Canção da Saudade
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na minha edade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemiterios – as lágens sĂŁo espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos florĂdos virgens nĂşas, mulheres bellas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres sĂŁo como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Poemas sobre Lua de Almada Negreiros
4 resultadosTrevas
De dia nĂŁo se via nada, mas p’la tardinha já se apercebia gente que vinha de punhaes na mĂŁo, devagar, silenciosamente, nascendo dos pinheiros e morrendo nelles. E os punhaes nĂŁo brilhavam: eram luzes distantes, eram guias de lençoes de linho escorridos de hombros franzinos. E a briza que vinha dava gestos de azas vencidas aos lençoes de linho, azas brancas de garças caĂdas por faunos caçadores. E o vento segredava por entre os pinheiros os mĂŞdos que nasciam.
E vinha vindo a Noite por entre os pinheiros, e vinha descalça com pĂ©s de surdina por mĂ´r do barulho, de braços estendidos p’ra nĂŁo topar com os troncos; e vinha vindo a noite cĂ©guinha como a lanterna que lhe pendia da cinta. E vinha a sonhar. As sombras ao vĂŞ-la esconderam os punhaes nos peitos vazios.
A lua Ă© uma laranja d’oiro num prato azul do Egypto com perolas desirmanadas. E as silhuetas negras dos pinheiros embaloiçados na briza eram um bailado de estatuas de sonho em vitraes azues. MĂŁos ladras de sombra leváram a laranja, e o prato enlutou-se.
Por entre os pinheiros esgalgados, por entre os pinheiros entristecidos, havia gemidos da briza dos tumulos,
Ruinas
Pandeiros rôtos e côxas táças de crystal aos pés da muralha.
Heras como Romeus, Julietas as ameias. E o vento toca, em bandolins distantes, surdinas finas de princezas mortas.
Poeiras adormecidas, netas fidalgas de minuetes de mĂŁos esguias e de cabelleiras embranquecidas.
Aquellas ameias cingiram uma noite peccados sem fim; e ainda guardam os segredos dos mudos beijos de muitas noites. E a lua velhinha todas as noites rĂ©za a chorar: Era uma vez em tempo antigo um castello de nobres naquelle lugar… E a lua, a contar, pára um instante – tem mĂŞdo do frio dos subterraneos.
Ouvem-se na sala que já nem existe, compassos de danças e rizinhos de sêdas.
Aquellas ruinas sĂŁo o tumulo sagrado de um beijo adormecido – cartas lacradas com ligas azues de fechos de oiro e armas reais e lizes.
Pobres velhinhas da cĂ´r do luar, sem terço nem nada, e sempre a rezar…
Noites de insonia com as galés no mar e a alma nas galés.
Archeiros amordaçados na noite em que o cĂ´che era de volta ao palacio pela tapada d’El-rei. Grande caçada na floresta–galgos brancos e Amazonas negras.
Ciumes
Pierrot dorme sobre a relva junto ao lago. Os cisnes junto d’elle passam sĂŞde, nĂŁo n’o acordem ao beber.
Uma andorinha travĂŞssa, linda como todas, avĂ´a brincando rente á relva e beija ao passar o nariz de Pierrot. Elle accorda e a andorinha, fugindo a muito, olha de medo atraz, nĂŁo venha o Pierrot de zangado persegui-la pelos campos. E a andorinha perdia-se nos montes, mas, porque elle se queda, de nĂ´vo volta em zig-zags travĂŞssos e chilreios de troça. E chilreia de troça, muito alto, por cima d’elle. Pierrot já se adormecia, e a andorinha em descida que faz calafrios pousou-lhe no peito duas ginjas bicadas, e fugiu de nĂ´vo.
De contente, ergueu-se sorrindo e de joelhos, braços erguidos, seus olhos foram tão longe, tão longe como a andorinha fugida nos montes.
De repente viu-se cego – os dedos finissimos da Colombina brincavam com elle. Desceu-lhe os dedos aos labios e trocou com beijos o arĂ´ma das palmas perfumadas. Depois dependurou-lhe de cada orelha uma ginja, á laia de brincos com joias de carmim. Rolaram-se na relva e uniram as boccas, e já se esqueciam de que as tinham juntas…
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