Entre Dentes
Deitado sobre ti
ensinas-me a sair
da treva.Com a boca dorida
por tanta palavra
ensanguentada
devoro o teu cabelo
ouro que se desfaz
por entre os dentes.E o teu sorriso
quando te penetro
ilumina súbito
a noite do meu corpo
Poemas sobre Noite
539 resultadosPorque Te Devo Amar
Porque te devo amar,
perguntas,
e eu falo-te no barulho do vento na janela quando me apertas, a tua cabeça no mistério que fica entre os braços e os ombros, escondo os dedos no interior do teu cabelo e ouço-te respirar, pessoas como nós não procuram explicações mas sobrevivências,
Devíamos aprender a querer devagar,
arriscas,
mas entretanto já pousei os meus lábios nos teus, é insuportável o teu cheiro se não puder tocar-te, ficaríamos completos se apenas houvesse palavras, e o mais absurdo é que nem precisamos de falar, pessoas como nós não procuram a eternidade mas os sentidos,
Cada instante merece um orgasmo,
invento,
tento provar-te que os poemas são feitos de carne, nunca de versos, estranhamente não ripostas e deixas-te olhar, fico mais de uma hora só a ver-te e é tudo, peço-te que te coloques nas mais diversas posições, há-de haver um ângulo qualquer em que não seja completamente teu e o teu sorriso o quase céu, mas não o encontro, pessoas como nós não procuram a pele mas a faca,
Há uma certa dignidade na maneira como nos abandonamos,
despeço-me,
visto-me com lentidão enquanto te amo finalmente,
Agora que as Palavras Secaram
Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversibilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.
Véspera
Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquitecto.Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!Contempla este jardim: os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio,
e perseguem o sol no dia findo.E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos,
Mãe
Intacta como o silêncio. Terra
Na terra, dela te alimentas e, serena,
A adubas, como orvalho às manhãs.
Fantasma de ti, não; e, como espírito, ardes
Por entre. Ciprestes e ventos. E sóis e
Noites. Mas ardes. E falas. Fétida mi-
Neração de ossos translúcidos
Do azul que me legaste
Ao descer-te as pálpebras na hora verdadeira.
Intacta como os ventos que não vieram
E aguardam a hora de soltar-se.
Intacta por sob. Mas intacta. Pura,
De terra e de sonho. Não sa-u-d-a-
De nem fantasma, não. Alegria.
Como o ser. Como a ladainha que te cantei, tu sabesQuando. ALEGRIA. Como quando os olhos
Não sabiam de lágrimas. Ou sabiam,
Como se não existissem senão para.
Saber-te lá onde és (aqui, tão pertinho,
Onde o teu sopro se fechou… ) Alegria
Ainda e sempre… Intacta. Casta toda
Como os mármores que não quis a emoldurar
Teu corpo de terra. Casta como os ventos.
Ardência solar da meia-tarde de cada dia,
Claridade que me nasces no «bom-dia»
Que nos damos, por sob o sol e a chuva
Das horas e dos dias.
Um Adeus Português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificadaNão tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dorNão podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viverNão podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igualNão podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetalNão tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de serNão tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Os Sobreviventes
Quando todos imaginavam a vida sem sentido
chegaram de manhã os sobreviventes,
e levantaram suas moradas, estiveram no rio,
procuravam o rebanho disperso, preparavam
o alimento, cantavam, derramavam
o suor nos campos, faziam fogo à noite
rememoravam o corpo de suas mulheres,
despachavam os barcos, pela manhã.
As chuvas eram sempre bem-vindas,
as chuvas levantavam o pó da terra
e enchiam de confiança a face da vida.
As mulheres viam nascer dentro de si
um novo rebento, os seus ventres cresciam.
Nenhum sinal de confiança quando as mulheres
apareciam de ventre crescido.
Os dias eram os mesmos, a esperança
e a desesperança eram as mesmas.
Canção da Saudade
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Não é por ti que dormes em meus braços que sinto amor. Eu amo a minha irmã gemea que nasceu sem vida, e amo-a a fantazia-la viva na minha edade.
Tu, meu amor, que nome é o teu? Dize onde vives, dize onde móras, dize se vives ou se já nasceste.
Eu amo aquella mão branca dependurada da amurada da galé que partia em busca de outras galés perdidas em mares longissimos.
Eu amo um sorriso que julgo ter visto em luz do fim-do-dia por entre as gentes apressadas.
Eu amo aquellas mulheres formosas que indiferentes passaram a meu lado e nunca mais os meus olhos pararam nelas.
Eu amo os cemiterios – as lágens são espessas vidraças transparentes, e eu vejo deitadas em leitos florídos virgens núas, mulheres bellas rindo-se para mim.
Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos. Eu amo a lua do lado que eu nunca vi.
Se eu fosse cego amava toda a gente.
Escavação
Numa ânsia de ter alguma cousa,
Divago por mim mesmo a procurar,
Desço-me todo, em vão, sem nada achar,
E a minh’alma perdida não repousa.Nada tendo, decido-me a criar:
Brando a espada: sou luz harmoniosa
E chama genial que tudo ousa
Unicamente à fôrça de sonhar…Mas a vitória fulva esvai-se logo…
E cinzas, cinzas só, em vez do fogo…
– Onde existo que não existo em mim?. . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .Um cemitério falso sem ossadas,
Noites d’amor sem bôcas esmagadas –
Tudo outro espasmo que princípio ou fim…
Poema à Mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãeTudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesano meio de um laranjal…
Mas — tu sabes — a noite é enorme,
Escrito de Memória
Formado em direito e solidão,
às escuras te busco enquanto a chuva brilha.
É verdade que olhas, é verdade que dizes.
Que todos temos medo e água pura.A que deuses te devo, se te devo,
que espanto é este, se há razão pra ele?
Como te busco, então, se estás aqui,
ou, se não estás, por te quero tida?
Quais olhos e qual noite?
Aquela
em que estiveste por me dizeres o nome.
Os Cavalleiros
– Onde vaes tu, cavalleiro,
Pela noite sem luar?
Diz o vento viajeiro,
Ao lado d’elle a ventar…
Não responde o cavalleiro,
Que vae absorto a scismar.
– Onde vaes tu, torna o vento,
N’esse doido galopar?
Vaes bater a algum convento?
Eu ensino-te a rezar.
E a lua surge, um momento,
A lua, convento do Ar.
– Vaes levar uma mensagem?
Dá-m’a que eu vou-t’a entregar:
Irás em meia viagem
E eu já de volta hei-de estar.
E o cavalleiro, á passagem,
Faz as arvores vergar.
– Vaes escalar um mosteiro?
Eu ajudo-t’o a escalar:
Não ha no mundo pedreiro
Que a mim se possa egualar!
Não responde o cavalleiro
E o vento torna a fallar:
– Dize, dize! vaes p’ra guerra?
Monta em mim, vou-te levar:
Não ha cavallo na Terra
Que tenha tão bom andar…
E os trovões rolam na serra
Como vagas a arrolar!
– E as guerras has-de ganhal-as,
Que por ti hei-de velar:
Ponho-me á frente das balas
Para a força lhes tirar!
Do Medo
1
Não pode o poema
circunscrever o medo,
dar-lhe o rosto glorioso
de uma fábula
ou crer intensamente na sua aura.
Nós permanecemos, quando
escurece à nossa volta o frio
do esquecimento
e dura o vento e uma nuvem leve
a separar-se das brumas
nos começa a noite.Não pode o poema
quase nada. A alguns inspira
uma discreta repugnância.
Outras vezes inclinamo-nos, reverentes, ante os epitáfios
ou demoramo-nos a escutar as grandes chuvas
sobre a terra.
Quem reconhece a poesia, esse frio
intermitente, essa
persistência através da corrupção?
Quase sempre a angústia
instaura a luz por dentro das palavras
e lhes rouba os sentidos.
Quase sempre é o medo
que nos conduz à poesia.2
Voltando ao medo: as asas
prendem mais do que libertam;
os pássaros percorrem necessariamente
os mesmos caminhos no espaço,
sem possibilidades de variação
que não estejam certas com esse mesmo voo
que sempre descrevem.
Voltando ao medo: o poemadesenha uma elipse em redor da tua voz
e cerca-se de angústia
e ervas bravias — nada mais
pode fazer.
Cansa Sentir Quando se Pensa
Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo –
Ah, nada é isto, nada é assim!)
Areia e Fonte
Foste a primeira que vi
logo que as águas baixaram
nos campos que cultivei,
nos bosques onde caçava.Dos arbustos que cobriam
a negra pele do monte
cortei ramos e adornei-te
de aroma e cores a fronte.Saltou, na alcova de relva
e traves de lua cheia,
meu corpo sobre teu corpo
como a fonte sobre a areia.Do opaco do teu cabelo
vestiu-se a noite. O marfim
de teus peitos reluzia
na chama que ardia em mim.Morreu a chama. Fugiste
nua, sobre as corças nuas
desses pés com que caminha
meu filho por nove luas.
Ó Meus Irmãos Contrários
Ó meus irmãos contrários que guardais nas vossas
[pupilas
A noite infusa e o seu horror
Onde vos deixei eu
Com vossas pesadas mãos no azeite preguiçoso
Dos vossos actos antigos
Com tão pouca esperança que’a morte tem razão
Ó meus irmãos perdidos
Eu vou para a vida tenho aparência de homem
Para provar que o mundo é feito à minha medidaE não estou só
Mil imagens de mim multiplicam a luz
Mil olhares semelhantes igualam a carne
É a ave é a criança é a rocha é a planície
Que se misturam a nós
O ouro desata a rir ao ver-se fora do abismo
A água o fogo despem-se por uma única estação
Já não há eclipse na fronte do universo.Tradução de António Ramos Rosa
Ali não Havia Eletricidade
Ali não havia eletricidade.
Por isso foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler —
A Bíblia, em português (coisa curiosa), feita para protestantes.
E reli a “Primeira Epístola aos Coríntios”.
Em torno de mim o sossego excessivo de noite de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A “Primeira Epístola aos Coríntios” …
Relia-a à luz de uma vela subitamente antiqüíssima,
E um grande mar de emoção ouvia-se dentro de mim…
Sou nada…
Sou uma ficção…
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
“Se eu não tivesse a caridade.”
E a soberana luz manda, e do alto dos séculos,
A grande mensagem com que a alma é livre…
“Se eu não tivesse a caridade…”
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade
O Suicida
Não restará na noite uma só estrela.
Não restará a noite.
Morrerei e comigo irá a soma
Do intolerável universo.
Apagarei medalhas e pirâmides,
Os continentes e os rostos.
Apagarei a acumulação do passado.
Farei da história pó, do pó o pó.
Estou a olhar o último poente.
Oiço o último pássaro.
Lego o nada a ninguém.
Se os Poetas Dessem as Mãos
Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia,
cairiam as grades das prisões
que nos tolhem os passos,
os arames farpados
que nos rasgam os sonhos,
os muros de silêncio,
as muralhas da cólera e do ódio,
as barreiras do medo,
e o Dia, como um pássaro liberto,
desdobraria enfim as asas
sobre a Noite dos homens.Se os Poetas dessem as mãos
e fechassem o Mundo
no grande abraço da Poesia.
Sonho
Teria passado a vida
atormentado e sozinho
se os sonhos me não viessem
mostrar qual é o caminhoumas vezes são de noite
outras em pleno de sol
com relâmpagos saltados
ou vagar de caracolquem os manda não sei eu
se o nada que é tudo à vida
ou se eu os finjo a mim mesmo
para ser sem que decida.