Devo-te
Devo-te tanto como um pássaro
deve o seu voo à lavada
planície do céu.Devo-te a forma
novíssima de olhar
teu corpo onde às vezes
desce o pudor o silêncio
de uma pálpebra mais nada.Devo-te o ritmo
de peixe na palavra,
a genesíaca, doce
violência dos sentidos;
esta tinta de sol
sobre o papel de silêncio
das coisas – estes versos
doces, curtos, de abelhas
transportando o pólen
levíssimo do dia;
estas formigas na sombra
da própria pressa e entrando
todas em fila no tempo:
com uma pergunta frágil
nas antenas, um recado invisível, o peso
que as deixa ser e esquece;
e a tua voz que compunha
uma casa, uma rosa
a toda a volta – ó meu amor vieste
rasgar um sol das minhas mãos!
Poemas sobre Dia
652 resultadosNenhuma Morte Apagará os Beijos
Nenhuma morte apagará os beijos
e por dentro das casas onde nos amámos ou pelas ruas
[clandestinas da grande cidade livre
estarão para sempre vivos os sinais de um grande amor,
esses densos sinais do amor e da morte
com que se vive a vida.Aí estarão de novo as nossas mãos.
E nenhuma dor será possível onde nos beijámos.
Eternamente apaixonados, meu amor. Eternamente livres.
Prolongaremos em todos os dedos os nossos gestos e,
profundamente, no peito dos amantes, a nossa alma líquida
[e atormentadadesvenderá em cada minuto o seu segredo
para que este amor se prolongue e noutras bocas
ardam violentos de paixão os nossos beijos
e os corpos se abracem mais e se confundam
mutuamente violando-se, violentando a noite
para que outro dia, afinal, seja possível.
Começa a Ir Ser Dia
Começa a ir ser dia,
O céu negro começa,
Numa menor negrura
Da sua noite escura,
A Ter uma cor fria
Onde a negrura cessa.Um negro azul-cinzento
Emerge vagamente
De onde o oriente dorme
Seu tardo sono informe,
E há um frio sem vento
Que se ouve e mal se sente.Mas eu, o mal-dormido,
Não sinto noite ou frio,
Nem sinto vir o dia
Da solidão vazia.
Só sinto o indefinido
Do coração vazio.Em vão o dia chega
Quem não dorme, a quem
Não tem que ter razão
Dentro do coração,
Que quando vive nega
E quando ama não tem.Em vão, em vão, e o céu
Azula-se de verde
Acinzentadamente.
Que é isto que a minha alma sente?
Nem isto, não, nem eu,
Na noite que se perde.
Notícias do Bloqueio
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos…
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
– único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima…Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Manhã de Sol com Azulejos
Tudo se veste da cor de teu vestido azul
Tudo — menos a dona do vestido:
meus olhos te passeiam nua
pela grama do campo de golfeUma curva e eis-nos diante de meu coração
Não amiga não temas
meu coração;
é apenas um chapéu surrado
que humildemente estendo
para colher um pouco de tua alegria
de tua graça distraída
de teu dia
Para o Meu Coração…
Para o meu coração basta o teu peito,
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a tua alma.És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas às corolas.
Minas o horizonte com a tua ausência.
Eternamente em fuga como a onda.Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste, como uma viagem.Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.
O Somno de João
O João dorme… (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar…)Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria… um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores…
Mas os astros são menores!O João dorme… Que regalo!
Deixal-o dormir, deixal-o!
Callae-vos, agoas do moinho!
Ó mar! falla mais baixinho…
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar…O João dorme… Innocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo somno profundo!
Não acordes para o mundo,
Póde affogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é…Ó Mae! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Ha só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir…
Tudo vae sem se sentir.»Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho… até morrer!E tu vel-o-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João!
Mãe e Filho
Primícias do meu amor!
Meu filhinho do meu seio
Tenro fruto que à luz veio
Como à luz da aurora a flor!Na tua face inocente,
De teu pai a face beijo,
E em teus olhos, filho, vejo
Como Deus é providente;Via em lâmina dourada
O meu rosto todo o dia,
E a minha alma não havia
De a ver nunca retratada?Quando o pai me unia à face
E em seus braços me apertava,
Pomba ou anjo nos faltava
Que ambos juntos abraçasse!Felizmente Deus que o centro
Vê da Terra e vê do abismo,
Que bem sabe no que eu cismo,
Na minha alma um altar viu dentro:Mas com lâmpada sem brilho,
Sem o deus a que era feito…
Bafeja-me um dia o peito,
E eis feito o meu gosto, filho!Como em lágrimas se espalma
Dor íntima e se esvaece
De alma o resto quem pudesse
Vazar todo na tua alma!Mas em ti minha alma habita!
Mas teu riso a vida furta…
Infinitude dos Amantes
Se até agora ainda não possuo todo o teu amor,
Querida, nunca o terei de todo.
Não posso soltar mais um suspiro, comover-me,
Nem suplicar a mais outra lágrima que corra;
E todo o meu tesouro, que deveria comprar-te —
Suspiros, lágrimas, juras e cartas — já gastei.
Porém, nada mais me poderá ser devido,
Além do proposto no negócio acordado:
Se então a tua dádiva de amor foi parcial,
Que parte a mim, parte a outros, caberia,
Querida, nunca te possuirei totalmente.Mas, se então me deste tudo,
Tudo seria apenas o tudo que ao tempo tinhas;
E se em teu coração, desde então, existe ou venha
A existir novo amor gerado por outros homens,
Cujos haveres estejam intactos e possam, em lágrimas,
Em suspiros, em juras e cartas, exceder a minha oferta,
Este novo amor pode suscitar novos receios,
Dado que um tal amor não foi jurado por ti.
Mas se foi, sendo as tuas dádivas gerais,
O terreno — o teu coração —, é meu, e o que quer
Que nele cresça, querida, pertence-me totalmente.
Aproveitar o Tempo
Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha…
O trabalho honesto e superior…
O trabalho à Virgílio, à Mílton…
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos – nem mais nem menos –
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)…
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil.
Imagens de jogos ou de paciências ou de passatempos –
Imagens da vida, imagens das vidas. Imagens da Vida.Verbalismo…
Sim, verbalismo…
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça…
Não ter um acto indefinido nem factício…
Não ter um movimento desconforme com propósitos…
Boas maneiras da alma…
Elegância de persistir…Aproveitar o tempo!
As Palavras Interditas
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
Quando a Morte Vier, Meu Amor
Quando a morte vier, meu amor,
fechemos os olhos para a olhar por dentro
e deixemos aos nossos lábios o murmúrio
da palavra branda jamais pronunciada
e às nossas mãos a carícia dispersa;
relembremos o dia impossível,
belo por isso e por isso desprezado,
e esqueçamos o que nos não deixaram ver
e o resto que sobrou do nada que possuímos;
deixemos à poesia que surge
o pranto de quem a trocou para comer
e os passos sem rumo pelas ruas hostis;
deixemos à carne o que não alcançámos,
e morramos então, naturalmente…
Nas Praças
Nas praças vindouras — talvez as mesmas que as nossas —
Que elixires serão apregoados?
Com rótulos diferentes, os mesmos do Egito dos Faraós;
Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,
As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,
As idéias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém —
Um dia talvez, em fluido abstrato, e substância implausível,
Formem um Deus, e ocupem o mundo.
Mas a mim, hoje, a mim
Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,
Nos destinos que não desvendo,
Na minha própria metafisica, que tenho porque penso e sinto.Não há sossego,
E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente!Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.
Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,
Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?
De Esquecer
Demorei-me muito tempo ao pé de ti.
As portas fechadas por dentro, como se encerrasses
o amor e a lei. Demorei-me demais. Ao fim da tarde,
nesse mesmo dia que já morreu,
olhámo-nos devagar, mas distraídos. Diria até que anoiteceu.Nunca falámos do amor que chega tarde.
Nem o interpelámos (como se já não pudesse
ter nome). Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.Vês aqui alguma figura? Ninguém vê.
Repara no ponto preto que alastra na margem do quadro,
nas minhas lágrimas desse tempo.
Relê.
Carta à Minha Filha
Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas – é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
Não Me Sinto Mudar
Não me sinto mudar. Ontem eu era o mesmo.
O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos
cada dia mais raros são os meus cepticismos,
nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmomental que derrubasse a canção dos meus dias
que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome.
Não mudei. É um pouco mais de melancolia,
um pouco de tédio que me deram os homens.Não mudei. Não mudo. O meu pai está muito velho.
As roseiras florescem, as mulheres partem
cada dia há mais meninas para cada conselho
para cada cansaço para cada bondade.Por isso continuo o mesmo. Nas sepulturas antigas
os vermes raivosos desfazem a dor,
todos os homens pedem de mais para amanhã
eu não peço nada nem um pouco de mundo.Mas num dia amargo, num dia distante
sentirei a raiva de não estender as mãos
de não erguer as asas da renovação.Será talvez um pouco mais de melancolia
mas na certeza da crise tardia
farei uma primavera para o meu coração.Tradução de Albano Martins
As Mães?
Fossem estes dias uma fonte que
brotasse.
Manchas de azul, um rasto de neve em pleno céu,
colmeias,
mel, uma exaltação de asas.Mas é assim:
metais que revestem a pele e as armaduras,
bronze, ferro, formas que perduram, malhas, ameaçados
tecidos que nos moldam —
quem borda ainda,
quem se atreve à minúcia das rendas?As mães?
elas vinham cedo, eram como um rumor de levadas,
atravessando as terras.
Eram as mesmas mãos trabalhando sedas, afagos e
uma conspiração de cores e agulhas frias,
mães de silêncio bordando a treva e o sono, a longa
noite dos filhos.Herdei uma beleza amarga,
o temor das sombras, dos relâmpagos que embatiam
na infância,
no dorso das colinas,
no coração mais triste.Um estrondo de muralhas, diques, batalhas que
deflagram,
uma ciência aterradora:
não quero outra véspera de espadas, a coroação do
sangue,
patíbulos onde a cabeça se expande,
rolando como a poeira e os astros,
repercutindo como um sino no choro das mães.Não quero um bordado de horas antigas,
Arrojos
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos mignonnes e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos noturnos.Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
De Que São Feitos os Dias?
De que são feitos os dias?
– De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
– do medo que encadeia
todas essas mudanças.Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças…
Sacrilégio
Como a alma pura, que teu corpo encerra,
Podes, tão bela e sensual, conter?
Pura demais para viver na terra,
Bela demais para no céu viver.Amo-te assim! – exulta, meu desejo!
É teu grande ideal que te aparece,
Oferecendo loucamente o beijo,
E castamente murmurando a prece!Amo-te assim, à fronte conservando
A parra e o acanto, sob o alvor do véu,
E para a terra os olhos abaixando,
E levantando os braços para o céu.Ainda quando, abraçados, nos enleva
O amor em que me abraso e em que te abrasas,
Vejo o teu resplandor arder na treva
E ouço a palpitação das tuas asas.Em vão sorrindo, plácidos, brilhantes,
Os céus se estendem pelo teu olhar,
E, dentro dele, os serafins errantes
Passam nos raios claros do luar:Em vão! – descerras úmidos, e cheios
De promessas, os lábios sensuais,
E, à flor do peito, empinam-se-te os seios,
Ameaçadores como dois punhais.Como é cheirosa a tua carne ardente!
Toco-a, e sinto-a ofegar, ansiosa e louca.