Benção
Quando, por uma lei da vontade suprema,
O Poeta vem a luz d’este mundo insofrido
A desolada mãe, numa crise de blasfêmia,
Pragueja contra Deus, que a escuta comovido:— “Antes eu procriasse uma serpe infernal!
Do que ter dado vida a um disforme aleijão!
Maldita seja a noite em que o prazer carnal
Fecundou no meu ventre a minha expiação!Já que fui a mulher destinada, Senhor,
A tornar infeliz quem a si me ligou,
E não posso atirar ao fogo vingador
O fatal embrião que meu sangue gerou.Vou fazer recair o meu ódio implacável
No monstro que nasceu das tuas maldições
E saberei torcer o arbusto miserável
De modo que não vingue um só dos seus botões!”E sobre Deus cuspindo a sua mágoa ingente
Ignorando a razão dos desígnios do Eterno,
A tresloucada mãe condena, inconsciente,
A sua pobre alma às fogueiras do inferno.Bafeja a luz do sol o fruto malfadado,
Vela pelo inocente um anjo peregrino;
A água que ele bebe é um néctar perfumado,
O pão é um manjar saboroso,
Poemas sobre Inocentes
32 resultadosGratidão
A minha gratidão te dá meus versos:
Meus versos, da lisonja não tocados,
Satélites de Amor, Amor seguindo
Co’as asas que lhes pôs benigna Fama,
Qual níveo bando de inocentes pombas,
Os lares vão saudar, propícios lares,
Que em doce recepção me contiveram
Incertos passos da Indigência errante;
Dos olhos vão ser lidos, que apiedara
A catástrofe acerba de meus dias,
Dos infortúnios meus o quadro triste;
Vão pousar-te nas mãos, nas mãos que foram
Tão dadivosas para o vate opresso,
Que o peso dos grilhões me aligeiraram,
Que sobre espinhos me esparziram flores,
Enquanto não recentes, vãos amigos,
Inúteis corações, volúvel turba
(A versos mais atenta que a suspiros)
No Letes mergulhou memórias minhas.
Amigos da Ventura e não de Elmano,
Aónio serviçal de vós me vinga;
Ao nome da Virtude o Vício core.Não sei se vens de heróis, se vens de grandes;
Não sei, meu benfeitor, se teus maiores
Foram cobertos, decorados foram
De purpúreos dosséis, de márcios loiros;
Sei que frequentas da Amizade o templo,
Que és grande,
A Guerra
Musa, pois cuidas que é sal
o fel de autores perversos,
e o mundo levas a mal,
porque leste quatro versos
de Horácio e de Juvenal,Agora os verás queimar,
já que em vão os fecho e os sumo;
e leve o volúvel ar,
de envolta como turvo fumo,
o teu furor de rimar.Se tu de ferir não cessas,
que serve ser bom o intento?
Mais carapuças não teças;
que importa dá-las ao vento,
se podem achar cabeças?Tendo as sátiras por boas,
do Parnaso nos dois cumes
em hora negra revoas;
tu dás golpes nos costumes,
e cuidam que é nas pessoas.Deixa esquipar Inglaterra
cem naus de alterosa popa,
deixa regar sangue a terra.
Que te importa que na Europa
haja paz ou haja guerra?Deixa que os bons e a gentalha
brigar ao Casaca vão,
e que, enquanto a turba ralha,
vá recebendo o balcão
os despojos da batalha.Que tens tu que ornada história
diga que peitos ferinos,
A Força que Há na Luz
A força que há na luz, não sua ausência,
pode ser a origem mais secreta
do escuro em que afundamos de repente:
por excesso de luz, eis que estou cega,
por excesso de amor, eu não entendo
– o farfalhar macio, a crua seda –
aquilo que nos move, e que ultrapassa
o limite de tudo o que sabemos.
Por excesso de dor eu me humanizo,
eu me faço pequena e tão real,
nos tornamos serenos, silenciosos,
tão reais e inocentes e macios,
que essa luz que não vemos é demais.
Mesmo ser é um excesso em que caímos.
Soneto de Natal
«E o terceiro Anjo derramou a sua taça nos rios
e nas fontes, ficando a água da cor do sangue.»
Apocalipse, 16:4Não anuncio a paz, mas sim a guerra.
Um. Anjo vingador comigo vem.
Há dois milénios que percorro a Terra
repetindo a mensagem de Belém.O coração humano endureceu
à força de sentir a Fé perdida.
E o espírito do Bem? Ensurdeceu
no furacão das ambições da vida.Por isso trago um Anjo vingador
para ferir de morte a semelhança
do lobo disfarçado de cordeiro:— Que se cuide quem não sentir Amor
pois matará em si essa criança
inocente que um dia foi primeiro.
Os Amantes
Amor, é falso o que dizes;
Teu bom rosto é contrafeito;
Busca novos infelizes
Que eu inda trago no peito
Mui frescas as cicatrizes;O teu meu é mel azedo,
Não creio em teu gasalhado,
Mostras-me em vão rosto ledo;
Já estou muito escaldado,
Já d’águas frias hei medo.Teus prémios são pranto e dor;
Choro os mal gastados anos
Em que servi tal senhor,
Mas tirei dos teus enganos
O sair bom pregador.Fartei-te assaz a vontade;
Em vãos suspiros e queixas
Me levaste a mocidade,
E nem ao menos me deixas
Os restos da curta idade?És como os cães esfaimados
Que, comendo os troncos quentes
Por destro negro esfolados,
Levam nos ávidos dentes
Os ossos ensanguentados.Bem vejo a aljava dourada
Os ombros nus adornar-te;
Amigo, muda de estrada,
Põe a mira em outra parte
Que daqui não tiras nada.Busca algum fofo morgado
Que, solto já dos tutores,
Ao domingo penteado,
Vá dizendo à toa amores
Pelas pias encostado;
Baladas Românticas – Branca…
Vi-te pequena: ias rezando
Para a primeira comunhão:
Toda de branco, murmurando,
Na fronte o véu, rosas na mão.
Não ias só: grande era o bando…
Mas entre todas te escolhi:
Minh’alma foi te acompanhando,
A vez primeira em que te vi.Tão branca e moça! o olhar tão brando!
Tão inocente o coração!
Toda de branco, fulgurando,
Mulher em flor! flor em botão!
Inda, ao lembrá-lo, a mágoa abrando,
Esqueço o mal que vem de ti,
E, o meu rancor estrangulando,
Bendigo o dia em que te vi!Rosas na mão, brancas… E, quando
Te vi passar, branca visão,
Vi, com espanto, palpitando
Dentro de mim, esta paixão…
O coração pus ao teu mando…
E, porque escravo me rendi,
Ando gemendo, aos gritos ando,
– Porque te amei! porque – te vi!Depois fugiste… E, inda te amando,
Nem te odiei, nem te esqueci:
– Toda de branco… Ias rezando…
Maldito o dia em que te vi!
Loa
É nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.
Adeus Tranças Cor de Ouro
Adeus tranças cor de ouro,
Adeus peito cor de neve!
Adeus cofre onde estar deve
Escondido o meu tesouro!Adeus bonina, adeus lírio
Do meu exílio de abrolhos!
Adeus, ó luz dos meus olhos
E meu tão doce martírio!Adeus meu amor-perfeito,
Adeus tesouro escondido,
E de guardado, perdido
No mais íntimo do peito.Desfeito sonho dourado,
Nuvem desfeita de incenso
Em quem dormindo só penso,
Em quem só penso acordado!Visão, sim, mas visão linda,
Sonho meu desvanecido!
Meu paraíso perdido
Que de longe adoro ainda!Nuvem que ao sopro da aragem
Voou nas asas de prata,
Mas no lago que a retrata
Deixou esculpida a imagem!Rosa de amor desfolhada
Que n’alma deixou o aroma,
Como o deixa na redoma
Fina essência evaporada!Gota de orvalho que o vento
Levou do cálix das flores,
Curto abril dos meus amores,
Primavera de um momento!Adeus Sol, que me alumia
Pelas ondas do oceano
Desta vida, deste engano,
A Minha Filha
(Vendo-a dormir)
Que alma intacta e delicada!
Que argila pura e mimosa!
É a estrela d’alvorada
Dentro dum botão de rosa!E, enquanto dormes tranquila,
Vejo o divino esplendor
Da alma a sair da argila,
Da estrela a sair da flor!Anjos, no azul inocente,
Sobre o teu hálito leve
Desdobram candidamente,
Em pálio, as asas de neve…E eu, urze má das encostas,
Eu sinto o dever sagrado
De te beijar— de mãos postas!
De te abençoar — ajoelhado!
O Amor em Visita
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.Cantar? Longamente cantar.
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas –
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes.
Ele – imagem vertiginosa e alta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob os dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
– Oh cabra no vento e na urze,
Em Viagem
Desde aquela dor tamanha
Do momento em que parti
Um só prazer me acompanha,
Filha, o de pensar em ti:Por sobre a negra paisagem
Do meu ermo coração
O luar branco da tua imagem
Veste um benigno clarão.A tarde, no azul celeste,
Há uma estrela esmorecida,
Que é o beijo que tu me deste
Na hora da despedida.Beijo tão longo e dolente,
Tão longo e cortado de ais,
Que o meu coração pressente
Que não te torno a ver mais.Conto no céu estrelado
Lágrimas de oiro sem fim:
É o pranto que tens chorado,
De dia e noite, por mim…Quando me deito na cama
E vou quase adormecido,
Oiço a tua voz que me chama,
Num suplicante gemido.Num gemido tão suave,
Tão triste na noite escura,
Que é como uma queixa d’ave
Presa numa sepultura!…Em sonho, às vezes, meu Deus,
Cuido que vou expirar,
Sem levar nos olhos meus
O teu derradeiro olhar.E sem extremo conforto
Que eu ness’hora quero ter:
Beijar a fronte do morto
Aquela que o fez viver.