Poemas

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Não sei quantas almas tenho

Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Tenho Saudades do Calor ó Mãe

Tenho saudades do calor ó mãe que me penteias
Ó mãe que me cortas o cabelo — o meu cabelo
Adorna-te muito mais do que os anéis

Dá-me um pouco do teu corpo como herança
Uma porção do teu corpo glorioso — não o que já tenho —
O que em ti já contempla o que os santos vêem nos céus
Dá-me o pão do céu porque morro
Faminto, morro à míngua do alto

Tenho saudades dos caminhos quando me deixas
Em casa. Padeço tanto
Penso tanto
Canto tão alto quando calculo os corpos celestes

Ó infinita ó infinita mãe

Se Eu Agora Inventasse o Mundo

Se eu agora inventasse o mundo
criaria a luz da manhã já explicada
sem o luto que pesa
na sombra dos homens
– conspiração da noite
com as pedras.

Luz que o cheiro das ervas da madrugada
aproxima os mortos do silêncio
com esqueletos de asas
– conluio com o sol
para estarem mais presentes
no tacto da pele da manhã,
mil mãos a afogarem a paisagem,
bafo de flores donde cai
o enlace das sementes…

Abro a janela
O mundo cheira tão bem a trevos ausentes!

Bons dias, mortos. Bons dias, Pai.

Ladainha dos Póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

Barganha

Domingo é dia de barganha.
Troco um relógio dos antigos
por um cavalo rosilho,
um bode por um trinca-ferro,
e uma roda de cabriolé
por um radinho de pilha.
Troco um gibão de cigano
pela serra que serrou
o tronco mais odorante
e por um fogão de lenha
troco um cachorro de caça
e uma panela de cobre.
Troco toda a luz do sol
pela sombra de um só pássaro.
Por uma espingarda troco
um tacho que foi de escravos
além de um almofariz
e uma xícara sem asa.
Troco a salmoura dos peixes
por qualquer gosto de lágrima.
Pela vitrola rachada
dou a minha bicicleta
com os pneus arriados.
Troco o entulho que restou
do muro que derrubei
pelo calor da fogueira
que por uma noite apenas
negou o frio dos pobres.
Troco um lençol de noivado
e uma toalha bordada
pela sua reflectida
na escuridão das cisternas.
Troco o meu selim de couro
por um arreio de prata.
Dou um caminhão de pedra
por um portão de peroba.

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Cântico da Noite

Sumiu-se o sol esplêndido
Nas vagas rumorosas!
Em trevas o crepúsculo
Foi desfolhando as rosas!
Pela ampla terra alargar-se
Calada solidão!
Parece o mundo um túmulo
Sob estrelado manto!
Alabastrina lâmpada,
Lá sobe a lua! Entanto
Gemidos d’aves lúgubres
Soando a espaços vão!
Hora dos melancólicos,
Saudosos devaneios!
Hora que aos gostos íntimos
Abres os castos seios!
Infunde em nossos ânimos
Inspiração da fé!
De noite, se um revérbero
De Deus nos alumia,
Destila-se de lágrimas
A prece, a profecia!
A alma elevada em êxtase
Terrena já não é!
Antes que o sono tácito
Olhos nos cerre, e os sonhos
Nos tomem no seu vórtice,
Já rindo, e já medonhos,
Hora dos céus, conserva-me
No extinto e no porvir.
Onde os que amei? sumiram-se.
Onde o que eu fui? deixou-me.
Deles, só vãs memórias;
De mim, só resta um nome:
No abismo do pretérito
Desfez-se choro e rúy
Desfez-se! e quantas lágrimas
Brotaram de alegrias! Desfez-se!
e quantos júbilos
Nasceram de agonias!

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Poeminha sobre o Tempo

O despertador desperta,
acorda com sono e medo;
por que a noite é tão curta
e fica tarde tão cedo?

Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p’ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

Que Natal?

Natal não tive. Ou tive
só o Natal que tiveram
minhas filhas. Esse vive
como as coisas que viveram
mas já não são. Que Natal
tenho hoje? Que alegria,
que festa, neste final,
nesta descida sombria?
Diz Natal quem diz começo,
ou chegada, ou descoberta…
Onde estou, só há tropeço,
terra fria e deserta.

Se, no fim, recomeçasse!
Se, descendo, eu subisse!
Se, parando, não parasse!
Ressuscitar… quem o disse?

Regresso

E contudo perdendo-te encontraste.
E nem deuses nem monstros nem tiranos
te puderam deter. A mim os oceanos.
E foste. E aproximaste.

Antes de ti o mar era mistério.
Tu mostraste que o mar era só mar.
Maior do que qualquer império
foi a aventura de partir e de chegar.

Mas já no mar quem fomos é estrangeiro
e já em Portugal estrangeiros somos.
Se em cada um de nós há ainda um marinheiro
vamos achar em Portugal quem nunca fomos.

De Calicute até Lisboa sobre o sal
e o Tempo. Porque é tempo de voltar
e de voltando achar em Portugal
esse país que se perdeu de mar em mar.

O Amor e o Tempo

Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
O Amor, o Tempo, a minha Amada
E eu subíamos um dia.

Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.

— «Amor! Amor! mais devagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»

Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento…
— «Porque voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» — Nesse momento,

Volta-se o Amor e diz com azedume:
— «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo… Adeus! Adeus!

Quando estou só reconheço

Quando estou só reconheço
Se por momentos me esqueço
Que existo entre outros que são
Como eu sós, salvo que estão
Alheados desde o começo.

E se sinto quanto estou
Verdadeiramente só,
Sinto-me livre mas triste.
Vou livre para onde vou,
Mas onde vou nada existe.

Creio contudo que a vida
Devidamente entendida
É toda assim, toda assim.
Por isso passo por mim
Como por cousa esquecida.

Os putos

Uma bola de pano, num charco
Um sorriso traquina, um chuto
Na ladeira a correr, um arco
O céu no olhar, dum puto.

Uma fisga que atira a esperança
Um pardal de calções, astuto
E a força de ser criança
Contra a força dum chui, que é bruto.

Parecem bandos de pardais à solta
Os putos, os putos
São como índios, capitães da malta
Os putos, os putos
Mas quando a tarde cai
Vai-se a revolta
Sentam-se ao colo do pai
É a ternura que volta
E ouvem-no a falar do homem novo
São os putos deste povo
A aprenderem a ser homens.

As caricas brilhando na mão
A vontade que salta ao eixo
Um puto que diz que não
Se a porrada vier não deixo

Um berlinde abafado na escola
Um pião na algibeira sem cor
Um puto que pede esmola
Porque a fome lhe abafa a dor.

Amor e Eternidade

Repara, doce amiga, olha esta lousa,
E junto aquella que lhe fica unida:
Aqui d’um terno amor, aqui repousa
O despojo mortal, sem luz, sem vida.
Esgotando talvez o fel da sorte,
Poderam ambos descançar tranquillos;
Amaram-se na vida, e inda na morte
Não pôde a fria tumba desunil-os.
Oh! quão saudosa a viração murmura
No cypreste virente
Que lhes protege as urnas funerárias!
E o sol, ao descahir lá no occidente,
Quão bello lhes fulgura
Nas campas solitárias!
Assim, anjo adorado, assim um dia
De nossas vidas murcharão flores…
Assim ao menos sob a campa fria
Se reunam também nossos amores!
Mas que vejo! estremeces, e teu rosto,
Teu bello rosto no meu seio inclinas,
Pallido como o lírio que ao sol posto
Desmaia nas campinas?
Oh? vem, não perturbemos a ventura
Do coração, que jubiloso anceia…
Vem, gosemos da vida em quanto dura;
Desterremos da morte a negra ideia!
Longe, longe de nós essa lembrança!
Mas não receies o funesto corte…
Doce amiga, descança:
Quem ama como nós, sorri à morte.

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Iniciação ao Diálogo

I

De início bastará que olhes mais vezes
na mesma direcção hoje evitada
(estandartes nos olhos são mais leves
do que no coração duros tambores),
ainda que o teu olhar próprio não rompa
as lajes de ódio com que te muraste.

II

O vento e chuva e tempo, sobre a pedra
passando sempre, hão-de gastá-la: um dia,
antes que a obture o musgo ou algum pássaro
aí faça o ninho fofo, encontrarás,
entre o lado que afirmas teu e o outro,
uma réstia de azul — o azul de todos.

III

Talvez rumor de passos, para além
do muro atravessado aos teus desígnios…
Não porás terra onde se pôs o céu:
ver o que diz o ouvido agora queres,
e onde a rocha fendeu-se cabe um olho
humano e mais a boca do fuzil.

IV

Provando frágil o que acreditavas
inexpugnável, eis que em ti se fixam
atentos outro olho e outro fuzil!

V

Contemplador e contemplado, hesitas
aprendendo na espera o inesperado:
lares como os que tens,

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Da Nossa Semelhança com os Deuses

Da nossa semelhança com os deuses
Por nosso bem tiremos
Julgarmo-nos deidades exiladas
E possuindo a Vida
Por uma autoridade primitiva
E coeva de Jove.

Altivamente donos de nós-mesmos,
Usemos a existência
Como a vila que os deuses nos concedem
Para, esquecer o estio.
Não de outra forma mais apoquentada
Nos vale o esforço usarmos
A existência indecisa e afluente
Fatal do rio escuro.

Como acima dos deuses o Destino
É calmo e inexorável,
Acima de nós-mesmos construamos
Um fado voluntário
Que quando nos oprima nós sejamos
Esse que nos oprime,
E quando entremos pela noite dentro
Por nosso pé entremos

Os Amantes de Pompeia

Eles conheceram-se neste abraço
em que levam tanto tempo,
embalados na cadência,

de uma canção desconhecida
e no mover das mãos que hesitam
entre o animal e a planta.
O tempo privou-os de vida
mas não um do outro, tangíveis
nos membros onde o desejo

lateja ainda,
gestos como medusas esvaindo-se
no sangue em que se fundiram para sempre.

Geraram esta outra placenta
com a urgência de quem sabe
que bebe em cada trago despedida:

lenta colheita da alma
que palidamente assoma
em cada poro,

subtil, alada, como pluma
que sem ser vista
se solta.
Neste abraço que os reteve até à sufocação,
depois que se abateram o céu e o horizonte,
o mundo foi-lhes langor

e memória acesa;
petrificados, mortos,
estão diante do nosso olhar,

na posição aflita em que os une,
mais que o esterno e a pelve,
o duplo receio da imortalidade.

Se da Amada Estás Ausente

Se da Amada estás ausente
Como o Oriente do Ocidente,
O coração transpõe todo o deserto;
Só, por toda a parte acha o seu caminho certo.
Para quem ama Bagodá é aqui perto.

Tradução de Paulo Quintela

Fala de Mãe e Filho

«Meu filho:
onde vais
que tens do rio o caminhar?»

Não espreites a estrada, mãe,
que eu nasci
onde o tempo se despenhou.

«Meu filho:
onde te posso lembrar
se apenas te dei nome para te embalar ?»

Mãe, minha mãe:
não te pese saudade
que eu voltarei sempre
como quem chega do mar.

«Meu filho:
onde te posso nascer
se meu ventre seco
nunca ninguém gerou?»

Mãe, nascerás sempre
na pedra em que te escuto:
a tua ausência, meu luto,
teu corpo para sempre insepulto.

Dúvida

Amas-me a mim? Perdoa,
É impossível! Não,
Não há quem se condoa
Da minha solidão.

Como podia eu, triste,
Ah! inspirar-te amor
Um dia que me viste,
Se é que me viste… flor!

Tu, bela, fresca e linda
Como a aurora, ou mais
Do que a aurora ainda,
Mal ouves os meus ais!

Mal ouves, porque as aves
Só saltam de manhã
Seus cânticos suaves;
E tu és sua irmã!

De noite apenas trina
O triste rouxinol:
Toda a mais ave inclina
O colo ao pôr do Sol.

Porquê? Porque é ditosa!
Porquê? Porque é feliz!
E a que sorri a rosa?
Ao mesmo a que sorris…

À luz dourada e pura
Do astro criador:
À noite, não, que é escura,
Causa-lhe a ela horror.

Ora uma nuvem negra,
Uma pesada cruz,
Uma alma que se alegra
Só quando vê a luz

De que ele, o Sol, inunda
O mar, quando se põe,
Imagem moribunda
De um coração que foi…

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