Cansa Sentir Quando se Pensa
Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo –
Ah, nada é isto, nada é assim!)
Poemas sobre Fim
199 resultadosJá Estou a Ficar Velho
Já estou a ficar velho, ainda que tenha
esta figura fixa sem idade,
e me mantenha em forma o aparelho
a que todos aqui somos sujeitos:
a correria cega, a suspensão elástica,
o salto em trave e trampolim de folhas,
e outras altas artes de ginástica.
Mas eu bem sei sentir além da aparência,
e já me aconteceu, ao visitar o canto
onde o mundo se acaba em chão de areia,
ali ver o meu fim anunciado.
Quando em tranquilo pouso assim medito,
peso, e calculo tudo aquilo
que não fiz, e não tive, e não alcanço
com o rosto extravagante que me deram,
já tudo bem pensado considero
se não devo encontrar algum consolo
na ciência que conduz o feiticeiro,
e acreditar também, como me diz,
que é, esta vida, emaranhada teia
de mal fiado, mal dobado fio,
e a morte tão somente um singular casulo
de onde sairei transfigurado.
Mas não sei de que valha imaginar
um outro ser incólume e perfeito
que da minha substância seja feito
e tome, noutro mundo,
o tempo não sabe nada
o tempo não sabe nada
o tempo não tem razão
o tempo nunca existiu
é da nossa invençãose abandonarmos as horas para nos sentirmos sós
meu amor o tempo somos nóso espaço tem o volume
da imaginação
além do nosso horizonte
existe outra dimensãoo espaço foi construído sem princípio nem fim
meu amor tu cabes dentro de mimo meu tesouro és tu
eternamente tu
não há passos divergentes para quem se quer encontrara nossa história começa
na total escuridão
onde o mistério ultrapassa
a nossa compreensãoa nossa história é o esforço para alcançar a luz
meu amor o impossível seduzo meu tesouro és tu
eternamente tu
não há passos divergentes para quem se quer encontrar
Saber
saber
é saber saber-te
sabermo-nos unirunirmo-nos
é conhecermo-nos
sabermos serpor fim sermos
é sabermos
sabermo-nosconhecermos
a surda áspide
Medo
Quem dorme à noite comigo?
É meu segredo, é meu segredo!
Mas se insistirem lhes digo.
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo!E cedo, porque me embala
Num vaivém de solidão,
É com silêncio que fala,
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão.Que farei quando, deitado,
Fitando o espaço vazio,
Grita no espaço fitado
Que está dormindo a meu lado,
Lázaro e frio?Gritar? Quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim?
Gostava até de matar-me.
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.
Carta a Manoel
Manoel, tens razão. Venho tarde. Desculpa.
Mas não foi Anto, não fui eu quem teve a culpa,
Foi Coimbra. Foi esta paysagem triste, triste,
A cuja influencia a minha alma não reziste,
Queres noticias? Queres que os meus nervos fallem?
Vá! dize aos choupos do Mondego que se callem…
E pede ao vento que não uive e gema tanto:
Que, emfim, se soffre abafe as torturas em pranto,
Mas que me deixe em paz! Ah tu não imaginas
Quanto isto me faz mal! Peor que as sabbatinas
Dos ursos na aula, peor que beatas correrias
De velhas magras, galopando Ave-Marias,
Peor que um diamante a riscar na vidraça!
Peor eu sei lá, Manoel, peor que uma desgraça!
Hysterisa-me o vento, absorve-me a alma toda,
Tal a menina pelas vesperas da boda,
Atarefada mail-a ama, a arrumar…
O vento afoga o meu espirito n’um mar
Verde, azul, branco, negro, cujos vagalhões
São todos feitos de luar, recordações.
Á noite, quando estou, aqui, na minha toca,
O grande evocador do vento evoca, evoca
Nosso verão magnifico, este anno passado,
(E a um canto bate,
Juventude
Lembras-te, Carlos, quando, ao fim do dia,
Felizes, ambos, íamos nadar
E em nossa boca a espuma persistia
Em dar ao Sol o nome do Luar?Tudo era fácil, melodioso e longo.
Aqui e além, um súbito ditongo
Ecoava em nós certa canção pagã.Contudo o azul do mar não tinha fundo
E o mundo continuava a ser o mundo
Banhado pela aragem da manhã!…
Fragmento Terceiro
I
Campos de ira, tão vasto sentimento
vos afasta. íris morta! Os actos radicais
constroem, em projeto, um frágil
universo – a tinta, o espaço óptico.
Descansam os sentidos sobre pródigas
defesas: os filtros turvos, as precauções
na sua cura. Os nervos tersos
da análise da vida e da matéria.II
Desviam-se dos livros. Hoje escreve
contra a morte dos olhos, a existência
passível de leitura. Ineptos, os sons
perdem-se na encosta. o vento fere
ainda? Inscrito
na área da cabeça, é esse rastro
ainda vivo. Domino a sua queda, os seus poderes
punitivos, a sua força hereditária.III
Persistir no imóvel. Preencher
os anos que nos moldam
no vigor da fibra, no duro movimento
interior — a que destino, a que imaturo
ritmo, sem preço? Pois é o caro
prémio deste dorso
de o cumprir, pensar, até ao fim.
Ou de saber adestrá-lo até que,
exausto, só impulso
vigore — a morte lida
num próximo sentido, ainda vivo.IV
Como contacto único,
Oh, Vida! Fugitiva Companheira
Oh, Vida!
Fugitiva companheira,
Eu sinto que não posso acompanhar-te.
Por isso, nesta hora feiticeira,
Quisera erguer-te uma barreira
E fazer-te parar
E abraçar-te;
E abraçar-te tão íntimo e tão fundo
Que toda a vida apenas de um segundo
Em mim entrasse, em mim vivesse,
E que depois viesse o fim do Mundo
Ou que eu morresse!…
Ruinas
Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha.
Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas.
Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mãos esguias e de cabelleiras embranquecidas.
Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites réza a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castello de nobres naquelle lugar… E a lua, a contar, pára um instante – tem mêdo do frio dos subterraneos.
Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos de sêdas.
Aquellas ruinas são o tumulo sagrado de um beijo adormecido – cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e lizes.
Pobres velhinhas da côr do luar, sem terço nem nada, e sempre a rezar…
Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés.
Archeiros amordaçados na noite em que o côche era de volta ao palacio pela tapada d’El-rei. Grande caçada na floresta–galgos brancos e Amazonas negras.
Carta de Amor
Para te dizer tão-só que te queria
Como se o tempo fosse um sentimento
bastava o teu sorriso de um outro dia
nesse instante em que fomos um momento.
Dizer amor como se fosse proibido
entre os meus braços enlaçar-te mais
como um livro devorado e nunca lido.
Será pecado, amor, amar-te demais?
Esperar como se fosse (des) esperar-te,
essa certeza de te ter antes de ter.
Ensaiar sozinho a nossa arte
de fazer amor antes de ser.
Adivinhar nos olhos que não vejo
a sede dessa boca que não canta
e deitar-me ao teu lado como o Tejo
aos pés dessa Lisboa que ele encanta.
Sentir falta de ti por tu não estares
talvez por não saber se tu existes
(percorrendo em silêncio esses altares
em sacrifícios pagãos de olhos tristes).
Ausência, sim. Amor visto por dentro,
certezas ao contrário, por estar só.
Pesadelo no meu sonho noite adentro
quando, ao meu lado, dorme o que não sou.
E, afinal, depois o que ficou
das noites perdidas à procura
de um resto de virtude que passou
por nós em co(r)pos de loucura?
Portugal
Maior do que nós, simples mortais, este gigante
foi da glória dum povo o semideus radiante.
Cavaleiro e pastor, lavrador e soldado,
seu torrão dilatou, inóspito montado,
numa pátria… E que pátria! A mais formosa e linda
que ondas do mar e luz do luar viram ainda!
Campos claros de milho moço e trigo loiro;
hortas a rir; vergéis noivando em frutos de oiro;
trilos de rouxinóis; revoadas de andorinhas;
nos vinhedos, pombais: nos montes, ermidinhas;
gados nédios; colinas brancas olorosas;
cheiro de sol, cheiro de mel, cheiro de rosas;
selvas fundas, nevados píncaros, outeiros
de olivais; por nogais, frautas de pegureiros;
rios, noras gemendo, azenhas nas levadas;
eiras de sonho, grutas de génios e de fadas:
riso, abundância, amor, concórdia, Juventude:
e entre a harmonia virgiliana um povo rude,
um povo montanhês e heróico à beira-mar,
sob a graça de Deus a cantar e a lavrar!
Pátria feita lavrando e batalhando: aldeias
conchegadinhas sempre ao torreão de ameias.
Cada vila um castelo. As cidades defesas
por muralhas, bastiões, barbacãs, fortalezas;
e, a dar fé, a dar vigor,
Encontro
Felicidade, agarrei-te
Como um cão, pelo cachaço!
E, contigo, em mar de azeite
Afoguei-me, passo a passo…
Dei à minha alma a preguiça
Que o meu corpo não tivera.
E foi, assim, que, submissa,
Vi chegar a Primavera…
Quem a colher que a arrecade
(Há, nela, um segredo lento…)
Ó frágil felicidade!
— Palavra que leva o vento,
E, depois, como se a ideia
De, nos dedos, a ter tido
Bastasse, por fim, larguei-a,
Sem ficar arrependido…
Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Grandes São os Desertos, e Tudo é Deserto
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Desencontro
Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum –
– que mesmo o que se encontra não se encontra.
Sinfonia de Cor
Sempre defronte
de mim
o mar azul, o mar imenso, o mar sem fim,
todo igual e azul até ao horizonte.Neste dia delirante
de luz crua a jorrar, intensa, lá do alto,
uma vela distante
mancha de branco o seu azul-cobalto.Um traço de espuma branca
junto à penedia
marca a linha da costa em enseada franca.E a nota branca
das gaivotas em bando,
esvoaçando
à revelia,
e um ritmo novo de alegria,
de ruído e de graça.Perto uma vela passa,
lenço branco a acenar…Não ter asas também para poder voar
aonde me levasse a minha fantasia!
E ser gaivota e mergulhar
na água e bater asas,
alegre, todo o dia!Poisar nos calhaus negros, que são brasas,
brasas negras a arder,
e ver aos pés a referver
aos borbotões de espuma.Dar um grito e subir,
subir alto e distante,
já quando a terra se esfuma
e o mar aumenta, quanto mais avante.Partir!
Partir para o delírio das alturas,
Meditação
Às vezes, quando a noite vem caindo,
Tranquilamente, sossegadamente,
Encosto-me à janela e vou seguindo
A curva melancólica do Poente.Não quero a luz acesa. Na penumbra,
Pensa-se mais e pensa-se melhor.
A luz magoa os olhos e deslumbra,
E eu quero ver em mim, ó meu amor!Para fazer exame de consciência
Quero silêncio, paz, recolhimento
Pois só assim, durante a tua ausência,
Consigo libertar o pensamento.Procuro então aniquilar em mim,
A nefasta influência que domina
Os meus nervos cansados; mas por fim,
Reconheço que amar-te é minha sina.Longe de ti atrevo-me a pensar
Nesse estranho rigor que me acorrenta:
E tenho a sensação do alto mar,
Numa noite selvagem de tormenta.Tens no olhar magias de profeta
Que sabe ler no céu, no mar, nas brasas…
Adivinhas… Serei a borboleta
Que vendo a luz deixa queimar as asas.No entanto — vê lá tu!— Eu não lamento
Esta vontade que se impõe à minha…
Nem me revolto… cedo ao encantamento…
— Escrava que não soube ser Rainha!
Sê Rei de Ti Próprio
Não tenhas nada nas mãos
Nem uma memória na alma,
Que quando te puserem
Nas mãos o óbolo último,
Ao abrirem-te as mãos
Nada te cairá.
Que trono te querem dar
Que Átropos to não tire?
Que louros que não fanem
Nos arbítrios de Minos?
Que horas que te não tornem
Da estatura da sombra
Que serás quando fores
Na noite e ao fim da estrada.
Colhe as flores mas larga-as,
Das mãos mal as olhaste.
Senta-te ao sol. Abdica
E sê rei de ti próprio.
Elegia
Vae em seis mezes que deixei a minha terra
E tu ficaste lá, mettida n’uma serra,
Boa velhinha! que eras mais uma criança…
Mas, tão longe de ti, n’este Payz de França,
Onde mal viste, então, que eu viesse parar,
Vejo-te, quanta vez! por esta sala a andar…
Bates. Entreabres de mansinho a minha porta.
Virás tratar de mim, ainda depois de morta?
Vens de tão longe! E fazes, só, essa jornada!
Ajuda-te o bordão que te empresta uma fada.
Altas horas, emquanto o bom coveiro dorme,
Escapas-teãda cova e vens, Bondade enorme!
Atravez do Marão que a lua-cheia banha,
Atravessas, sorrindo, a mysteriosa Hespanha,
Perguntas ao pastor que anda guardando o gado,
(E as fontes cantam e o céu é todo estrellado…)
Para que banda fica a França, e elle, a apontar,
Diz: «Vá seguindo sempre a minha estrella, no Ar!»
E ha-de ficar scismando, ao ver-te assim, velhinha,
Que és tu a Virgem disfarçada em probrezinha…
Mas tu, sorrindo sempre, olhando sempre os céus,
Deixando atraz de ti, os negros Pyrineus,
Sob os quaes rola a humanidade,