Dois Epigramas
O sábio das coisas simples
olhou em torno e disse:
não há profundidade
sem superfícieÉ preciso dizer bom dia
quando o dia anoitece
ser exacto todo o dia
envelhece
Poemas sobre Dizer
134 resultadosPassagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite… Acordo de repente
Yat-iô–ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô … Ghi-…
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)…
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar…
Tempestades em torno ao Guardaful…
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada…
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo…Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu,
Pergunta-me
Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sanguePergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalosPergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrenteQualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer
Amor – Pois que é Palavra Essencial
Amor — pois que é palavra essencial
comece esta canção e toda a envolva.
Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
reúna alma e desejo, membro de vulva.Quem ousará dizer que ele é só alma?
Quem não sente no corpo a alma expandir-se
até desabrochar em puro grito
de orgasmo, num instante de infinito?O corpo noutro corpo entrelaçado,
fundido, dissolvido, volta à origem
dos seres, que Platão viu completados:
é um, perfeito em dois; são dois em um.Integração na cama ou já no cosmo?
Onde termina o quarto e chega aos astros?
Que força em nossos flancos nos transporta
a essa extrema região, etérea, eterna?Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram.Vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista humana os suportara,
mas, varado de luz, o coito segue.E prossegue e se espraia de tal sorte
que, além de nós,
Dobrada à Moda do Porto
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo …(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
Quem não Trabuca, não Manduca
Olhai que quem quer comer
trabalha, lida, e trabuca;
que quem trabuca manduca
mil vezes ouvi dizer;
mas ociosos viver
e vir comer pão alheio
é um caso muito feio;
coma quem sua e trabalha,
beba quem na eira malha,
ao sol e calma, o centeio.
Se Perguntas Onde Fui
Se perguntas onde fui,
devo dizer: o mar.
Estive sempre ali,
mesmo estando a mudar.Foi ali que escrevi
tua pele, teu suor.
Ao tempo, seus faróis.
Não mudei de mudar.2
O que mudou em mim,
senão andar mudando
sem nunca mais mudar?Quem mudará em mim,
se não sei mudar?3
Ou me mudei. Sou outro.
Outra ventura, outra
virtude, cadência,
remota criatura.Então que se apresente.
Seja tenaz, plausível
esse rosto invisível
e áspero.Mudei. Soprava o mar.
Mudei de não mudar.
Sentimento do Tempo
Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer porque deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer porque o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
A Casada Infiel
Levei-a comigo ao rio,
pensando que era donzela,
porém já tinha marido.
Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Os lampiões se apagaram
e acenderam-se os grilos.
Nas derradeiras esquinas
toquei seus peitos dormidos
e pra mim logo se abriram
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava no meu ouvido,
como uma peça de seda
lacerada por dez facas.
Sem luz de prata nas copas
as árvores têm crescido,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.*
Passadas as sarçamoras
os juncos e os espinheiros,
por debaixo da folhagem
fiz um fojo sobre o limo.
Minha gravata tirei.
Tirou ela seu vestido.
Eu, o cinto com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais ao luar
resplandecem com tal brilho.
Suas coxas me fugiam
como peixes surpreendidos,
metade cheia de lume,
metade cheia de frio.
Percorri naquela noite
o mais belo dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Males de Anto
A Ares n’uma aldeia
Quando cheguei, aqui, Santo Deus! como eu vinha!
Nem mesmo sei dizer que doença era a minha,
Porque eram todas, eu sei lá! desde o odio ao tedio.
Molestias d’alma para as quaes não ha remedio.
Nada compunha! Nada, nada. Que tormento!
Dir-se-ia accaso que perdera o meu talento:
No entanto, ás vezes, os meus nervos gastos, velhos,
Convulsionavam-nos relampagos vermelhos,
Que eram, bem o sentia, instantes de Camões!
Sei de cór e salteado as minhas afflicções:
Quiz partir, professar n’um convento de Italia,
Ir pelo Mundo, com os pés n’uma sandalia…
Comia terra, embebedava-me com luz!
Extasis, spasmos da Thereza de Jezus!
Contei n’aquelle dia um cento de desgraças.
Andava, á noite, só, bebia a noite ás taças.
O meu cavaco era o dos mortos, o das loizas.
Odiava os homens ainda mais, odiava as Coizas.
Nojo de tudo, horror! Trazia sempre luvas
(Na aldeia, sim!) para pegar n’um cacho d’uvas,
Ou n’uma flor. Por cauza d’essas mãos… Perdoae-me,
Aldeões! eu sei que vós sois puros. Desculpae-me.Mas, atravez da minha dor,
Elegia de Natal
Era também de noite Era também Dezembro
Vieram-me dizer que o meu irmão nascera
Já não sei afinal se o recordo ou se penso
que estou a recordá-lo à força de o dizeremMas o teu berço foi o primeiro presépio
em que pouco depois o meu olhar pousava
Não era mais real do que existirem prédios
nem menos irreal do que haver madrugadasDezembro retornava e nunca soube ao certo
se o intruso era eu se o intruso eras tu
Quase aceitava até que alguém te supusesse
mais do que meu irmão um gémeo de JesusPara ti se encenava o palco da surpresa
Entravas no papel de que eu ia descrendo
Mas sabia-me bem salvar a tua crença
E era sempre de noite Era sempre em DezembroEntretanto em que mês em que dia é que estamos
Que verdete corrói prédios e madrugadas
De que muro retiro o musgo desses anos
que entre os dedos depois se me desfaz em águaPara onde levaste a criança que foste
Em vez da tua voz que ciprestes são estes
Como dizer Natal se te não vejo hoje
Como dizer Natal agora que morreste
Como um Adeus Português
Meu amor, desaparecido no sono como sonho de outro sonho,
meu amor, perdido na música dos versos que faço e recomeço,
meu amor por fim perdido.Nenhuma lâmpada se acende na câmara escura do esquecimento,
onde revelo em banho de prata as imagens que guardo de ti,
imagens que se desfiam na memória de haver corpos,
na memória da alegria que sempre guardamos para dar a alguém,
tremendo de medo, tropeçando de angústia,
enternecidos,
entontecidos,
como aves canoras soltas nos vendavais.Perdi-te no momento certo de perder-te.
Aqui estão os augúrios, além o discernimento.
O amor em surdina desfez-se no seu dizer,
entre versos pobres, um corpo cansado,
e a doença sem fim do desejo mortal.Apagaram-se as luzes. Nunca o vento da indiferença
me abrirá as mãos.
Nunca abdicarei deste quinhão de luz, o meu amor.
E agora vejo bem como as palavras caem,
não valem,
se desfolham e são pisadas por qualquer afirmação da vida,
da vida que não era para nós.
É Talvez o Último Dia da Minha Vida
É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, para lhe dizer adeus.
Fiz sinal de gostar de o ver ainda, mais nada.
Attracção
Meus olhos sempre inquietos
Que posso até dizer,
Só acham n’alma objectos
Que os possam entreter;Meus olhos… coisa rara!
Porque hão de em ti parar
Como a corrente pára
Em encontrando o mar!?E penso n’isto, scismo…
Mas é tão natural
Cahir-se no abysmo
D’uma belleza tal!…Olhei!… Foi indiscreta
A vista que te puz.
A pobre borboleta
Viu luz… cahiu na luz!Uma attracção mais forte
Que toda a reflexão,
(É fado, é sina, é sorte!)
Me arrasta o coração…