
Dá-me esse amor
que conserva tranquilo o coração,
na plenitude da paz!Tradução de Manuel Simões
Amor o Quis assim
Agravos de Colopêndio
Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me dura,
não tardes triste ventura,
que a dor não se doi de mi,
e sem ti não tenho cura.Foges-me, sabendo certo
que passo perigo marinho,
e sem ti vou tão deserto
que, quando cuido que acerto,
vou mais fora de caminho.
Porque tais carreiras sigo,
e com tal dita naci
nesta vida, em que não vivo,
que eu cuido que estou comigo,
e ando fora de mi.Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acordo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, me escondo;
quando espero, desconfio.Não sei se sei o que digo,
que cousa certa não acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais perto
de ter mor guerra comigo.
Prometem-me uns vãos cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão descansados;
e eu acho-os todos mudados
em outros mundos perdidos.
A verdade é que fomos
A verdade é que fomos
feitos do mesmo sangue
violento e humildeA verdade é que temos
ambos a graça de compreender
todos os homens e todas as estrelasA verdade é que Deus
nos ensinou
que este é o tempo da razão ardente.Deus hoje deu-me um pouco
do que toda a vida lhe pedi
foi esta calma e simples aceitação
de que é preciso que estejas
longe de mim
para que amando eu possa conservar
o meu coração puro.As ruas hoje pareciam mais largas
e mais clarasAs casas e as pessoas
pareciam diferentesFoi só o tempo de pedir a Deus
que prolongasse o generoso engano.Tu ensinaste-me as palavras simples
as palavras belas
as palavras justasE fizeste com que eu já não saiba
falar de outra maneira.O amor substitui
o Sol — que tudo ilumina.Sonhar contigo é quase como
saber que existo para além de mim.Se basta que de mim te lembres
para que o sono facilmente venha
porque não hás-de dar-me amor a paz
com que o meu coração de há tanto tempo sonhaVês como é tão simples
ter o coração
tão perto da terra
e os olhos nos olhos
e a alma tão perto
da tua almaPor que será
que quanto mais repartimos
o coração
maior e mais nosso ele fica?
Vaidosa
Dizem que tu és pura como um lírio
E mais fria e insensível que o granito,
E que eu que passo aí por favorito
Vivo louco de dor e de martírio.Contam que tens um modo altivo e sério,
Que és muito desdenhosa e presumida,
E que o maior prazer da tua vida,
Seria acompanhar-me ao cemitério.Chamam-te a bela imperatriz das fátuas,
A déspota, a fatal, o figurino,
E afirmam que és um molde alabastrino,
E não tens coração, como as estátuas.E narram o cruel martirológio
Dos que são teus, ó corpo sem defeito,
E julgam que é monótono o teu peito
Como o bater cadente dum relógio.Porém eu sei que tu, que como um ópio
Me matas, me desvairas e adormeces,
És tão loura e dourada como as messesE possuis muito amor… muito amor-próprio.
Viola Chinesa
Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a parlenda,
Sem que, amadornado, eu atenda
A lengalenga fastidiosa.Sem que o meu coração se prenda,
Enquanto, nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a parlenda.Mas que cicatriz melindrosa
Há nele, que essa viola ofenda
E faz que as asitas distenda
Numa agitação dolorosa?Ao longo da viola, morosa…
Memento por um coração que ladra
O
cão
que
mais
ganir
é
francês,
eco
nostálgico
de
uma
Bretanha
em fúria,
uvas
sangrentas,
espelho
ratado
pelo
sítio
do umbigo.
Um
bicho
que
gane
merece
os
ardis
todos
e
sulfúricas
desgraças.
Dá-se
ao
animal
o
que
vier
do
medo
(rebuçado
com
buço
de
sapo)
e
as
máscaras
do
Lácio
passam.
Então
ser
voada
flor
em chaga
ou
simples
cão
já
não
atrapalha
nem
é trapaça.
Um
coração
que
ladra
tem
sempre
boa
raça.
A Guerra que Aflige com seus Esquadrões
A guerra, que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer coisas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.A química directa da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as coisas pré-humanas, mesmo no homem,
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
O Mesmo
O mesmo Teucro duce et auspice Teucro
É sempre cras — amanhã — que nos faremos ao mar.Sossega, coração inútil, sossega!
Sossega, porque nada há que esperar,
E por isso nada que desesperar também…
Sossega… Por cima do muro da quinta
Sobe longínquo o olival alheio.
Assim na infância vi outro que não era este:
Não sei se foram os mesmos olhos da mesma alma que o viram.
Adiamos tudo, até que a morte chegue.
Adiamos tudo e o entendimento de tudo,
Com um cansaço antecipado de tudo,
Com uma saudade prognóstica e vazia.