Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos de trás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos,
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente,Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Poemas sobre Máquina
28 resultadosUm Calculador de Improbabilidades
O poeta é
um calculador de improbabilidades limita
a informação quantitativa fornecendo
reforçada informação estésica.
É uma máquina eta-erótica em que as discrepâncias
são a fulgurância da máquina.
A crueldade elegante da máquina resulta da
competição pirotécnica da circulação íntima
e fulgurante do seu maquinismo erótico.
A psicologia do maquinal sabe que basta
que se crie um pólo positivo para que o pólo
negativo surja
ou vice-versa
e as evoluções telecinéticas pela força
das catástrofes desenvolvem suas faculdades
latentes ou absorvem-nas como a esponja absorve
as águas variáveis dos humores
que transforma em polaridade.
O maquinal eta-erótico está em astrogação
curso hipnótico dos polímeros.
Digo com precisão fenomenológica: o maquinal
circula em sua hiperesfera da maneira mais
excêntrica.
Digo e garanto:
o maquinal absolutamente absorve suas águas
variáveis e isso é o seu amplexo.
O maquinal eta-erótico é tu-eu.
O maquinal tu-eu
cuja tarefa árdua não é
definir a verdade está no meio da profusão
dos objectos
e considera o consumo a verdade deslocada
deslocação de grande tonelagem
laboriosa alfaiataria de eros
constante moribunda
e esse opróbrio dispersivo e vexável
indifere a vida esponjosa.
Dactilografia
Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavaleiros
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.Outrora.
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Guerra
Tanto é o sangue
que os rios desistem de seu ritmo,
e o oceano delira
e rejeita as espumas vermelhas.Tanto é o sangue
que até a lua se levanta horrível,
e erra nos lugares serenos,
sonâmbula de auréolas rubras,
com o fogo do inferno em suas madeixas.Tanta é a morte
que nem os rostos se conhecem, lado a lado,
e os pedaços de corpo estão por ali como tábuas sem uso.Oh, os dedos com alianças perdidos na lama…
Os olhos que já não pestanejam com a poeira…
As bocas de recados perdidos…
O coração dado aos vermes, dentro dos densos uniformes…Tanta é a morte
que só as almas formariam colunas,
as almas desprendidas… — e alcançariam as estrelas.E as máquinas de entranhas abertas,
e os cadáveres ainda armados,
e a terra com suas flores ardendo,
e os rios espavoridos como tigres, com suas máculas,
e este mar desvairado de incêndios e náufragos,
e a lua alucinada de seu testemunho,
e nós e vós, imunes,
chorando,
Viver Sempre também Cansa
Viver sempre também cansa.
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde…
Mas nunca tem a cor inesperada.O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
Passagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite… Acordo de repente
Yat-iô–ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô … Ghi-…
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)…
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar…
Tempestades em torno ao Guardaful…
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada…
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo…Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu,
Semântica Electrónica
Ordeno ao ordenador que me ordene o ordenado
Ordeno ao ordenador que me ordenhe o ordenhado
Ordinalmente
Ordenadamente
Ordeiramente.
Mas o desordeiro
Quebrou o ordenador
E eu já não dou ordens
coordenadas
Seja a quem for.
Então resolvo tomar ordens
Menores, maiores,
E sou ordenado,
Enfim – o ordenado
Que tentei ordenhar ao ordenador quebrado.
– Mas – diz-me a ordenança –
Você não pode ordenhar uma máquina:
Uma máquina é que pode ordenhar uma vaca.
De mais a mais, você agora é padre,
E fica mal a um padre ordenhar, mesmo uma ovelha
Velhaca, mesmo uma ovelha velha,
Quanto mais uma vaca!
Pois uma máquina é vicária (você é vigário?):
Vaca (em vacância) à vaca.
São ordens…
Eu então, ordinalmente ordeiro, ordenado, ordenhado,
Às ordens da ordenança em ordem unida e dispersa
(Para acabar a conversa
Como aprendi na Infantaria),
Ordenhado chorei meu triste fado.
Mas tristeza ordenhada é nata de alegria:
E chorei leite condensado,
Leite em pó, leite céptico asséptico,
Oh, milagre ordinal de um mundo cibernético!
Acordar
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
SejaA mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas…