O Primeiro Filho
(Carta ao amigo Bernardo Pindela)
Entre tanta miséria e tantas coisas vis
Deste vil grĂŁo de areia,
Ainda tenho o condĂŁo de me sentir feliz
Com a ventura alheia.Ă€ minha noite triste, Ă noite tormentosa,
Onde busco a verdade,
Chegou com asas d’oiro a canção cor-de-rosa
Da tua felicidade.És pai, viste nascer um fragmento d’aurora
Da tua alma, de ti…
Oh, momento divino em que o sorriso chora,
E em que o pranto sorri!Que ventura radiante! oh que ventura infinda!
OlĂmpicos amores
Ter frutos em Abril com o vergel ainda
Carregado de flores!Deslumbramento!… ver num berço o teu futuro
Sorrindo ao teu presente!…
Ter a mulher e a mĂŁe: juntar o beijo puro
Com o beijo inocente!…Eu que vou, javali de flanco ensanguentado,
Pelos rudes caminhos
Ajoelho quando escuto Ă beira dum valado
Os murmĂşrios dos ninhos!Em tudo que alvorece há um sorriso d’esperança,
Candura imaculada!…
E quer seja na flor, quer seja na criança
Sente-se a madrugada.Quando,
Poemas sobre Flores de Guerra Junqueiro
10 resultadosA Escola Portuguesa
Eis as crianças vermelhas
Na sua hedionda prisĂŁo:
Doirado enxame de abelhas!
O mestre-escola Ă© o zangĂŁo.Em duros bancos de pinho
Senta-se a turba sonora
Dos corpos feitos de arminho,
Das almas feitas d’aurora.Soletram versos e prosas
HorrĂveis; contudo, ao lĂŞ-las
Daquelas bocas de rosas
Saem murmĂşrios de estrela.Contemplam de quando em quando,
E com inveja, Senhor!
As andorinhas passando
Do azul no livre esplendor.Oh, que existĂŞncia doirada
Lá cima, no azul, na glória,
Sem cartilhas, sem tabuada,
Sem mestre e sem palmatĂłria!E como os dias sĂŁo longos
Nestas prisões sepulcrais!
Abrem a boca os ditongos,
E as cifras tristes dão ais!Desgraçadas toutinegras,
Que insuportáveis martĂrios!
JoĂŁo FĂ©lix co’as unhas negras,
Mostrando as vogais aos lĂrios!Como querem que despontem
Os frutos na escola aldeĂŁ,
Se o nome do mestre é — Ontem
E o do discĂp’lo — AmanhĂŁ!Como Ă© que há-de na campina
Surgir o trigal maduro,
Se Ă© o Passado quem ensina
O b a ba ao Futuro!
Morena
NĂŁo negues, confessa
Que tens certa pena
Que as mais raparigas
Te chamem morena.Pois eu nĂŁo gostava,
Parece-me a mim,
De ver o teu rosto
Da cor do jasmim.Eu nĂŁo… mas enfim
É fraca a razão,
Pois pouco te importa
Que eu goste ou que nĂŁo.Mas olha as violetas
Que, sendo umas pretas,
O cheiro que tĂŞm!
Vê lá que seria,
Se Deus as fizesse
Morenas também!Tu és a mais rara
De todas as rosas;
E as coisas mais raras
São mais preciosas.Há rosas dobradas
E há-as singelas;
Mas sĂŁo todas elas
Azuis, amarelas,
De cor de açucenas,
De muita outra cor;
Mas rosas morenas,
SĂł tu, linda flor.E olha que foram
Morenas e bem
As moças mais lindas
De Jerusalém.
E a Virgem Maria
NĂŁo sei… mas seria
Morena também.Moreno era Cristo.
Vê lá depois disto
Se ainda tens pena
Que as mais raparigas
Te chamem morena!
Carta (a um Amigo que me Pediu Versos)
Como hei-de ser um Petrarca,
Cantar como um rouxinol,
Se o meu termĂłmetro marca
Quarenta e dois graus ao sol!Da lira bárbara e tosca
Nem saem trovas d’Alfama.
Enxota o PĂ©gaso a mosca,
E eu durmo a sesta na cama.A hipocondria maciça
Conduzo-a, não há remédio,
Na jumenta da preguiça
Pelas charnecas do tédio.Eu trago a inspiração oca,
Ando abatido, ando mono;
Meus versos abrem a boca,
Como os porteiros com sono.NĂŁo tenho a rima imprevista,
Os guizos d’oiro ou de opala,
Que Ă asa da estrofe o artista
Sublime prende ao largá-la.P’ra lapidar Ă vontade
Um belo verso radiante,
Falta-me a tenacidade,
Que Ă© como o pĂł do diamante.A musa foi-se-me embora;
Para onde foi nem me lembro;
SĂł a torno a ver agora
Lá para os fins de Setembro.Anda talvez nas florestas
Fazendo orgias pagĂŁs,
Entre os aromas das giestas
E os braços dos Egipãs.Deixá-la andar lá dois meses
Colhendo imagens e flores,
Recordam-se VocĂŞs do Bom Tempo d’Outrora
(Dedicatória de introdução a «A Musa em Férias»)
Recordam-se vocĂŞs do bom tempo d’outrora,
Dum tempo que passou e que nĂŁo volta mais,
Quando Ăamos a rir pela existĂŞncia fora
Alegres como em Junho os bandos dos pardais?
C’roava-nos a fronte um diadema d’aurora,
E o nosso coração vestido de esplendor
Era um divino Abril radiante, onde as abelhas
Vinham sugar o mel na balsâmina em flor.
Que doiradas canções nossas bocas vermelhas
NĂŁo lançaram entĂŁo perdidas pelo ar!…
Mil quimeras de glĂłria e mil sonhos dispersos,
Canções feitas sem versos,
E que nĂłs nunca mais havemos de cantar!
Nunca mais! nunca mais! Os sonhos e as esp’ranças
São áureos colibris das regiões da alvorada,
Que buscam para ninho os peitos das crianças.
E quando a neve cai já sobre a nossa estrada,
E quando o Inverno chega Ă nossa alma,entĂŁo
Os pobres colibris, coitados, sentem frio,
E deixam-nos a nós o coração vazio,
Para fazer o ninho em outro coração.
Meus amigos, a vida Ă© um Sol que chega ao cĂşmulo
Quando cantam em nós essas canções celestes;
Carta a F.
És tu quem me conduz, és tu quem me alumia,
Para mim nĂŁo desponta a aurora, nĂŁo Ă© dia,
Se nĂŁo vejo os dois sĂłis azuis do teu olhar.
Deixei-te há pouco mais dum mês, – mês secular
E nessa noite imensa, ah, digo-te a verdade,
Iluminou-me sempre o luar da saudade.
E nesses montes nus por onde eu tenho andado,
Trágicos vagalhões dum mar petrificado,
Sempre adiante de mim dentre a aridez selvagem,
Vi como um lĂrio branco erguer-se a tua imagem.
Nunca te abandonei! Nunca me abandonaste!
És o sol e eu a sombra. És a flor e eu a haste.
Na hora em que parti meu coração deixei-o
Na urna virginal desse divino seio,
E o teu sinto-o eu aqui a bater de mansinho
Dentro em meu peito, como uma rola em seu ninho!
O Teu Aniversário
Pediste-me sorrindo, Ăł minha flor gentil,
Uns versos Ă s tuas vinte alvoradas de Abril.
Vinte anos já!… nĂŁo creio, estás equivocada…
Enganas-te. Eu irei perguntar Ă alvorada
Quantas vezes pousou em ĂŞxtase, ao de leve,
A sua boca de rosa em tua fronte de neve.
Vinte anos! Podes crer, pomba que eu idolatro,
Que se o corpo fez vinte, a alma, nĂŁo: fez quatro.
A tua alma nasceu inefável, divina,
Para ser sempre grande e sempre pequenina.
É como a estrela d’alva; enche o seu esplendor
O Mundo, e ela nĂŁo enche o cálix duma flor!…
A Minha Filha
(Vendo-a dormir)
Que alma intacta e delicada!
Que argila pura e mimosa!
É a estrela d’alvorada
Dentro dum botĂŁo de rosa!E, enquanto dormes tranquila,
Vejo o divino esplendor
Da alma a sair da argila,
Da estrela a sair da flor!Anjos, no azul inocente,
Sobre o teu hálito leve
Desdobram candidamente,
Em pálio, as asas de neve…E eu, urze má das encostas,
Eu sinto o dever sagrado
De te beijar— de mãos postas!
De te abençoar — ajoelhado!
Em Viagem
Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um sĂł prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarĂŁo.A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que Ă© o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.Beijo tĂŁo longo e dolente,
TĂŁo longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim…Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.Num gemido tĂŁo suave,
TĂŁo triste na noite escura,
Que Ă© como uma queixa d’ave
Presa numa sepultura!…Em sonho, Ă s vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.E sem extremo conforto
Que eu ness’hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.
Vendo-a Sorrir
(A minha filha)
Filha, quando sorris, iluminas a casa
Dum celeste esplendor.
A alegria é na infância o que na ave é asa
E perfume na flor.Ă“ doirada alegria, Ăł virgindade santa
Do sorriso infantil!
Quando o teu lábio ri, filha, a minha alma canta
Todo o poema de Abril.Ao ver esse sorriso, Ăł filha, se concentro
Em ti o meu olhar,
Engolfa-se-me o céu azul pela alma dentro
Com pombas a voar.Sou o Sol que agoniza, e tu, meu anjo loiro,
És o Sol que se eleva.
Inunda-me de luz, sorri, polvilha de oiro
O meu manto de treva!