O Homem e o Mar
Homem livre, o oceano Ă© um espelho fulgente
Que tu sempre hás-de amar. No seu dorso agitado,
Como em puro cristal, contemplas, retratado,
Teu Ăntimo sentir, teu coração ardente.Gostas de te banhar na tua prĂłpria imagem.
Dás-lhe beijo até, e, às vezes, teus gemidos
Nem sentes, ao escutar os gritos doloridos,
As queixas que ele diz em mĂstica linguagem.VĂłs sois, ambos os dois, discretos tenebrosos;
Homem, ninguém sondou teus negros paroxismos,
Ó mar, ninguém conhece os teus fundos abismos;
Os segredos guardais, avaros, receosos!E há sĂ©culos mil, sĂ©c’ulos inumeráveis,
Que os dois vos combateis n’uma luta selvagem,
De tal modo gostais n’uma luta selvagem,
Eternos lutador’s Ăł irmĂŁos implacáveis!Tradução de Delfim GuimarĂŁes
Poemas Exclamativos de Charles Baudelaire
8 resultadosElevação
Por cima dos paĂşes, das montanhas agrestes,
Dos rudes alcantis, das nuvens e do mar,
Muito acima do sol, muito acima do ar,
Para alĂ©m do confim dos páramos celestes,Paira o espĂrito meu com toda a agilidade,
Como um bom nadador, que na água sente gozo,
As penas a agitar, gazil, voluptuoso,
Através das regiões da etérea imensidade.Eleva o vôo teu longe das montureiras,
Vai-te purificar no Ă©ter superior,
E bebe, como um puro e sagrado licor,
A alvinitente luz das lĂmpidas clareiras!Neste bisonho dai’ de mágoas horrorosas,
Em que o fastio e a dor perseguem o mortal,
Feliz de quem puder, numa ascensĂŁo ideal,
Atingir as mansões ridentes, luminosas!De quem, pela manhã, andorinha veloz,
Aos domĂnios do cĂ©u o pensamento erguer,
— Que paire sobre a vida, e saiba compreender
A linguagem da flor e das coisas sem voz!Tradução de Delfim Guimarães
TĂ©dio
Tenho as recordações d’um velho milenário!
Um grande contador, um prodigioso armário,
Cheiinho, a abarrotar, de cartas memoriais,
Bilhetinhos de amor, recibos, madrigais,
Mais segredos nĂŁo tem do que eu na mente abrigo.
Meu cer’bro faz lembrar descomunal jazigo;
Nem a vala comum encerra tanto morto!— Eu sou um cemitério estranho, sem conforto,
Onde vermes aos mil — remorsos doloridos,
Atacam de pref’rĂŞncia os meus mortos queridos.
Eu sou um toucador, com rosas desbotadas,
Onde jazem no chĂŁo as modas despresadas,
E onde, sĂłs, tristemente, os quadros de Boucher
Fuem o doce olor d’um frasco de GellĂ©.Nada pode igualar os dias tormentosos
Em que, sob a pressĂŁo de invernos rigorosos,
O TĂ©dio, fruto inf’liz da incuriosidade,
Alcança as proporções da Imortalidade.— Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,
Do que granito envolto em terror inconsciente.
A emergir d’um Saarah movediço, brumoso!
Velha esfinge que dorme um sono misterioso,
Esquecida, ignorada, e cuja face fria
Só brilha quando o Sol dá a boa-noite ao dia!Tradução de Delfim Guimarães
O Albatroz
Ă€s vezes no alto mar, distrai-se a marinhagem
Na caça do albatroz, ave enorme e voraz,
Que segue pelo azul a embarcação em viagem,
Num vĂ´o triunfal, numa carreira audaz.Mas quando o albatroz se vĂŞ preso, estendido
Nas tábuas do convés, — pobre rei destronado!
Que pena que ele faz, humilde e constrangido,
As asas imperiais caĂdas para o lado!Dominador do espaço, eis perdido o seu nimbo!
Era grande e gentil, ei-lo o grotesco verme!…
Chega-lhe um ao bico o fogo do cachimbo,
Mutila um outro a pata ao voador inerme.O Poeta é semelhante a essa águia marinha
Que desdenha da seta, e afronta os vendavais;
Exilado na terra, entre a plebe escarninha,
Não o deixam andar as asas colossais!Tradução de Delfim Guimarães
Benção
Quando, por uma lei da vontade suprema,
O Poeta vem a luz d’este mundo insofrido
A desolada mĂŁe, numa crise de blasfĂŞmia,
Pragueja contra Deus, que a escuta comovido:— “Antes eu procriasse uma serpe infernal!
Do que ter dado vida a um disforme aleijĂŁo!
Maldita seja a noite em que o prazer carnal
Fecundou no meu ventre a minha expiação!Já que fui a mulher destinada, Senhor,
A tornar infeliz quem a si me ligou,
E nĂŁo posso atirar ao fogo vingador
O fatal embrião que meu sangue gerou.Vou fazer recair o meu ódio implacável
No monstro que nasceu das tuas maldições
E saberei torcer o arbusto miserável
De modo que nĂŁo vingue um sĂł dos seus botões!”E sobre Deus cuspindo a sua mágoa ingente
Ignorando a razĂŁo dos desĂgnios do Eterno,
A tresloucada mĂŁe condena, inconsciente,
A sua pobre alma Ă s fogueiras do inferno.Bafeja a luz do sol o fruto malfadado,
Vela pelo inocente um anjo peregrino;
A água que ele bebe é um néctar perfumado,
O pĂŁo Ă© um manjar saboroso,
Spleen
Quando o cinzento céu, como pesada tampa,
Carrega sobre nĂłs, e nossa alma atormenta,
E a sua fria cor sobre a terra se estampa,
O dia transformado em noite pardacenta;Quando se muda a terra em hĂşmida enxovia
D’onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Foge, roçando ao muro a sua asa sombria,
Com a cabeça a dar no tecto apodrecido;Quando a chuva, caindo a cântaros, parece
D’uma prisĂŁo enorme os sinistros varões,
E em nossa mente em frebre a aranha fia e tece,
Com paciente labor, fantásticas visões,– Ouve-se o bimbalhar dos sinos retumbantes,
Lançando para os céus um brado furibundo,
Como os doridos ais de espĂritos errantes
Que a chorrar e a carpir se arrastam pelo mundo;Soturnos funerais deslizam tristemente
Em minh’alma sombria. A sucumbida Esp’rança,
Lamenta-se, chorando; e a AngĂşstia, cruelmente,
Seu negro pavilhão sobre os meus ombros lança!Tradução de Delfim Guimarães
IntangĂvel
Quero-te como quero Ă abĂłbada nocturna,
Ă“ vazo de tristeza, Ăł grande taciturna!
E tanto mais te quero, Ăł minha bem amada,
Por te ver a fugir, mostrado-te empenhada
Em fazer aumentar, irónica, a distânciaQue me separa a mim da celestial estância.
Bem a quero atingir, a abĂłbada estrelada,
Mas, se julgo alcançar, vejo-a mais afastada!
Pois se eu adoro atĂ© – ferro monstro, acredita! –
O teu frio desdém, que te faz mais bonita!Tradução de Delfim Guimarães
GĂ©nio do Mal
Gostavas de tragar o universo inteiro,
Mulher impura e cruel! Teu peito carniceiro,
Para se exercitar no jogo singular,
Por dia um coração precisa devorar.
Os teus olhos, a arder, lembram as gambiarras
Das barracas de feira, e prendem como garras;
Usam com insolĂŞncia os filtros infernais,
Levando a perdição às almas dos mortais.Ó monstro surdo e cego, em maldades fecundo!
Engenho salutar, que exaure o sangue do mundo
Tu nĂŁo sentes pudor? o pejo nĂŁo te invade?
Nenhum espelho há que te mostre a verdade?
A grandeza do mal, com que tu folgas tanto.
Nunca, jamais, te fez recuar com espanto
Quando a Natura-mĂŁe, com um fim ignorado,
— Ó mulher infernal, rainha do Pecado! —
Vai recorrer a ti para um gĂ©nio formar?Ă“ grandeza de lama! Ăł ignomĂnia sem par.
Tradução de Delfim Guimarães