Deixai a Vida aos Crentes Mais Antigos
Vós que, crentes em Cristos e Marias,
Turvais da minha fonte as claras águas
Só para me dizerdes
Que há águas de outra espécieBanhando prados com melhores horas
Dessas outras regiões pra que falar-me
Se estas águas e prados
São de aqui e me agradam?Esta realidade os deuses deram
E para bem real a deram externa.
Que serão os meus sonhos
Mais que a obra dos deuses?Deixai-me a Realidade do momento
E os meus deuses tranqüilos e imediatos
Que não moram no Vago
Mas nos campos e rios.Deixai-me a vida ir-se pagãmente
Acompanhada pelas avenas tênues
Com que os juncos das margens
Se confessam de Pã.Vivei nos vossos sonhos e deixai-me
O altar imortal onde é meu culto
E a visível presença
Os meus próximos deuses.Inúteis procos do melhor que a vida,
Deixai a vida aos crentes mais antigos
Que a Cristo e a sua cruz
E Maria chorando.Ceres, dona dos campos, me console
E Apolo e Vênus,
Poemas sobre Deuses de Ricardo Reis
36 resultadosSegue o Teu Destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nos queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-proprios.Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Vem Sentar-te Comigo, Lídia, à Beira do Rio
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
No Mundo, só Comigo, me Deixaram
No mundo, só comigo, me deixaram
Os deuses que dispõem.
Não posso contra eles: o que deram
Aceito sem mais nada.
Assim, o trigo baixa ao vento, e, quando
O vento cessa, ergue-se.
Tirem-me os Deuses o Amor, Glória e Riqueza
Tirem-me os deuses
Em seu arbítrio
Superior e urdido às escondidas
O Amor, glória e riqueza.Tirem, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A consciência lúcida e solene
Das coisas e dos seres.Pouco me importa
Amor ou glória,
A riqueza é um metal, a glória é um eco
E o amor uma sombra.Mas a concisa
Atenção dada
Às formas e às maneiras dos objetos
Tem abrigo seguro.Seus fundamentos
São todo o mundo,
Seu amor é o plácido Universo,
Sua riqueza a vida.A sua glória
É a suprema
Certeza da solene e clara posse
Das formas dos objetos.O resto passa,
E teme a morte.
Só nada teme ou sofre a visão clara
E inútil do Universo.Essa a si basta,
Nada deseja
Salvo o orgulho de ver sempre claro
Até deixar de ver.
Minhas São se as Tenho
Os deuses e os Messias que são deuses
Passam, e os sonhos vãos que são Messias
A terra muda dura.
Nem deuses, nem Messias, nem idéias
Que trazem rosas. Minhas são se as tenho.
Se as tenho, que mais quero?
Ninguém Vê o Deus que Conhece
Ninguém, na vasta selva virgem
Do mundo inumerável, finalmente
Vê o Deus que conhece.
Só o que a brisa traz se ouve na brisa
O que pensamos, seja amor ou deuses,
Passa, porque passamos.
Não Sejamos Inteiros numa Fé talvez sem Causa
Meu gesto que destrói
A mole das formigas,
Tomá-lo-ão elas por de um ser divino;
Mas eu não sou divino para mim.Assim talvez os deuses
Para si o não sejam,
E só de serem do que nós maiores
Tirem o serem deuses para nós.Seja qual for o certo,
Mesmo para com esses
Que cremos serem deuses, não sejamos
Inteiros numa fé talvez sem causa.
Sereno e Vendo a Vida à Distância a que Está
A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
Dos troncos de ramos Secos.
O frio leve treme.Desterrado da pátria antiquíssima da minha crença,
Consolado só por pensar nos deuses,
Aqueço-me trémulo
A outro sol do que este.O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole
O que alumiava os passos lentos e graves
De Aristóteles falando.
Mas Epicuro melhorMe fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
Sereno e vendo a vida
À distância a que está.
Amo o que Vejo
Amo o que vejo porque deixarei
Qualquer dia de o ver.
Amo-o também porque é.No plácido intervalo em que me sinto,
Do amar, mais que ser,
Amo o haver tudo e a mim.Melhor me não dariam, se voltassem,
Os primitivos deuses,
Que também, nada sabem.
Sofro, Lídia, do Medo do Destino
Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses minha vida sempre
Sem renovarMeus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.
Aos Deuses Peço só que me Concedam o Nada lhes Pedir
Aos deuses peço só que me concedam
O nada lhes pedir.
A dita é um jugo
E o ser feliz oprime
Porque é um certo estado.
Não quieto nem inquieto meu ser calmo
Quero erguer alto acima de onde os homens
Têm prazer ou dores.
Melhor Destino que o de Conhecer-se
Melhor destino que o de conhecer-se
Não frui quem mente frui. Antes, sabendo,
Ser nada, que ignorando:
Nada dentro de nada.
Se não houver em mim poder que vença
As Parcas três e as moles do futuro,
Já me dêem os deuses o poder de sabê-lo;
E a beleza, incriável por meu sestro,
Eu goze externa e dada, repetida
Em meus passivos olhos,
Lagos que a morte seca.
A Vida Passa como se Temêssemos
Deixemos, Lídia, a ciência que não põe
Mais flores do que Flora pelos campos,
Nem dá de Apolo ao carro
Outro curso que Apolo.Contemplação estéril e longínqua
Das coisas próximas, deixemos que ela
Olhe até não ver nada
Com seus cansados olhos.Vê como Ceres é a mesma sempre
E como os louros campos intumesce
E os cala prás avenas
Dos agrados de Pã.Vê como com seu jeito sempre antigo
Aprendido no orige azul dos deuses,
As ninfas não sossegam
Na sua dança eterna.E como as heniadríades constantes
Murmuram pelos rumos das florestas
E atrasam o deus Pã.
Na atenção à sua flauta.Não de outro modo mais divino ou menos
Deve aprazer-nos conduzir a vida,
Quer sob o ouro de Apolo
Ou a prata de Diana.Quer troe Júpiter nos céus toldados.
Quer apedreje com as suas ondas
Netuno as planas praias
E os erguidos rochedos.Do mesmo modo a vida é sempre a mesma.
Nós não vemos as Parcas acabarem-nos.
Não Sei se é Amor que Tens, ou Amor que Finges
Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?
Para os Deuses as Coisas São Mais Coisas
Para os deuses as coisas são mais coisas.
Não mais longe eles vêem, mas mais claro
Na certa Natureza
E a contornada vida…
Não no vago que mal vêem
Orla misteriosamente os seres,
Mas nos detalhes claros
Estão seus olhos.
A Natureza é só uma superfície.
Na sua superfície ela é profunda
E tudo contém muito
Se os olhos bem olharem.
Aprende, pois, tu, das cristãs angústias,
Ó traidor à multíplice presença
Dos deuses, a não teres
Véus nos olhos nem na alma.