Pelo Tejo Vai-se para o Mundo
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
Poemas sobre Ninguém
215 resultadosSaudade Extrema
1
Gentil Rola, que sobre o ramo seco,
Desse viúvo freixo, brandas queixas
Espalhas toda a noite, e escutas o eco
Repetir-te mavioso iguais endechas:2
Não chores. Ouve a meu saudoso canto,
Que excede quanta mágoa arroja a sorte:
Ninguém, como eu padece extremo tanto,
Que a ninguém roubou tanto a crua Morte,3
Tu viste Márcia: a Márcia, oh Rola, ouviste,
Quanta beleza, oh Céus! quanta doçura!
Tem coração de bronze quem resiste
À dor de a ver no horror da sepultura.4
Tu podes ter formosa companhia
Terna e fiel. Filinto desgraçado
Te perdeu a sperança lisonjeira
De achar Márcia em transunto inanimado.
Ortofrenia
Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas
de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
aclamações
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém
Viver
Mas era apenas isso,
era isso, mais nada?
Era só a batida
numa porta fechada?E ninguém respondendo,
nenhum gesto de abrir:
era, sem fechadura,
uma chave perdida?Isso, ou menos que isso
uma noção de porta,
o projecto de abri-la
sem haver outro lado?O projecto de escuta
à procura de som?
O responder que oferta
o dom de uma recusa?Como viver o mundo
em termos de esperança?
E que palavra é essa
que a vida não alcança?
A Rainha
Nomeei-te rainha.
Há maiores do que tu, maiores.
Há mais puras do que tu, mais puras.
Há mais belas do que tu, há mais belas.Mas tu és a rainha.
Quando andas pelas ruas
ninguém te reconhece.
Ninguém vê a tua coroa de cristal, ninguém olha
a passadeira de ouro vermelho
que pisas quando passas,
a passadeira que não existe.E quando surges
todos os rios se ouvem
no meu corpo,
sinos fazem estremecer o céu,
enche-se o mundo com um hino.Só tu e eu,
só tu e eu, meu amor,
o ouvimos.
Escárnio
O meu amor anda em fama.
Mesmo assim lhe quero bem.
Cegueira? Seja o que for!
Os olhos do meu amor
Não os vejo em mais ninguém.Tentaram deitá-lo à rua,
Mas abri-lhe a minha porta,
E a minha mão, toda nua,
Varreu toda a noite morta.
Porém, mil vozes, medonhas
Como pedaços de lama,
Segredaram-me vergonhas
Do meu amor que anda em fama.Ai! a dor! — casa florida…
Ai! o amor! — casa cercada.Há-de-se acabar a vida
Com a última pedrada!..
Mãe
I
Dantes, quando a deixava,
As férias já no fim,
Ela vinha à janela
Despedir-se de mim.Depois, quando na estrada,
Olhava para trás,
Deitava-me ainda a benção
Para que eu fosse em paz.Dali não se movia,
À vidraça encostada,
Até que eu me perdia
Já na curva da estrada.Hoje, se olho, calo-me
E baixo os olhos meus!
Já não vem à janela
Para dizer-me adeus!II
Chove, e a chuva é fria.
Noite! Nos montes distantes
O Inverno principia.
Um Inverno como dantes.Ao redor do lume aceso
Todos ficamos a olhar…
Todos não, não somos todos,
Porque há vazio um lugar.Esse lugar era o dela,
Que ninguém mais preencheu.
Mesmo com vida, na terra,
Era uma estrela no céu.
Explicação da Ausência
Desde que nos deixaste o tempo nunca mais se transformou
Não rodou mais para a festa não irrompeu
Em labareda ou nuvem no coração de ninguém.
A mudança fez-se vazio repetido
E o a vir a mesma afirmação da falta.
Depois o tempo nunca mais se abeirou da promessa
Nem se cumpriu
E a espera é não acontecer — fosse abertura —
E a saudade é tudo ser igual.
Dois Rumos
Mentir, eis o problema:
minto de vez em quando
ou sempre, por sistema?Se mentir todo dia,
erguerei um castelo
em alta serraniacontra toda escalada,
e mais ninguém no mundo
me atira seta ervada?Livre estarei, e dentro
de mim outra verdade
rebrilhará no centro?Ou mentirei apenas
no varejo da vida,
sem alívio de penas,sem suporte e armadura
ante o império dos grandes,
frágil, frágil criatura?Pensarei ainda nisto.
Por enquanto não sei
se me exponho ou resisto,se componho um casulo
e nele me agasalho,
tornando o resto nulo,ou adiro à suposta
verdade contingente
que, de verdade, mente.
Pequeno Poema
Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve estrelas a mais…
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém…Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe…
Uma Filosofia Toda
As bolas de sabão que esta criança
Se entretém a largar de uma palhinha
São translucidamente uma filosofia toda.
Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,
Amigas dos olhos como as cousas,
São aquilo que são
Com uma precisão redondinha e aérea,
E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,
Pretende que elas são mais do que parecem ser.
Algumas mal se vêem no ar lúcido.
São como a brisa que passa e mal toca nas flores
E que só sabemos que passa
Porque qualquer cousa se aligeira em nós
E aceita tudo mais nitidamente.
A Negra Fúria Ciúme
Morre a luz, abafa os ares
Horrendo, espesso negrume,
Apenas surge do Averno
A negra fúria Ciúme.Sobre um sólio cor da noite
Jaz dos Infernos o Nurne,
E a seus pés tragando brasas
A negra fúria Ciúme.Crespas víboras penteia,
Dos olhos dardeja lume,
Respira veneno e peste
A negra fúria Ciúme.Arrancando à Morte a fouce
De buído, ervado gume,
Vem retalhar corações
A negra fúria Ciúme.Ao cruel sócio de Amor
Escapar ninguém presume,
Porque a tudo as garras lança
A negra fúria Ciúme.Todos os males do Inferno
Em si guarda, em si resume
O mais horrível dos monstros,
A negra fúria Ciúme.Amor inda é mais suave,
Que das rosas o perfume,
Mas envenena-lhe as graças
A negra fúria Ciúme.Nas asas de Amor voamos
Do prazer ao áureo cume,
Porém de lá nos arroja
A negra fúria Ciúme.Do férreo cálix da Morte
Prova o funesto azedume
Aquele a quem ferve n’alma
A negra fúria Ciúme.
Desta Água não Beberei
Desta água não beberei
é um dito mui comum;
mas de vós não diz nenhum
deste pão não comerei,
porque muito certo sei
que quem pão alheio achou
que dele muito gostou,
seja de trigo ou centeio,
porque comer pão alheio
a ninguém enfastiou.
Primavera
Todo o amor que nos
prendera
como se fora de cera
se quebrava e desfazia
ai funesta primavera
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse diaE condenaram-me a tanto
viver comigo meu pranto
viver, viver e sem ti
vivendo sem no entanto
eu me esquecer desse encanto
que nesse dia perdiPão duro da solidão
é somente o que nos dão
o que nos dão a comer
que importa que o coração
diga que sim ou que não
se continua a viverTodo o amor que nos
prendera
se quebrara e desfizera
em pavor se convertia
ninguém fale em primavera
quem me dera, quem nos dera
ter morrido nesse dia
Chamar a Si Todo o Céu com um Sorriso
que o meu coração esteja sempre aberto às pequenas
aves que são os segredos da vida
o que quer que cantem é melhor do que conhecer
e se os homens não as ouvem estão velhosque o meu pensamento caminhe pelo faminto
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovense que eu não faça nada de útil
e te ame muito mais do que verdadeiramente
nunca houve ninguém tão louco que não conseguisse
chamar a si todo o céu com um sorrisoTradução de Cecília Rego Pinheiro
W.C.
Neste país onde ninguém sabe
como obram as musas,
já dizia o outro,
fazer versos realmente versos,
que sigam o espasmo do ânus provecto
dessas criaturas fúteis, decantadas,
ainda é e será muito difícil.Existe sempre um braço etéreo
que puxa o autoclismo
no momento exacto da defecação.
Ouve-se um ruído,
alguém pergunta ao outro o que se passa:
«É o som das águas que bate na garganta.»
Aliviados então os corações repousam
na sala de visitas da casa devassada
a que chamam d’alma.
Como Nossos Pais
Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina!
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz
Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantada como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro da nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração
Já faz tempo eu vi você na rua cabelo ao vento gente jovem reunida
Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais
Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais
Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam,
Carta de Amor
(A Eugénio de Andrade)
Um dia destes
vou-te matar
Uma manhã qualquer em que estejas (como de costume)
a medir o tesão das flores
ali no jardim de S. Lázaro
um tiro de pistola e…
Não te vou dar tempo sequer de me fixares o rosto
Podes invocar Safo, Cavafy ou S. João da Cruz
todos os poetas celestiais
que ninguém te virá acudir
Comprometidos definitivamente os teus planos de eternidadeAdeus pois mares de Setembro e dunas de Fão
Um dia destes vou-te matar…
Uma certeira bala de pólen
mesmo sobre o coração
Nunca a Alheia Vontade Cumpras por Própria
Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria.
Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és.
Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto.
Sê teu filho.
Destino
Quem disse à estrela o caminho
Que ela há-de seguir no céu?
A fabricar o seu ninho
Como é que a ave aprendeu?
Quem diz à planta «Florece!»
E ao mudo verme que tece
Sua mortalha de seda
Os fios quem lhos enreda?Ensinou alguém à abelha
Que no prado anda a zumbir
Se à flor branca ou à vermelha
O seu mel há-de ir pedir?
Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem…
Ai!, não mo disse ninguém.Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente o seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino .
Vim cumprir o meu destino…
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.