Só os Lábios Respiram
Só os lábios respiram. Simples gesto vivo,
exílio do som onde se oculta o pavor da
palavra, pátria salgada cerrada no vazio
da casa de velhos deuses ávidos de preces.
Na garra da águia se fecha e rompe a boca,
templo e entranha, prodígio e anel
do eco, sinal esparso do caído concerto
da vida. Por estes soberbos montes, estas
rasas colinas, estas águas circulantes,
vai o grito da cegueira, o delírio lasso
na manhã, a saciada loucura do escuro
nome nocturno. Como um fragor dos céus,
caminha o canto agudo das árduas cigarras
perseguindo a funesta morte. Por esta
paisagem parda, que lábios me guardam
do próximo desastre, a mudança em ave,
cio ou sal, erva ou peixe, cicatriz ou
mito, veia ou água? Que lábios respiram
na coisa mortal que serei após o termo
da eterna efemeridade deste meu corpo,
coma de luz, deste desejo, rijo resíduo,
deste pensamento, disfarce ou máscara,
deste rapto do tempo, deste
coração que começa?
Poemas sobre Máscara
23 resultadosActo de Contrição
Pela luz rara da garagem dois vultos
vão pôr o lixo. São velhos desconhecidos. Um
ao outro dão passagem (a
máscara de um cumprimento) esquivos na
escatológica arqueologia das misérias.
Homens de lixo na mão: exímios
a ocultar
versos da vida doméstica (quando
o gesto liso cabe ao avental abundante que os
devolve a casa). Há
em todo esse agravo uma redenção ferida
(um juízo resolvido) como que um
indulto lento.
A Mais Bela Noite do Mundo
Hoje,
será o fim!Hoje
nem este falso silêncio
dos meus gestos malogrados
debruçando-se
sobre os meus ombros nus
e esmagados!Nem o luar, pano baço de cenário velho,
escutando
a minha prisão de viver
a lição que me ditavam:
– Menino! acende uma vela na tua vida,
que o sol, a luz e o ar
são perfumes de pecado.
Tem braços longos e tentadores – o dia!– Menino! recolhe-te na sombra do meu regaço
que teus pés
são feitos de barro e cansaço!(Era esta a voz do papão
pintado de belo
na máscara de papelão).Eram inúteis e magoadas as noites da minha rua…
Noites de lua
que lembravam as grilhetas
da minha vida parada.– Amanhã,
terás os mestres, as aulas, os amigos e os livros
e o espectáculo da morgue
morando durante dias
nos teus sentidos gorados.Amanhã,
será o ultrapassar outra curva
no teu caminho destinado.(Era esta a voz do papão
que acendia a vela,
Memento por um coração que ladra
O
cão
que
mais
ganir
é
francês,
eco
nostálgico
de
uma
Bretanha
em fúria,
uvas
sangrentas,
espelho
ratado
pelo
sítio
do umbigo.
Um
bicho
que
gane
merece
os
ardis
todos
e
sulfúricas
desgraças.
Dá-se
ao
animal
o
que
vier
do
medo
(rebuçado
com
buço
de
sapo)
e
as
máscaras
do
Lácio
passam.
Então
ser
voada
flor
em chaga
ou
simples
cão
já
não
atrapalha
nem
é trapaça.
Um
coração
que
ladra
tem
sempre
boa
raça.
Os Arlequins – Sátira
Musa, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
Musa, toma a vergasta,
E os arlequins fustiga!Como aos olhos de Roma,
— Cadáver do que foi, pávido império
De Caio e de Tibério, —
O filho de Agripina ousado assoma;
E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
Pedia, ameaçando,
O aplauso acostumado;E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
E tu, tu não caías,
Ó raio chamejante!Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
Não encanta o ouvido,
Fascina a consciência!Vede; o aspecto vistoso,
O olhar seguro,
Só de Restos se Consagra o Tempo
Só de restos se consagra o tempo, força
cerrada na inutilidade destas
cores campestres, quando o sol em Novembro
escurece os sobreiros. Só de restos me
espera a cerimónia de viver,
trânsito e transigência do silêncio,
ocultado no meu corpo. Só de restos
o trespassa o tempo, máscara e manto. Morro
muito antes da morte, sem saber se os anjos
foram gaivotas hirtas no piedoso
musgos dos rios ou se hão-de ser maçãs
ou ciência, loendros ou lembrança,
inocentes, lúcidos sonos ou oblata
de seda, a deus cedida, em pagamento
da paz. Só do que chega ao fim, se corrompe
e apodrece, se imagina o princípio,
a majestade das coisas, o silêncio
irrevelado que o corpo desconhece.
O Descalabro
O descalabro a ócio e estrelas…
Nada mais…
Farto…
Arre…
Todo o mistério do mundo entrou para a minha vida econômica.
Basta!…
O que eu queria ser, e nunca serei, estraga-me as ruas.
Mas então isto não acaba?
É destino?
Sim, é o meu destino
Distribuído pelos meus conseguimentos no lixo
E os meus propósitos à beira da estrada —
Os meus conseguimentos rasgados por crianças,
Os meus propósitos mijados por mendigos,
E toda a minha alma uma toalha suja que escorregou para o chão.…………………………………………………………………………………………..
O horror do som do relógio à noite na sala de jantar dê uma casa de
província —
Toda a monotonia e a fatalidade do tempo…
O horror súbito do enterro que passa
E tira a máscara a todas as esperanças.
Ali…
Ali vai a conclusão.
Ali, fechado e selado,
Ali, debaixo do chumbo lacrado e com cal na cara
Vai, que pena como nós,
Vai o que sentiu como nós,
Vai o nós!
Ali, sob um pano cru acro é horroroso como uma abóbada de cárcere
Ali,
A uma Mulher que Sendo Velha se Enfeitava
Escuta, ó Sara, pois te falta espelho
Para ver tuas faltas,
Não quero que te falte meu conselho
Em presunções tão altas;
Lembro-te agora só, que és terra, e lodo,
E em terra hás de tornar-te deste modo,
Mas não te digo, nem te lembro nada,
Porque há muito, que em terra estás tornada.Que importa, que algum tempo a prata pura
De tuas mãos nascesse,
E que de teus cabelos a espessura
As minas de ouro desse,
Se o tempo vil, que tudo troca, e muda,
Somente de ouro pôs por mais ajuda
Em tuas mãos de prata o amarelo,
E a prata de tuas mãos em teu cabelo.Se um tempo foram de marfim brunido
No século dourado,
Não vês, que o tempo as tem já consumido?
Não vês, que as tem gastado?
Deixa, Senhora, deixa os vãos enredos,
Pois quando toco teus nodosos dedos,
Me parece, que apalpo sem enganos
Cinco cordões de frades Franciscanos.Viciando a natureza com tuas tintas,
Com pincéis delicados
Jasmins, e rosas em teu rosto pintas,
A Dama de Elche
Seus olhos
pararam no limiar. Mas a morte
participa também do mistério da vida,
e essas amêndoas que mantém
explícitas ao nada, anunciam
outra árvore em nós.Toda a feição já se concentra
no que os olhos não dizem. Antes
fossem fechados,
como os lábios na dureza do mento,
e a ciência ou a razão que nos perturba
não deixariam no berloque aguerrido
essa espantosa serenidade gélida de amor.Mulher-senhora. Mãe?
Nos adornos
da espera, (nossa
a dúvida) fica a vida
que freme, e os abismos
que a beleza flanqueiam. Até que os pés
alados
despertem a princesa. Então,
Deus a recolhe,
e roça
nossas parcas medidas. A morte
desancora. Pela rigidez
da inacessível máscara, escorre
como as chuvas
o seu íntimo trabalho de existir.
A Taça de Chá
O luar desmaiava mais ainda uma máscara caida nas esteiras bordadas. E os bambús ao vento e os crysanthemos nos jardins e as garças no tanque, gemiam com elle a advinharem-lhe o fim. Em róda tombávam-se adormecidos os idolos coloridos e os dragões alados. E a gueisha, procelana transparente como a casca de um ovo da Ibis, enrodilhou-se num labyrinto que nem os dragões dos deuses em dias de lagrymas. E os seus olhos rasgados, perolas de Nankim a desmaiar-se em agua, confundiam-se scintillantes no luzidio das procelanas.
Elle, num gesto ultimo, fechou-lhe os labios co’as pontas dos dedos, e disse a finar-se:–Chorar não é remedio; só te peço que não me atraiçoes emquanto o meu corpo fôr quente. Deitou a cabeça nas esteiras e ficou. E Ella, num grito de garça, ergueu alto os braços a pedir o Ceu para Elle, e a saltitar foi pelos jardíns a sacudir as mãos, que todos os que passavam olharam para Ella.
Pela manhã vinham os visinhos em bicos dos pés espreitar por entre os bambús, e todos viram acocorada a gueisha abanando o morto com um leque de marfim.
A estampa do pires é igual.
Os Amigos
no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areiastinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noiteprendiam sóis nos cabelos entrançados
lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei
depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lumeofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Poema da Utopia
A noite caiu sem manchas e sem culpa.
Os homens tiraram as máscaras de bons actores.
Findou o espectáculo. Tudo o mais é arrabalde.
No alto, a utópica lua, vela comigo
e sonha inutilmente com a verdade das coisas.– Noite! Deixa-nos também dormir…
Ciumes
Pierrot dorme sobre a relva junto ao lago. Os cisnes junto d’elle passam sêde, não n’o acordem ao beber.
Uma andorinha travêssa, linda como todas, avôa brincando rente á relva e beija ao passar o nariz de Pierrot. Elle accorda e a andorinha, fugindo a muito, olha de medo atraz, não venha o Pierrot de zangado persegui-la pelos campos. E a andorinha perdia-se nos montes, mas, porque elle se queda, de nôvo volta em zig-zags travêssos e chilreios de troça. E chilreia de troça, muito alto, por cima d’elle. Pierrot já se adormecia, e a andorinha em descida que faz calafrios pousou-lhe no peito duas ginjas bicadas, e fugiu de nôvo.
De contente, ergueu-se sorrindo e de joelhos, braços erguidos, seus olhos foram tão longe, tão longe como a andorinha fugida nos montes.
De repente viu-se cego – os dedos finissimos da Colombina brincavam com elle. Desceu-lhe os dedos aos labios e trocou com beijos o arôma das palmas perfumadas. Depois dependurou-lhe de cada orelha uma ginja, á laia de brincos com joias de carmim. Rolaram-se na relva e uniram as boccas, e já se esqueciam de que as tinham juntas…
–
Pedra Filosofal
Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
10
A nuvem anuncia a secura das casas.
Um homem desloca-se devagar,
atravessa uma plantação de café em
silêncio, como as aves da noite. A sua fome
é igual à dos pássaros que reflectem no espelho
uma máscara de dor. Quando o homem desperta
dessa travessia apenas encontra um rolo de tabaco
velho e um machado quebrado em cima de uma
mesa. E não volta nunca mais a esse lugar.
De Memória
Nunca te surpreendeu o sorriso estático
das imagens antigas? Alguma coisa aqui
tivemos de perder. Percorro dias e corpos na memória,
mas o que procuro mais é não te ver.Quem ama quem? As máscaras trocaram-se
e a tua voz ressoa neste palco.
Trouxe versos e música para te dar,
mas o rosto que tivemos já partiu;
fiquei eu só, à beira da memória,
água do mar que não serve para beber.Porque esta foi a paixão, o grande acto,
a tímida paixão de asas de chumbo.
Eu vi-te muitas vezes frente ao mar,
mas quem de nós para acender a cinza?
– ronda-nos a ave de presa despojada
sobre os malefícios. Aliás, coisas passadas.Não te surpreendeu? O amor
surpreende – não convém, desarruma.
E nunca se ama ao certo quem se ama.
Procuramos apenas um brilho,
um brilho muito intenso no olhar,
um brilho que não vamos definir
e que algum dia iremos renegar.
Dois Excertos de Odes
(Fins de duas odes, naturalmente)
I
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lentejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo,
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter conosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
A Minha Dôr
Tua morte feriu-me no mais fundo,
Remoto da minh’alma que eu julgava
Já fóra desta vida e deste mundo!E vejo agora quanto me enganava,
Imaginando possuir em mim
Alma que fôsse livre e não escrava!Meu espirito é treva e dôr sem fim.
Todo eu sou dôr e morte. Sou franquêsa.
Sou o enviado da Sombra. Ao mundo vimPrégar a noite, a lagrima, a incertêsa,
A luz que, para sempre, anoiteceu…
Esta envolvente, essencial tristêsa,Tristêsa original donde nasceu
O sol caindo em lagrimas de luz,
Chôro de oiro inundando terra e céu!Sou o enviado da Sombra. Em negra cruz,
Meu ilusorio sêr crucificado
Lembra um morto phantasma de Jesus…E aos pés da minha cruz, no chão maguado,
A tua Ausencia é a Virgem Dolorosa,
Com tenebroso olhar no meu pregado.Ah! quanto a minha vida religiosa,
Depois que te perdeste no sol-pôsto,
Se fez incerta, fragil e enganosa!Em meu sêr desenhou-se um novo rôsto.
Sou outro agora; e vejo com pavor
Minha máscara interna de desgôsto.
Depus a Máscara
Depus a máscara e vi-me ao espelho. —
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada…
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.