Português Vulgar
O meu gato deixa-se ficar
em casa, arejando o prato
e o caixote das areias. Já não vai
de cauda erguida contestar o domínio
dos pedantes de raça, pelos
quintais que restam. O meu gato
é um português vulgar, um tigre
doméstico dos que sabem caçar ratos e
arreganhar dentes a ordens despóticas. Mas
desistiu de tudo, desde os comícios nocturnos
das traseiras até ao soberano desprezo
pela ração enlatada, pelo mercantilismo
veterinário ou pela subserviência dos cães
vizinhos. Já falei deste gato
noutro poema e da sua genealogia
marinheira, embarcada nas antigas
naus. Se o quiserem descobrir, leiam
esse poema, num livro certamente difícil
de encontrar. E quem procura hoje
livros de poemas? Eu ainda procuro,
nos olhos do meu gato, os
dias maiores de Abril.
Poemas sobre Dentes de Inês Lourenço
2 resultados Poemas de dentes de Inês Lourenço. Leia este e outros poemas de Inês Lourenço em Poetris.
Primeira Casa
Muitas vezes, por outras casas
e noutros países sonhava
com o soalho antigo e a varanda
onde um entardecer de plátanos
enchia o peito de uma secreta
ansiedade, sem motivo. O quarto
da Mãe, esse lugar de mistérios
fixara-se na sua memória, como
um quadro de autor irremediavelmente
perdido. Sempre que regressava
minguava-lhe a coragem adiada
para pedir aos ocasionais locatários,
a permissão provavelmente estranha de
uma visita. Um dia a velha casa
debruçada sobre os telhados,
apareceu-lhe quase demolida e agora
avultava como um dente postiço, com
uma loja de lingerie barata no
rés-do-chão e um par de janelas
com alumínio e sem mistério
onde os plátanos, há muito ceifados
pelo asfalto, recusariam entardecer.