Aqui Onde se Espera
Aqui onde se espera
– Sossego, só sossego –
Isso que outrora era,Aqui onde, dormindo,
-Sossego, só sossego-
Se sente a noite vindo,E nada importaria
-Sossego, só sossego-
Que fosse antes o dia,Aqui, aqui estarei
-Sossego, só sossego –
Como no exílio um rei,Gozando da ventura
– Sossego, só sossego –
De não ter a amarguraDe reinar, mas guardando
– Sossego, só sossego –
O nome venerando…Que mais quer quem descansa
– Sossego, só sossego –
Da dor e da esperança,Que ter a negação
– Sossego, só sossego –
De todo o coração ?
Poemas sobre Dia de Fernando Pessoa
22 resultadosDitosos a quem Acena
MARINHA
Ditosos a quem acena
Um lenço de despedida!
São felizes: têm pena…
Eu sofro sem pena a vida.Dôo-me até onde penso,
E a dor é já de pensar,
Órfão de um sonho suspenso
Pela maré a vazar…E sobe até mim, já farto
De improfícuas agonias,
No cais de onde nunca parto,
A maresia dos dias.
O Maestro Sacode a Batuta
O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe …Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo …Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo…Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo…
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos…)Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal…
Se penso mais que um momento
Se penso mais que um momento
Na vida que eis a passar,
Sou para o meu pensamento
Um cadáver a esperar.Dentro em breve (poucos anos
É quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou não tive,Deixarei de ser visível
Na terra onde dá o Sol,
E, ou desfeito e insensível,
Ou ébrio de outro arrebol,Terei perdido, suponho,
O contacto quente e humano
Com a terra, com o sonho,
Com mês a mês e ano a ano.Por mais que o Sol doire a face
Dos dias, o espaço mudo
Lambra-nos que isso é disfarce
E que é a noite que é tudo.
Abdicação
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mão viris e calmas entreguei;
E meu cetro e coroa — eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaçosMinha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.
Quando é que o cativeiro
Quando é que o cativeiro
Acabará em mim,
E, próprio dianteiro,
Avançarei enfim?Quando é que me desato
Dos laços que me dei?
Quando serei um facto?
Quando é que me serei?Quando, ao virar da esquina
De qualquer dia meu,
Me acharei alma digna
Da alma que Deus me deu?Quando é que será quando?
Não sei. E até então
Viverei perguntando:
Perguntarei em vão.
Abat-Jour
A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma belezaSobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.Bem sei … Era dia
E longe de aqui…
Quanto me sorria
O que nunca vi!E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar…
Começa a Ir Ser Dia
Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.
O Quinto Império
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz –
Ter por vida sepultura.Eras sobre eras se somen
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
Feliz Dia para Quem É
Feliz dia para quem é
O igual do dia,
E no exterior azul que vê
Simples confia!Azul do céu faz pena a quem
Não pode ser
Na alma um azul do céu também
Com que viverAh, e se o verde com que estão
Os montes quedos
Pudesse haver no coração
E em seus segredos!Mas vejo quem devia estar
Igual do dia
Insciente e sem querer passar.
Ah, a ironiaDe só sentir a terra e o céu
Tão belo ser
Quem de si sente que perdeu
A alma p’ra os ter!
Esqueço-me das Horas Transviadas
PASSOS DA CRUZ
Esqueço-me das horas transviadas
o Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros…
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas…Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco… Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…No claustro seqüestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convésNo meu cansaço perdido entre os gelos
E a cor do outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância…
Mensagem – Mar Português
MAR PORTUGUÊS
Possessio Maris
I. O Infante
Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!II. Horizonte
Ó mar anterior a nós, teus medos
Tinham coral e praias e arvoredos.
Desvendadas a noite e a cerração,
As tormentas passadas e o mistério,
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério
’Splendia sobre as naus da iniciação.Linha severa da longínqua costa —
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta
Em árvores onde o Longe nada tinha;
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:
E, no desembarcar, há aves,
É Brando o Dia, Brando o Vento
É brando o dia, brando o vento
É brando o sol e brando o céu.
Assim fosse meu pensamento!
Assim fosse eu, assim fosse eu!Mas entre mim e as brandas glórias
Deste céu limpo e este ar sem mim
Intervêm sonhos e memórias…
Ser eu assim ser eu assim!Ah, o mundo é quanto nós trazemos.
Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
E tudo é isto, tudo é isto!
Ilumina-se a Igreja por Dentro da Chuva
Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça…Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro …O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar…Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro…A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste…
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel…E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa …
Assim, Sem Nada Feito e o Por Fazer
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.Tênue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quere.Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solentemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar!
Não: não Digas Nada!
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo jáÉ ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.
Chove. É Dia de Natal
Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho o frio e Natal não.Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.
Atravessa Esta Paisagem o Meu Sonho
Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas…O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado…
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol…Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo…
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro…Não sei quem me sonho…
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse
desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele
porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim,
Chove ? Nenhuma Chuva Cai…
Chove? Nenhuma chuva cai…
Então onde é que eu sinto um dia
Em que ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia ?Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu…E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento…E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro… E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuro, alguém dentro de mim ouve
A chuva, como a voz de um fim…Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas…No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convésNo meu cansaço perdido entre os gelos,
O Andaime
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.A ‘sp’rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha ‘s’prança,
Rola mais que o meu desejo.Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam — verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.