Poemas

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Poemas de autores conhecidos para ler e compartilhar. Os melhores poemas estão em Poetris.

Mais Nada se Move em Cima do Papel

mais nada se move em cima do papel
nenhum olho de tinta iridescente pressagia
o destino deste corpo

os dedos cintilam no húmus da terra
e eu
indiferente à sonolência da língua
ouço o eco do amor há muito soterrado

encosto a cabeça na luz e tudo esqueço
no interior desta ânfora alucinada

desço com a lentidão ruiva das feras
ao nervo onde a boca procura o sul
e os lugares dantes povoados
ah meu amigo
demoraste tanto a voltar dessa viagem

o mar subiu ao degrau das manhãs idosas
inundou o corpo quebrado pela serena desilusão

assim me habituei a morrer sem ti
com uma esferográfica cravada no coração

O Chão é Cama para o Amor Urgente

O chão é cama para o amor urgente,
amor que não espera ir para a cama.
Sobre tapete ou duro piso, a gente
compõe de corpo e corpo a húmida trama.

E para repousar do amor, vamos à cama.

É por Ti que Vivo

Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

Nostalgia

A pequena flor
só que além nasceu
sonhou ser maior:
nada lhe valeu…

Na cova esquecida,
sol que desejou
não a bafejou,
bastarda da vida…

E era flor ou gente?
Esquecida imperfeita
numa dor silente
ali jaz desfeita!

Recém-Casado

É pelos corpos que nos perderemos
de nós mesmos, para nos ganharmos
É pelos beijos que nos despedimos
para nos encontrarmos pelos olhos.
É pela pele que escaldamos
o que em nós havia de secreto:
e é o nosso corpo entregue um corpo estranho
pois pertence só a quem amamos
por quem morosamente devassamos
o alheamento da carne —
o barqueiro, o pastor que a atravessa
num profundo arremesso vagaroso
levantando ondas, ondas, ondas e ervas
a subir e descer vagas e montes
levando-me com ele à raia clara
onde água a quebrar-se eu me constele
na sua barca, conduzida à praia.

Dia de Aguaceiros

Dia de aguaceiros. Sei que os jardins
não são os de Academos. Mas vou pelos passeios
entre a escrita das chuvadas no saibro e a discreta
disposição do Logos na murta dos canteiros.

Dia de amentilhos, gravetos, muros verdes:
as alamedas param e os cedros repousam
a terra tão porosa que facilmente encanta
– e eu cedo e levo ao chão a mão inteira, a medo.

Retiro-a manchada por um líquen de areia.
Aprendo por contacto que o Verbo nos irmana
baixando intelecções a corpos indefesos.
E um século à volta abre guarda-chuvas negros.

A Graça

Que harmonia suave
É esta, que na mente
Eu sinto murmurar,
Ora profunda e grave,
Ora meiga e cadente,
Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra,
Que para mim em tudo
Negra se reproduz,
Se aclara, e desassombra
Seu gesto carrancudo,
Banhada em branda luz?
Porque no coração
Não sinto pesar tanto
O férreo pé da dor,
E o hino da oração,
Em vez de irado canto,
Me pede íntimo ardor?

És tu, meu anjo, cuja voz divina
Vem consolar a solidão do enfermo,
E a contemplar com placidez o ensina
De curta vida o derradeiro termo?

Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,.
Da aurora à frouxa luz,
Me dizias: «Acorda, inocentinho,
Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos
De inda puro sonhar,
Em nuvem d’ouro e púrpura descendo
Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga,
Junto ao bosque fremente,
Me contavas mistérios, harmonias
Dos Céus,

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O Coração que Vos Vê

O coração que vos vê
aos olhos que vos não vêem
não nos culpem, que não têm
alguma razão porquê.

Cada hora este olhos canso
por estes montes arriba
que à vista curta e cativa
tolhem todo seu descanso.
Deixem-nos cegar, que têm
olhando razão porquê:
o coração que lá é
os tristes choram d’aquém.

São Mais as Vozes que as Nozes

Mais são as vozes que as nozes
p’ra mim nesta ocasião,
e para vós nesta acção
mais as nozes que as vozes:
vós jogais os arriozes
com elas muito contentes;
e, sendo as nozes tão quentes,
eu fico d’elas mui frio;
vós com calor e com brio,
com elas ficais valentes.

Assim que a guerra será
não guerra de cão com gato,
senão de gato com rato
que é para vós guerra má:
que eu não posso sofrer já
tanta perda, nem tal dano,
nem que um ratinho tirano
me dê uma e outra vez
más horas em português,
maus «ratos» em castelhano.

Quem me Dera que a Minha Vida Fosse um Carro de Bois

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.
Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas

A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco…
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

A Noite Suavemente Descia

A noite
Suavemente descia;
E eu nos teus braços deitádo
Até sonhei que morria.

E via
Goivos e cravos aos mólhos;
Um Christo crucificado;
Nos teus olhos,
Suavidade e frieza;
Damasco rôxo, cinzento,
Rendas, velludos puídos,
Perfumes caros entornados,
Rumôr de vento em surdina,
Insenso, rézas, brocados;
Penumbra, sinos dobrando;
Vellas ardendo;
Guitarras, soluços, pragas,
E eu… devagar morrendo.

O teu rosto moreninho,
Eu achei-o mais formoso,
Mas, sem lagrimas, enxuto;
E o teu corpo delgado,
O teu corpo gracioso,
Estava todo coberto de lucto.

Depois, anciosamente,
Procurei a tua boca,
A tua boca sadía;
Beijámo-nos doidamente…
– Era dia!

E os nossos corpos unidos,
Como corpos sem sentidos,
No chão rolaram… e assim ficaram!…

Tudo isto é fado

Perguntaste-me outro dia
Se eu sabia o que era o fado
Eu disse que não sabia
Tu ficaste admirado
Sem saber o que dizia
Eu menti naquela hora
E disse que não sabia
Mas vou-te dizer agora

Almas vencidas
Noites perdidas
Sombras bizarras
Na mouraria
Canta um rufia
Choram guitarras
Amor ciúme
Cinzas e lume
Dor e pecado
Tudo isto existe
Tudo isto é triste
Tudo isto é fado

Se queres ser meu senhor
E teres-me sempre a teu lado
Não me fales só de amor
Fala-me também do fado
É canção que é meu castigo
Só basceu p’ra me perder
O fado é tudo o que eu digo
Mais o que eu não sei dizer

Terra – 7

Onde ficava o mundo?
Só pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava um outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina é uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.

Igual-Desigual

Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as acções, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou
[coisa.

Ninguém é igual a ninguém.
Todo o ser humano é um estranho
ímpar.

Carlos Drummond de Andrade, in ‘A Paixão Medida’

insinceridade

quis-nos aos dois enlaçados
meu amor ao lusco-fusco
mas sem saber o que busco:
há poentes desolados
e o vento às vezes é brusco

nem o cheiro a maresia
a rebate nas marés
na costa de lés a lés
mais tempo nos duraria
do que a espuma a nossos pés

a vida no sol-poente
fica assim num triste enleio
entre melindre e receio
de que a sombra se acrescente
e nós perdidos no meio

sem perdão e sem disfarce,
sem deixar uma pegada
por sobre a areia molhada,
a ver o dia apagar-se
e a noite feita de nada

por isso afinal não quero
ir contigo ao lusco-fusco,
meu amor, nem é sincero
fingir eu que assim te espero,
sem saber bem o que busco.

A Infinita

Vês estas mãos? Mediram
a terra, separaram
os minerais e os cereais,
fizeram a paz e a guerra,
derrubaram as distâncias
de todos os mares e rios
e, no entanto,
quando te percorrem
a ti, pequena,
grão de trigo, calhandra,
não conseguem abarcar-te,
fatigam-se ao agarrar
as pombas gémeas
que repousam ou voam no teu peito,
percorrem as distâncias das tuas pernas,
enrolam-se na luz da tua cintura.
Para mim tu és tesouro mais rico
de imensidade do que o mar e seus cachos
e és branca e azul e extensa como
a terra nas vindimas.
Nesse território,
desde os pés à fronte,
andando, andando, andando,
passarei a vida.

Século XXI

Falam de tudo como se a razão
lhes ensinasse desesperadamente
a mentir, a lançar
sem remorso nem asco um novo isco
à espera que alguém morda
e acredite nessa liturgia
cujos deuses são fáceis de adorar
e obedecem às leis do mercado.

Falam desse ludíbrio a que chamam
o futuro
como se ele existisse
e as suas palavras ecoam
em flatulentas frases
sempre a favor do vento que as agita
ao ritmo dos sorrisos ou das entrevistas
em que tudo se vende
por um preço acessível: emoções
& sexo & fama & outros prometidos
paraísos terrestres em horário nobre
– matéria reciclável
alimentando o altar do esquecimento.

O poder não existe, como sabes
demasiado bem – apenas uma
inútil recidiva biológica
de hormonas apressadas que procuram
ser fiéis aos comércio
dos sonhos sempre iguais, reproduzindo
sedutoras metástases do nada
nos códigos de barras ou nos cromossomas
de quem já pouco espera dos seus genes.

A Bela do Bairro

Ela era muito bonita e benza-a Deus
muito puta que era sempre à espera
dos pagantes à janela do rés-do-chão
mas eu teso e pior que isso néscio desses amores
tenho o quê? Quinze anos
tenho o quê uns olhos com que a vejo
que se debruçava mostrando os peitos
que a amei como se ama unicamente
uma vez um colo branco e até as jóias
que ela punha eram luzentes semelhando estrelas
eu bato o passeio à hora certa e amo-a
de cabelo solto e tudo não parece
senão o céu afinal um pechisbeque

ainda agora as minhas narinas fremem
turva-se o coração desmantelado
amando-a amei-a tanto e sem vergonha
oh pecar assim de jaquetão sport e um cigarro
nos queixos a admiração que eu fazia
entre a malta não é para esquecer nem lá ao fundo
como então puxo as abas da farpela
lentamente caminho para ela
a chuva cai miúda
e benza-a Deus que bonita e que puta
e que desvelos a gente
gastava em frente do amor

Um Homem

De repente
como uma flor violenta
um homem com uma bomba à altura do peito
e que chora convulsivamente
um homem belo minúsculo
como uma estrela cadente
e que sangra
como uma estátua jacente
esmagada sob as asas do crepúsculo
um homem com uma bomba
como uma rosa na boca
negra surpreendente
e à espera da festa louca
onde o coração lhe rebente
um homem de face aguda
e uma bomba
cega
surda
muda

Cai a Chuva Abandonada

Cai a chuva abandonada
à minha melancolia,
a melancolia do nada
que é tudo o que em nós se cria.

Memória estranha de outrora
não a sei e está presente.
Em mim por si se demora
e nada em mim a consente

do que me fala à razão.
Mas a razão é limite
do que tem ocasião

de negar o que me fite
de onde é a minha mansão
que é mansão no sem-limite.
Ao longe e ao alto é que estou
e só daí é que sou.