Pranto pelo Dia de Hoje
Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas
Poemas sobre Gesto de Sophia de Mello Breyner Andresen
7 resultadosHora
Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta – por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.E dormem mil gestos nos meus dedos.
Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.E de novo caminho para o mar.
Um dia
Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.
Tão Grande Dor
“Tão grande dor para tão pequeno povo” palavras de um timorense à RTP
Timor fragilíssimo e distante
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha“Sândalo flor búfalo montanha
Cantos danças ritos
E a pureza dos gestos ancestrais”Em frente ao pasmo atento das crianças
Assim contava o poeta Rui Cinatti
Sentado no chão
Naquela noite em que voltara da viagemTimor
Dever que não foi cumprido e que por isso dóiDepois vieram notícias desgarradas
Raras e confusas
Violências mortes crueldade
E anos após ano
Ia crescendo sempre a atrocidade
E dia a dia – espanto prodígio assombro –
Cresceu a valentia
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanhaTimor cercado por um bruto silêncio
Mais pesado e mais espesso do que o muro
De Berlim que foi sempre falado
Porque não era um muro mas um cerco
Que por segundo cerco era cercadoO cerco da surdez dos consumistas
Tão cheios de jornais e de notíciasMas como se fosse o milagre pedido
Pelo rio da prece ao som das balas
As imagens do massacre foram salvas
As imagens romperam os cercos do silêncio
Irromperam nos écrans e os surdos viram
A evidência nua das imagens
Porque
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu nãoPorque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Aqui
Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem,
No interior das coisas canto nua.Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos,
Aqui sou eu em tudo quanto amei.Não por aquilo que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos actos que vivi,Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.
De um Amor Morto
De um amor morto fica
Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do anoDe um amor morto não fica
Nenhuma memória
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam emboraPois um amor morto não deixa
Em nós seu retrato
De infinita demora
É apenas um facto
Que a eternidade ignora