Amor
Dentro da noite,
o som escuro de um monjolo
— pilão como nós chamávamos —
e a azenha mais distante, denunciavam
a clareza do riacho.A fantástica visão do passado,
memória contando histórias!Da janela fechada
uma frincha de luz ia incidir
no galho pendido, nítido aos meus olhos.
E bem na ponta —, seio tentando —
a rósea, a serena forma do pêssego
em sua penugem — puro e obsceno!
Havia vento, (não sei)
mas devia haver
quando o urubu, tétrico
e hirto no seu desequilíbrio,
pousou sobre a planta
e o fruto bicou,
e o fruto bicou
bem no jacto de luz.
Poemas
2662 resultadosCantar do Amigo Perfeito
Passado o mar, passado o mundo, em longes praias,
de areia e ténues vagas, como esta
em que haverá de nossos passos a memória
embora soterrada pela areia nova,
e em que sobre as muralhas quanta sombra
na pedra carcomida guarda que passámos,
em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas esta, ó meu amigo?Aqui passeámos tanta vez, por entre os corpos
da alheia juventude, impudica ou severa,
esplêndida ou sem graça, à venda ou pronta a dar-se,
ido na brisa o sol às mais sombrias curvas;
e o meu e o teu olhar guiando-se leais,
de nós um para o outro conquistando
– em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda recordas, diz, ó meu amigo?Também aqui relembro as ruas tenebrosas,
de vulto em vulto percorridas, lado a lado,
numa nudez sem espírito, confiança
tranquila e áspera, animal e tácita,
já menos que amizade, mas diversa
da suspeição do amor, tão cauta e delicada
– em longes praias, outras nuvens, outras vozes,
ainda as recordas, diz, ó meu amigo?Também aqui,
Tu? Eu?
Não morres satisfeito.
A vida te viveu
sem que vivesses nela.
E não te convenceu
nem deu qualquer motivo
para haver o ser vivo.A vida te venceu
em luta desigual.
Era todo o passado
presente presidente
na polpa do futuro
acuando-te no beco.
Se morres derrotado,
não morres conformado.Nem morres informado
dos termos da sentença
de tua morte, lida
antes de redigida.
Deram-te um defensor
cego surdo estrangeiro
que ora metia medo
ora extorquia amor.Nem sabes se és culpado
de não ter culpa. Sabes
que morres todo o tempo
no ensaiar errado
que vai a cada instante
desensinando a morte
quanto mais a soletras,
sem que, nascido, more
onde, vivendo, morres.Não morres satisfeito
de trocar tua morte
por outra mais (?) perfeita.
Não aceitas teu
como aceitaste os muitos
fins em volta de ti.Testemunhaste a morte
no privilégio de ouro
de a sentires em vida
através de um aquário.
Eras tu que morrias
nesse,
Pandora
De repente,
o corpo da mulher fulgura,
pupila de deus,
punhal ou bico,
sede que chama.
Pára em mim e deslumbra
— nula possibilidade
da lucidez.
Princípio
Não tenho deuses. Vivo
Desamparado.
Sonhei deuses outrora,
Mas acordei.
Agora
Os acúleos são versos,
E tacteiam apenas
A ilusão de um suporte.
Mas a inércia da morte,
O descanso da vide na ramada
A contar primaveras uma a uma,
Também me não diz nada.
A paz possível é não ter nenhuma.
Esperança
Tantas formas revestes, e nenhuma
Me satisfaz!
Vens às vezes no amor, e quase te acredito.
Mas todo o amor é um grito
Desesperado
Que apenas ouve o eco…
Peco
Por absurdo humano:
Quero não sei que cálice profano
Cheio de um vinho herético e sagrado.
Esta Gente
Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes toscoOra me lembra escravos
Ora me lembra reisFaz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafrePois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nomeE em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcadaMeu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo
O Tempo Vive
O tempo vive, quando os homens, nele,
se esquecem de si mesmos,
ficando, embora, a contemplar o estreme
reduto de estar sendo.
O tempo vive a refrescar a sede
dos animais e do vento,
quando a estrutura estremece
a dura escuridão que, desde dentro,
irrompe. E fica com o uivo agreste
espantando o seu estrondo de silêncio.
Entre Dentes
Deitado sobre ti
ensinas-me a sair
da treva.Com a boca dorida
por tanta palavra
ensanguentada
devoro o teu cabelo
ouro que se desfaz
por entre os dentes.E o teu sorriso
quando te penetro
ilumina súbito
a noite do meu corpo
Porque Te Devo Amar
Porque te devo amar,
perguntas,
e eu falo-te no barulho do vento na janela quando me apertas, a tua cabeça no mistério que fica entre os braços e os ombros, escondo os dedos no interior do teu cabelo e ouço-te respirar, pessoas como nós não procuram explicações mas sobrevivências,
Devíamos aprender a querer devagar,
arriscas,
mas entretanto já pousei os meus lábios nos teus, é insuportável o teu cheiro se não puder tocar-te, ficaríamos completos se apenas houvesse palavras, e o mais absurdo é que nem precisamos de falar, pessoas como nós não procuram a eternidade mas os sentidos,
Cada instante merece um orgasmo,
invento,
tento provar-te que os poemas são feitos de carne, nunca de versos, estranhamente não ripostas e deixas-te olhar, fico mais de uma hora só a ver-te e é tudo, peço-te que te coloques nas mais diversas posições, há-de haver um ângulo qualquer em que não seja completamente teu e o teu sorriso o quase céu, mas não o encontro, pessoas como nós não procuram a pele mas a faca,
Há uma certa dignidade na maneira como nos abandonamos,
despeço-me,
visto-me com lentidão enquanto te amo finalmente,
Como Nossos Pais
Não quero lhe falar, meu grande amor
Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo o que aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor é uma coisa boa
Mas também sei que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa
Por isso cuidado, meu bem, há perigo na esquina!
Eles venceram e o sinal está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão e beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço, o seu lábio e a sua voz
Você me pergunta pela minha paixão
Digo que estou encantada como uma nova invenção
Eu vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pro sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro da nova estação
Eu sei de tudo na ferida viva do meu coração
Já faz tempo eu vi você na rua cabelo ao vento gente jovem reunida
Na parede da memória essa lembrança é o quadro que dói mais
Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais
Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam,
Agora que as Palavras Secaram
Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversibilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.
Véspera
Amor: em teu regaço as formas sonham
o instante de existir: ainda é bem cedo
para acordar, sofrer. Nem se conhecem
os que se destruirão em teu bruxedo.Nem tu sabes, amor, que te aproximas
a passo de veludo. És tão secreto,
reticente e ardiloso, que semelhas
uma casa fugindo ao arquitecto.Que presságios circulam pelo éter,
que signos de paixão, que suspirália
hesita em consumar-se, como flúor,
se não a roça enfim tua sandália?Não queres morder célere nem forte.
Evitas o clarão aberto em susto.
Examinas cada alma. É fogo inerte?
O sacrifício há de ser lento e augusto.Então, amor, escolhes o disfarce.
Como brincas (e és sério) em cabriolas,
em risadas sem modo, pés descalços,
no círculo de luz que desenrolas!Contempla este jardim: os namorados,
dois a dois, lábio a lábio, vão seguindo
de teu capricho o hermético astrolábio,
e perseguem o sol no dia findo.E se deitam na relva; e se enlaçando
num desejo menor, ou na indecisa
procura de si mesmos,
Prazer, mas Devagar
Prazer, Mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo trava.
Corno um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos.
Mãe
Intacta como o silêncio. Terra
Na terra, dela te alimentas e, serena,
A adubas, como orvalho às manhãs.
Fantasma de ti, não; e, como espírito, ardes
Por entre. Ciprestes e ventos. E sóis e
Noites. Mas ardes. E falas. Fétida mi-
Neração de ossos translúcidos
Do azul que me legaste
Ao descer-te as pálpebras na hora verdadeira.
Intacta como os ventos que não vieram
E aguardam a hora de soltar-se.
Intacta por sob. Mas intacta. Pura,
De terra e de sonho. Não sa-u-d-a-
De nem fantasma, não. Alegria.
Como o ser. Como a ladainha que te cantei, tu sabesQuando. ALEGRIA. Como quando os olhos
Não sabiam de lágrimas. Ou sabiam,
Como se não existissem senão para.
Saber-te lá onde és (aqui, tão pertinho,
Onde o teu sopro se fechou… ) Alegria
Ainda e sempre… Intacta. Casta toda
Como os mármores que não quis a emoldurar
Teu corpo de terra. Casta como os ventos.
Ardência solar da meia-tarde de cada dia,
Claridade que me nasces no «bom-dia»
Que nos damos, por sob o sol e a chuva
Das horas e dos dias.
Alexandrina, Como Era
Minha tia Alexandrina bebia café
meia tigela de manhã e meia de tarde
o que dava mais dum litro.
Com esse rio de fogo correndo no seu corpo
punha ela dez filhos fora de casa
e lavava dez sobrados às senhoras da cidade.E quando voltava para os Biscoitos na camioneta da carreira
deixava-me nos ouvidos a música das gargalhadas dadas
e nos olhos os demónios dos seus olhos
pretos, estrelas pequeninas fulgurantes.Não passo pela ilha sem ir aos Biscoitos
não por vê-la, que ela já não está:
(levou-a o Canadá, a carta de chamada)
mas porque tenho consciência que são esplêndidos
os ramos das vinhas que alastram nos calhaus.
Lágrimas de Cera
Passou; viu a porta aberta.
Entrou; queria rezar.
A vela ardia no altar.
A igreja estava deserta.Ajoelhou-se defronte
Para fazer a oração;
Curvou a pálida fronte
E pôs os olhos no chão.Vinha trêmula e sentida.
Cometera um erro. A Cruz
É a âncora da vida,
A esperança, a força, a luz.Que rezou? Não sei. Benzeu-se
Rapidamente. Ajustou
O véu de rendas. Ergueu-se
E à pia se encaminhou.Da vela benta que ardera,
Como tranqüilo fanal,
Umas lágrimas de cera
Caíam no castiçal.Ela porém não vertia
Uma lágrima sequer.
Tinha a fé, — a chama a arder, —
Chorar é que não podia.
Um Adeus Português
Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificadaNão tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dorNão podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viverNão podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igualNão podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta dor portuguesa
tão mansa quase vegetalNão tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de serNão tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
A Partir da Ausência
Imaginar a forma
doutro ser Na língua,
proferir o seu desejo
O toque inteiroNão existir
Se o digo acendo os filamentos
desta nocturna lâmpada
A pedra toco do silêncio densa
Os veios de um sangue escuroUm muro vivo preso a mil raízes
Mas não o vinho límpido
de um corpo
A lucidez da terra
E se respiro a boca não atinge
a nudez una
onde começoEra com o sol E era
um corpoOnde agora a mão se perde
E era o espaçoOnde não é
O que resta do corpo?
Uma matéria negra e fria?
Um hausto de desejo
retém ainda o calor de uma sílaba?As palavras soçobram rente ao muro
A terra sopra outros vocábulos nus
Entre os ossos e as ervas,
uma outra mão ténue
refaz o rosto escuro
doutro poema
Nunca te Amei Tanto
Nunca te amei tanto, ma soeur,
Como quando de ti parti naquele pôr-de-sol.
O bosque engoliu-me, o bosque azul, ma soeur,
Sobre que já pousavam as estrelas pálidas a oeste.Não me ri nem um pouco, nada, ma soeur,
Eu que a brincar ia ao encontro dum destino escuro —
Enquanto os rostos já atrás de mim
Devagar empalideciam no anoitecer do bosque azul.
Tudo era belo naquele anoitecer único, ma soeur,
Nunca mais depois e nunca antes assim —
Verdade é: só me ficaram as grandes aves
Que ao anoitecer têm fome no céu escuro.