Tristeza
Esta noite eu durmo de tristeza.
(O sono que eu tinha morreu ontem
queimado pelo fogo de meu bem.)
O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes de meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido.(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas um brinquedo
que a mãozinha da criança quebrou.)E o resto é mesmo tristeza.
Poemas
2662 resultadosO amor que sinto
O amor que sinto
é um labirinto.Nele me perdi
com o coração
cheio de ter fome
do mundo e de ti
(sabes o teu nome),
sombra necessária
de um Sol que não vejo,
onde cabe o pária,
a Revolução
e a Reforma Agrária
sonho do Alentejo.
Só assim me pinto
neste Amor que sinto.Amor que me fere,
chame-se mulher,
onda de veludo,
pátria mal-amada,
chame-se “amar nada”
chame-se “amar tudo”.E porque não minto
sou um labirinto.
As Palavras Interditas
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.As palavras que te envio são interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.Dói-me esta água, este ar que se respira,
dói-me esta solidão de pedra escura,
estas mãos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
A Bicicleta pela Lua Dentro – Mãe, Mãe
A bicicleta pela lua dentro – mãe, mãe –
ouvi dizer toda a neve.
As árvores crescem nos satélites.
Que hei-de fazer senão sonhar
ao contrário quando novembro empunha –
mãe, mãe – as tellhas dos seus frutos?
As nuvens, aviões, mercúrio.
Novembro – mãe – com as suas praças
descascadas.A neve sobre os frutos – filho, filho.
Janeiro com outono sonha então.
Canta nesse espanto – meu filho – os satélites
sonham pela lua dentro na sua bicicleta.
Ouvi dizer novembro.
As praças estão resplendentes.
As grandes letras descascadas: é novo o alfabeto.
Aviões passam no teu nome –
minha mãe, minha máquina –
mercúrio (ouvi dizer) está cheio de neve.Avança, memória, com a tua bicicleta.
Sonhando, as árvores crescem ao contrário.
Apresento-te novembro: avião
limpo como um alfabeto. E as praças
dão a sua neve descascada.
Mãe, mãe — como janeiro resplende
nos satélites. Filho — é a tua memória.E as letras estão em ti, abertas
pela neve dentro. Como árvores, aviões
sonham ao contrário.
Quando a Morte Vier, Meu Amor
Quando a morte vier, meu amor,
fechemos os olhos para a olhar por dentro
e deixemos aos nossos lábios o murmúrio
da palavra branda jamais pronunciada
e às nossas mãos a carícia dispersa;
relembremos o dia impossível,
belo por isso e por isso desprezado,
e esqueçamos o que nos não deixaram ver
e o resto que sobrou do nada que possuímos;
deixemos à poesia que surge
o pranto de quem a trocou para comer
e os passos sem rumo pelas ruas hostis;
deixemos à carne o que não alcançámos,
e morramos então, naturalmente…
Elegia em Chamas
Arde no lar o fogo antigo
do amor irreparável
e de súbito surge-me o teu rosto
entre chamas e pranto, vulnerável:Como se os sonhos outra vez morressem
no lume da lembrança
e fosse dos teus olhos sem esperança
que as minhas lágrimas corressem.
Efeitos de Amor
Mal la ausencia sufriendo,
Y menos el furor con passo ciego
Sale Clorinda, ardiendo
De ira, y de amor en duplicado fuego
Por templar de dós llamas, que suspira,
En lagrimas amor, en sangre la ira.
De amor, y acero armada
Con tierno afecto, y animo constante
Conduce a la estacada
En pecho fuerte coraçon amante;
Y en vista hermosa, en aparencia fera
Miente en cuerpo de acero alma de cera.
Su muerte busca anciosa
Culpa de dós amantes, si del hado
Permision rigurosa;
Pues el uno atrevido, otro olvidado,
Engañada una fé, otra mentida,
Mil homicidas son contra una vida.
Con tragico dehuedo
Vengador infelix de tanta llama
Engañado Tancredo
En mentido disfaz mata a su Dama;
Misero triunfo, desdichada palma,
Que a uno cuesta la vida, a otro el alma.
Complice fue del daño,
Quando la amada sangre el hierro beve,
Solamente el engaño
Fue el pecho, aunque la mano aleve;
Pues llora el pecho, si la mano hiere;
Y quando aquella mata, estotro muere.
Mas del riesgo futuro
Mal cuidadoso de Clorinda Argante,
Violoncelo
Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo…
De que esvoaçam,
Brancos, os arcos…
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.
Fundas, soluçam
Caudais de choro…
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!…
Trêmulos astros,
Soidões lacustres…
_ Lemes e mastros…
E os alabastrosDos balaústres!
Urnas quebradas!
Blocos de gelo…
_ Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.
Ai, Senhor Fremosa, por Deus
Ai, senhor fremosa, por Deus
e por quan boa vos el fez,
doede-vos algua vez
de min e destes olhos meus,
que vos viron por mal de si,
quando vos viron, e por mí.E, porque vos fez Deus melhor
de quantas fez e máis valer,
querede-vos de min doer
e destes meus olhos, senhor,
que vos viron por mal de si,
quando vos viron, e por mí.E, porque o al non é ren,
senón o ben que vos Deus deu,
querede-vos doer do meu
mal e dos meus olhos, meu ben,
que vos viron por mal de si,
quando vos viron, e por mí.
A Caridade
Eu podia falar todas as línguas
Dos homens e dos anjos;
Logo que não tivesse caridade,
Já não passava de um metal que tine,
De um sino vão que soa.Podia ter o dom da profecia,
Saber o mais possível,
Ter fé capaz de transportar montanhas;
Logo que eu não tivesse caridade,
Já não valia nada!Eu podia gastar toda afortuna
A bem dos miseráveis,
Deixar que me arrojassem vivo às chamas;
Logo que eu não tivesse caridade,
De nada me servia!A caridade é dócil, é benévola,
Nunca foi invejosa,
Nunca procede temerariamente,
Nunca se ensoberbece!Não é ambiciosa; não trabalha
Em seu proveito próprio; não se irrita;
Nunca suspeita mal!Nunca folgou de ver uma injustiça;
Folga com a verdade!Tolera tudo! Tudo crê e espera!
Em suma tudo sofre!
Inocência
Vou aqui como um anjo, e carregado
De crimes!
Com asas de poeta voa-se no céu…
De tudo me redimes,
Penitência
De ser artista!
Nada sei,
Nada valho,
Nada faço,
E abre-se em mim a força deste abraço
Que abarca o mundo!Tudo amo, admiro e compreendo.
Sou como um sol fecundo
Que adoça e doira, tendo
Calor apenas.
Puro,
Divino
E humano como os outros meus irmãos,
Caminho nesta ingénua confiança
De criança
Que faz milagres a bater as mãos.
Nas Praças
Nas praças vindouras — talvez as mesmas que as nossas —
Que elixires serão apregoados?
Com rótulos diferentes, os mesmos do Egito dos Faraós;
Com outros processos de os fazer comprar, os que já são nossos.E as metafísicas perdidas nos cantos dos cafés de toda a parte,
As filosofias solitárias de tanta trapeira de falhado,
As idéias casuais de tanto casual, as intuições de tanto ninguém —
Um dia talvez, em fluido abstrato, e substância implausível,
Formem um Deus, e ocupem o mundo.
Mas a mim, hoje, a mim
Não há sossego de pensar nas propriedades das coisas,
Nos destinos que não desvendo,
Na minha própria metafisica, que tenho porque penso e sinto.Não há sossego,
E os grandes montes ao sol têm-no tão nitidamente!Têm-no? Os montes ao sol não têm coisa nenhuma do espírito.
Não seriam montes, não estariam ao sol, se o tivessem.O cansaço de pensar, indo até ao fundo de existir,
Faz-me velho desde antes de ontem com um frio até no corpo.E por que é que há propósitos mortos e sonhos sem razão?
A Melhor Maneira de Viajar é Sentir
Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d’Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
Assim Choram os Deuses
Os deuses desterrados.
Os irmãos de Saturno,
Às vezes, no crepúsculo
Vêm espreitar a vida.Vêm então ter conosco
Remorsos e saudades
E sentimentos falsos.
É a presença deles,
Deuses que o destroná-los
Tornou espirituais,
De matéria vencida,
Longínqua e inativa.Vêm, inúteis forças,
Solicitar em nós
As dores e os cansaços,
Que nos tiram da mão,
Como a um bêbedo mole,
A taça da alegria.Vêm fazer-nos crer,
Despeitadas ruínas
De primitivas forças,
Que o mundo é mais extenso
Que o que se vê e palpa,
Para que ofendamos
A Júpiter e a Apolo.Assim até à beira
Terrena do horizonte
Hiperion no crepúsculo
Vem chorar pelo carro
Que Apolo lhe roubou.E o poente tem cores
Da dor dum deus longínquo,
E ouve-se soluçar
Para além das esferas…
Assim choram os deuses.
De Esquecer
Demorei-me muito tempo ao pé de ti.
As portas fechadas por dentro, como se encerrasses
o amor e a lei. Demorei-me demais. Ao fim da tarde,
nesse mesmo dia que já morreu,
olhámo-nos devagar, mas distraídos. Diria até que anoiteceu.Nunca falámos do amor que chega tarde.
Nem o interpelámos (como se já não pudesse
ter nome). Fingia ter esquecido o teu corpo
nas muralhas. Nas areias.Vês aqui alguma figura? Ninguém vê.
Repara no ponto preto que alastra na margem do quadro,
nas minhas lágrimas desse tempo.
Relê.
Clareira
Quando depois do amor
ela está estendida
para o céu
e as pernas
reluzeme a boca
tem o ar
de uma bicicleta junto
a uma macieirae seu corpo
se move
e os seios
estão no tanque
dentro da sombratomo-a
mil vezes
e lhe sopro na boca
o ar
que esfriou na distância
que separa
a fruteira de cristal
dos lábios
que a moldaram
O Segredo
Deus não sabe os meus segredos.
As paredes sem ouvidos não escutam
a confidência interminável.
O que perco, ninguém sabe. Dissolve-se em mim,
luminária secreta, sílaba que os lábios não ousam murmurar
diante de teu corpo no escuro,
constelação.E o sobejo de mim, último raio de sol,
fulge no deserto. E nos penhascos
ressoa
constelado
o meu grito de amor.
Carta à Minha Filha
Lembras-te de dizer que a vida era uma fila?
Eras pequena e o cabelo mais claro,
mas os olhos iguais. Na metáfora dada
pela infância, perguntavas do espanto
da morte e do nascer, e de quem se seguia
e porque se seguia, ou da total ausência
de razão nessa cadeia em sonho de novelo.Hoje, nesta noite tão quente rompendo-se
de junho, o teu cabelo claro mais escuro,
queria contar-te que a vida é também isso:
uma fila no espaço, uma fila no tempo
e que o teu tempo ao meu se seguirá.Num estilo que gostava, esse de um homem
que um dia lembrou Goya numa carta a seus
filhos, queria dizer-te que a vida é também
isto: uma espingarda às vezes carregada
(como dizia uma mulher sozinha, mas grande
de jardim). Mostrar-te leite-creme, deixar-te
testamentos, falar-te de tigelas – é sempre
olhar-te amor. Mas é também desordenar-te à
vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua
de mentiras, em carinho de verso.E o que queria dizer-te é dos nexos da vida,
de quem a habita para além do ar.
Não Me Sinto Mudar
Não me sinto mudar. Ontem eu era o mesmo.
O tempo passa lento sobre os meus entusiasmos
cada dia mais raros são os meus cepticismos,
nunca fui vítima sequer de um pequeno orgasmomental que derrubasse a canção dos meus dias
que rompesse as minhas dúvidas que apagasse o meu nome.
Não mudei. É um pouco mais de melancolia,
um pouco de tédio que me deram os homens.Não mudei. Não mudo. O meu pai está muito velho.
As roseiras florescem, as mulheres partem
cada dia há mais meninas para cada conselho
para cada cansaço para cada bondade.Por isso continuo o mesmo. Nas sepulturas antigas
os vermes raivosos desfazem a dor,
todos os homens pedem de mais para amanhã
eu não peço nada nem um pouco de mundo.Mas num dia amargo, num dia distante
sentirei a raiva de não estender as mãos
de não erguer as asas da renovação.Será talvez um pouco mais de melancolia
mas na certeza da crise tardia
farei uma primavera para o meu coração.Tradução de Albano Martins
Que este Amor não me Cegue
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.Que este amor só me veja de partida.