Quem me Dera que a Minha Vida Fosse um Carro de Bois
Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhĂŁzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase Ă noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas
…
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco…
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.
Poemas sobre Estradas de Alberto Caeiro
13 resultadosUma Gargalhada de Raparigas
Uma gargalhada de raparigas soa do ar da estrada.
Riu do que disse quem nĂŁo vejo.
Lembro-me já que ouvi.
Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,
Direi: nĂŁo, os montes, as terras ao sol, o Sol, a casa aqui,
E eu que sĂł oiço o ruĂdo calado do sangue que há na minha vida dos dois lados da cabeça.
O Mundo nĂŁo se Fez para Pensarmos Nele
O meu olhar Ă© nĂtido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas nĂŁo penso nele
Porque pensar é não compreender …O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar Ă© estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo…Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na Natureza nĂŁo Ă© porque saiba o que ela Ă©,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar …
Amar Ă© a eterna inocĂŞncia,
Eu Nunca Guardei Rebanhos
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas Ă© como se os guardasse.
Minha alma Ă© como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pĂ´r de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planĂcie
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.Mas a minha tristeza Ă© sossego
Porque Ă© natural e justa
E Ă© o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mĂŁos colhem flores sem ela dar por isso.Como um ruĂdo de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos sĂŁo contentes.
SĂł tenho pena de saber que eles sĂŁo contentes,
Porque, se o nĂŁo soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.Pensar incomoda como andar Ă chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
Num Dia Excessivamente NĂtido
Num dia excessivamente nĂtido,
Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
Para nele nĂŁo trabalhar nada,
Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
O que talvez seja o Grande Segredo,
Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
Que Natureza nĂŁo existe,
Que há montes, vales, planĂcies,
Que há árvores, flores, ervas,
Que há rios e pedras,
Mas que não há um todo a que isso pertença,
Que um conjunto real e verdadeiro
É uma doença das nossas idéias.
A Natureza Ă© partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
Acertei que devia ser a verdade
Que todos andam a achar e que nĂŁo acham,
E que sĂł eu, porque a nĂŁo fui achar, achei.
O Luar quando Bate na Relva
O luar quando bate na relva
Não sei que cousa me lembra…
Lembra-me a voz da criada velha
Contando-me contos de fadas.
E de como Nossa Senhora vestida de mendiga
Andava Ă noite nas estradas
Socorrendo as crianças maltratadas …
Se eu já não posso crer que isso é verdade,
Para que bate o luar na relva?
Cesário Verde
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai
andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos …Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros…
Passou a DiligĂŞncia pela Estrada
Passou a diligĂŞncia pela estrada, e foi-se;
E a estrada nĂŁo ficou mais bela, nem sequer mais feia.
Assim é a acção humana pelo mundo fora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;
E o sol Ă© sempre pontual todos os dias.
Vi Jesus Cristo Descer Ă Terra
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer Ă terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda Ă roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mĂŁe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que nĂŁo era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estĂşpida,
Quem me Dera que Eu Fosse o PĂł da Estrada
Quem me dera que eu fosse o pĂł da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…
Quem me dera que eu fosse os choupos Ă margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse…
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena
A Mentira Está em Ti
“Olá, guardador de rebanhos,
AĂ Ă beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”“Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?”“Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memĂłrias e de saudades
E de cousas que nunca foram.”“Nunca ouviste passar o vento.
O vento sĂł fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.”
Verdade, Mentira, Certeza, Incerteza
Verdade, mentira, certeza, incerteza…
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mĂŁos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que sĂŁo?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mĂŁos de cima do joelho
Verdade mentira, certeza, incerteza sĂŁo as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos
e as minhas mĂŁos.Qual Ă© a ciĂŞncia que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real Ă© isto.
Para Além da Curva da Estrada
Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
NĂŁo sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
SĂł olho para a estrada antes da curva,
Porque nĂŁo posso ver senĂŁo a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que nĂŁo vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa Ă© que Ă© a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.