Da Mais Alta Janela da Minha Casa
Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.
E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.
Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?
Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.
Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi
sua.
Passo e fico,
Poemas sobre Corpo
450 resultadosOs Amantes Obscuros
Nossos sentidos juntos fazem chama:
e as fantasias nossas vão soltar
os desejos desertos de quem ama
e em verso ou coração se quis tornar.Nossos sentidos são matéria prima
de um canto que é mais leve do que o ar;
o mundo todo não nos adivinha:
somos sombra sem luz, sequer luar.Que o corpo quebre a noite desolada,
que o corvo ceda a voz à escuridão:
mil luzes são o nome da amada;
quem se perdeu no verso é sem perdão.
O Dia Segue o Curso Itinerante
I
Assim te amei, amada, assim te amei
de amor tão grande e puro que secou
no peito meu o rio que corria
submisso e atento para os braços teus.
Nos ermos vales agora percorro
os gestos esquecidos, densas brumas
do rio que fui, o rio que fomos,
largas águas seguindo o mar da noite.
Assim te amei o amor maior que pude.
E, mais ainda, a minha vida foi
uma desfeita nau vagando a esmo
o mar do tempo, o mar janeiro, o mar
que perdi. E agora, de ti disperso,
nos desertos de mim, sem fim, caminho.II
E vou por outras águas procurando
o manso pouco, o malvo campo onde
apascentar o rebanho de mágoas,
o carro de afectos que mantenho
guardados no denso peito, tangidos
pelo vento no dorso do horizonte.
Largos desertos! abrandai a pena
sem fim que me domina! Alvos lírios,
rosas, boninas, nardos e outras flores!
Vinde ao menos cobrir-me a branda fronte
de púrpura, de orvalho e calmaria.
Eis que me vou por este vasto mar
de afagos e carícias inconstantes,
Entre a Flor e o Tempo
Também de dor se morre pois é morte
o sentimento ausente. O ser feliz
é ser presente, sem que mais importe
esse profundo sulco e a cicatriz
que no corpo nos marca o sofrimento.
Assim é nossa vida, sempre o lance
de viver, mesmo em dor, e dos momentos
erguer templos, embora breve o alcance
em nós do tempo. E o que restar do ardor
com que se vive o amor enfim carrega
em rosa mais perfeita e em outro amor
sonhado da extensão de nossa entrega.
No impulso com que o espaço alcança o tempo
a vida se ergue além do sofrimento.
Quero a Fome de Calar-me
Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banqueteA única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedoQuero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. CercoOs sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncosAs mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadasCaem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança
Balança
O muito que me recusam,
dá-me o poema
em seu corpo de ar.A alma faz o que não existe
e da sombra pousada sobre os olhos
vai desenhando a figura além do alcance das mãos.É pouco, é bastante,
é um ter sem que se tenha,
um tempo que parece não passar
pois que nada acontecendo,
nada é destruído.
Não: não Digas Nada!
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo jáÉ ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.
Hino à Alegria
Tenho-a visto passar, cantando, à minha porta,
E às vezes, bruscamente, invadir o meu lar,
Sentar-se à minha mesa, e a sorrir, meia morta,
Deitar-se no meu leito e o meu sono embalar.Tumultuosa, nos seus caprichos desenvoltos,
Quase meiga, apesar do seu riso constante,
De olhos a arder, lábios em flor, cabelos soltos,
A um tempo é cortesã, deusa ingénua ou bacante…Quando ela passa, a luz dos seus olhos deslumbra;
Tem como o Sol de Inverno um brilho encantador;
Mas o brilho é fugaz, — cintila na penumbra,
Sem que dele irradie um facho criador.Quando menos se espera, irrompe de improviso;
Mas foge-nos também com uma presteza igual;
E dela apenas fica um pálido sorriso
Traduzindo o desdém duma ilusão banal.Onda mansa que só à superfície corre,
Toda a alegria é vã; só a Dor é fecunda!
A Dor é a Inspiração, louro que nunca morre,
Se em nós crava a raiz exaustiva e profunda!No entanto, eu te saúdo e louvo, hora dourada,
Em que a Alegria vem extinguir,
A de Sempre, Toda Ela
Se eu vos disser: «tudo abandonei»
É porque ela não é a do meu corpo,
Eu nunca me gabei,
Não é verdade
E a bruma de fundo em que me movo
Não sabe nunca se eu passei.O leque da sua boca, o reflexo dos seus olhos
Sou eu o único a falar deles,
O único a ser cingido
Por esse espelho tão nulo em que o ar circula
[através de mim
E o ar tem um rosto, um rosto amado,
Um rosto amante, o teu rosto,
A ti que não tens nome e que os outros ignoram,
O mar diz-te: sobre mim, o céu diz-te: sobre mim,
Os astros adivinham-te, as nuvens imaginam-te
E o sangue espalhado nos melhores momentos,
O sangue da generosidade
Transporta-te com delícias.Canto a grande alegria de te cantar,
A grande alegria de te ter ou te não ter,
A candura de te esperar, a inocência de te
[conhecer,
Ó tu que suprimes o esquecimento, a esperança e
[a ignorância,
Que suprimes a ausência e que me pões no mundo,
Sede
Boca invisível
na flor da boca,
lábios rachados
de sol e sal,
de folha e palha.
Língua de brasa
queima a garganta;
voz abafada,
som que farfalha.
As cimitarras
voam ao vento,
cortam papéis
(brancas mortalhas).
Ossos ressecos
feitos de pó,
baixos-relevos
no chão gretado.
Rente à corrente
de águas que fervem
alço o meu corpo
círio fanado,
chama indecisa
que arde tão só.
Ser Real quer Dizer não Estar Dentro de Mim
Seja o que for que esteja no centro do Mundo,
Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,
E quando digo «isto é real», mesmo de um sentimento,
Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,
Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.Ser real quer dizer não estar dentro de mim.
Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.
Sei que o Mundo existe, mas não sei se existo.
Estou mais certo da existência da minha casa branca
Do que da existência interior do dono da casa branca.
Creio mais no meu corpo do que na minha alma,
Porque o meu Corpo apresenta-se no meio da realidade.
Podendo ser visto por outros,
Podendo tocar em outros,
Podendo sentar-se e estar de pé,Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.
Exista para mim — nos momentos em que julgo que efectivamente existe —
Por um empréstimo da realidade exterior do Mundo.Se a alma é mais real
Que o mundo exterior, como tu, filósofo, dizes,
Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade?
Respiro o teu corpo
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
Não Choro pela Pátria
Não choro pela pátria Ninguém chora pela pátria
Retém-se o grito que lavra pelo corpo
sulcos sangrentos e o faz sentir em si a pele
que se separa e se encolhe ante a violência
da dispersão comum e do falso fulgor
que encobre a irreparável divisão
de se ter perdido o universo e a viva comunidade
Onde estão aqueles que poderiam metamorfosear
a indigência da separação real
abrindo um espaço de respiração solar
e reunir num todo os que conhecem a sua solidão
e os que nem sequer sentem a vertigem de a nada pertencerem
senão à negação que se afirma em lugar da integridade viva?
A Questão deste Corpo
A questão deste corpo está hoje no esquecimento
dogma sobre ele erguido há muito tempo: é
um corpo flutuante confuso próximo de
um conhecimento verbal
questão em si mesmo questionando teoria
opinião tradicional.Contamos histórias
renunciamos a determinar-lhe origem
recurso a outro corpo perguntando reclamando
a perder de vista.Se interrogo retenho a questão quotidiana
o defeito do corpo disponível
ante toda a constatação todo o exame.(Esta a coragem das mãos ao pensamento
lenta e solitária
no silêncio da pedra disparada
do alto do tempo.)
De Memória
Nunca te surpreendeu o sorriso estático
das imagens antigas? Alguma coisa aqui
tivemos de perder. Percorro dias e corpos na memória,
mas o que procuro mais é não te ver.Quem ama quem? As máscaras trocaram-se
e a tua voz ressoa neste palco.
Trouxe versos e música para te dar,
mas o rosto que tivemos já partiu;
fiquei eu só, à beira da memória,
água do mar que não serve para beber.Porque esta foi a paixão, o grande acto,
a tímida paixão de asas de chumbo.
Eu vi-te muitas vezes frente ao mar,
mas quem de nós para acender a cinza?
– ronda-nos a ave de presa despojada
sobre os malefícios. Aliás, coisas passadas.Não te surpreendeu? O amor
surpreende – não convém, desarruma.
E nunca se ama ao certo quem se ama.
Procuramos apenas um brilho,
um brilho muito intenso no olhar,
um brilho que não vamos definir
e que algum dia iremos renegar.
Dois Excertos de Odes
(Fins de duas odes, naturalmente)
I
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
O Amor Bate na Porta
Cantiga do amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito!O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
Saudade
Saudade – O que será… não sei… procurei sabê-lo
em dicionários antigos e poeirentos
e noutros livros onde não achei o sentido
desta doce palavra de perfis ambíguos.Dizem que azuis são as montanhas como ela,
que nela se obscurecem os amores longínquos,
e um bom e nobre amigo meu (e das estrelas)
a nomeia num tremor de cabelos e mãos.Hoje em Eça de Queiroz sem cuidar a descubro,
seu segredo se evade, sua doçura me obceca
como uma mariposa de estranho e fino corpo
sempre longe – tão longe! – de minhas redes tranquilas.Saudade… Oiça, vizinho, sabe o significado
desta palavra branca que se evade como um peixe?
Não… e me treme na boca seu tremor delicado…
Saudade…
Tradução de Rui Lage
O Nascimento
Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Rompendo a sombra etérea do crepúsculo!
A paisagem tornou-se mais estranha,
Mais cheia de silêncio e de mistério!
Dormem ainda as árvores e os homens,
E dorme, em alto ramo, a cotovia…
E, se ergue já seu canto, é porque sonha
julga ver, sonhando, a luz do dia!E, pelos negros píncaros, a estrela
É divino sorriso alumiante.
Oh, que esplendor! Que formosura aquela!
É lírio de oiro aberto! É rosa a arder!Aí vem a estrela! Aí vem, sobre a montanha,
Tão virginal, tão nova, que parece
Sair das mãos de Deus, a vez primeira!E como, sobre os montes, resplandece!
Persegue-a o sol amado… No oriente,
Alastra um nimbo anímico de luz.
E a antiga dor das trevas, suavemente,
Ondula, em transparência e palidez.Aí vem a estrela, alumiando a serra!
E os olhos encantados dos pastores
Voltam-se para a estrela… E cá na terra
Há mágoas e penumbras, a fugir…Como ela voa, cintilando e rindo
Aos penhascos agrestes e desnudos!
O Amor, um Dever de Passagem
Fui envenenado pela dor obscura do Futuro.
Eu sabia já que algo se preparava contra o meu corpo.
Agora torço-me de agonia
nos versos deste poema.
Esta é a terra outrora fértil que os meus dedos dilaceram.
Os meus lábios são feitos desta terra,
são lama quente.
Vou partir pelo teu rosto para mais longe.
A minha fome é ter-te olhado
e estar cego. Agora eu sei que te abres para o fogo
do relâmpago.
Tenho a convicção dos temporais.
já não sei nem o que digo nem o que isso importa. Guia
dos meus cabelos rasos, da melancolia,
da vida efémera dos gestos.
Nesse dia fui melhor actor do que a minha sinceridade.A cesura enerva-me no estômago
Cortei de manhã as pontas dos dedos mas sei já que
elas crescerão de novo a proteger as unhas.
Talvez a vida seja estranha,
talvez a vida seja simples,
talvez a vida seja outra vida.
A linha branca da Beleza é a minha atitude que se transforma.A violência do sono sobe
sobre o meu conhecimento.