Poemas sobre Quatro

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Poemas de quatro escritos por poetas consagrados, filósofos e outros autores famosos. Conheça estes e outros temas em Poetris.

Eu, que sou feio…

Eu, que sou feio, sĂłlido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existĂŞncia honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tĂŁo velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, – talvez não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Aquelle Sabio

N’aquellas altas janellas
Que deitam para o telhado;
Eu vejo-o sempre encostado,
A namorar as estrellas.

Tem assim ares d’empyrico
Mui lido em philosophástros;
É um pobre poeta lyrico,
Que escreve cartas aos astros.

Traz luto nos seus vestidos
Por uma Ophelia de menos,
Tem uns cabellos compridos,
E uns olhos tristes, serenos.

Parece um Jove proscripto,
E já descrente das Ledas,
Conhece o hebraico, o sanscrito
E os livros santos dos Vedas.

Espelha na luz do olhar
Não sei que visões amenas;
Anda sempre a imaginar
Idylios ás açucenas.

E aquella mulher vaidosa
–Que elle chama a sua Egeria–
Ri d’aquella alma anciosa,
E aquella triste miseria…

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Mais de tres dias ou quatro
Que lhe falta o necessario;
Estava hontem no theatro
Com luvas cĂ´r de canario.

Quando

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hĂŁo-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarĂŁo no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarĂŁo as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu nĂŁo estivesse morta.

A DĂ©bil

Eu, que sou feio, sĂłlido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te sempre, recatada
Numa existĂŞncia honesta, de cristal.

Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tĂŁo velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando socorreste um miserável,
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.

“Ela aí vem!” disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, — talvez que não o suspeites! –
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.

Adorável! Tu, muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.

Sorriam, nos seus trens,

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O Casulo

No casulo:
uma mesa quatro cinco estantes
livros por centenas ou milhares
tijolos de papel onde as traças
acasalam e o caruncho espreita
sĂłlidas muralhas de elvezires onde
a rua nĂŁo penetra
uma máquina de escrever olivetti
com a tinta acumulada nas letras mais redondas
cachimbos barros estanhos medalhas fotos
bonecos marafonas lembranças
retratos alguns gente ida ou vinda
gorros usbeques gorros bailundos leques
japoneses arpões açorianos sinos de não sei donde
ou sei esperem sinos da trĂłica em natais nocturnos
marfins africanos óleos desenhos calendários
feitiços da Baía a mão a fazer figas
tudo do melhor contra raios coriscos mau olhado
retratos dizia Jorge o de Salvador JĂşlio o da Morgadinha
Berglin o cientista Kostas o dramaturgo
e outros e outros
Afonso Duarte o das ossadas pĂłrtico
destas lamĂşrias o sorriso sibilino e rugoso
que matou no Nemésio o bicho harmonioso
mais de agora o Umberto Eco barbudo
a filtrar-me com medievismo os gestos tontos
e outros e outros
suecos brasileiros romenos gregos
e ainda aqueles em que a Zita foi escrevendo
a minha sina de andarilho
Tolstoi patrono obcecante um pastor a tocar
pífaro algures nos Balcãs sinais da Bulgária da Polónia
da Finlândia sinais de tantas partes onde
fui um outro de biografia aberrante
sinais da minha terra também
a minha de verdade e nĂŁo as outras
a que chamam minhas por distraĂ­do palpite
o Lima de Freitas num candeeiro alumiando
a mulher verde-azul em casas assombrada
mestre Marques d’Oliveira num esquisso
de alto coturno a carta de Abel Salazar
que o sol foi comendo não se lendo já
o que a censura omitiu
aqui a China também representada
um ícone de Sófia as plácidas cabras
do Calasans o tinteiro de quando
se usavam plumas roubaram-se o missal do Cicogna
um almofariz para esferográficas furta-cores
a caixa de madeira floreada veio da RĂşssia
deu-ma a Tatiana sob promessa (cumprida)
de a pôr bem em frente das minhas divagações
anémonas nórdicas da Anne
miosĂłtis bĂşlgaros da Rumiana
o poster Ă© alemĂŁo Friede den Kindern
nunca pedi a ninguém a decifração
dois horĂłscopos face a face
cangaceiros nordestinos
o menino ajoelhado do TĂł ZĂ©
num gesso já sem braços nem rosto
objectos objectos o pote tem as armas de nĂŁo lembro
[quem
embora o nome que venha por de cima
seja o meu e eu também no óleo carrancudo
do Zé Lima há um ror de anos
melhor nĂŁo saber quantos
o molde para o bronze Ă© um perfil onde
desenganadamente me reconheço
tanta bugiganga tanto bazar tanto papel
branco ou impresso uma faca para
apunhalar alguém a cassete de poesias na voz
da Maria Vitorino as esculturas astecas
do Miguel medalhas medalhas outra vez lembranças
agendas sem préstimo canetas gastas mais papéis
letras miĂşdas ou letras farfalhudas
depende da ocasiĂŁo
um livro de filigrana
as paredes mal se vêem estantes copiosas já disse
quadros em demasia e ainda
as rendas de minha mĂŁe em molduras destoadas
ela no retrato de cenho descontente
fitando-me até ao miolo dos desvairos
o bordão de régulo justiceiro
obliquando no trono de cactos
amuletos africanos o mata-borrĂŁo que foi
de um pide deu-mo o fuzileiro no pĂłs-Abril
uma bela cabeça de mulher do João Fragoso
jarras de sacristia candeias de cobre
sem pavio um samovar de madeira um samurai de
[veludo
os painéis de São Vicente em miniatura
a áurea trombeta do troféu lusíada
de parceria com o Manuel Cargaleiro
áureos pesados troféus o marasmo branco
de Pavia na tela sem idade
livros livros os correios não páram
de mos trazer para maior sufocação
cartas a granel por responder relógio não há mas ouço-o
sem falhar um segundo há cordas cordões medalhas
[medalhões
armas lauréis proibições
perfumes em minaretes levantinos.

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Gazel do Amor Imprevisto

O perfume ninguém compreendia
da escura magnĂłlia de teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
entre os dentes um colibri de amor.

Mil pequenos cavalos persas dormem
na praça com luar de tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites,
inimiga da neve, a tua cinta.

Entre gesso e jasmins, o teu olhar
era um pálido ramo de sementes.
Procurei para dar-te, no meu peito,
as letras de marfim que dizem sempre,

sempre, sempre; jardim em que agonizo,
teu corpo fugitivo para sempre,
teu sangue arterial em minha boca,
tua boca já sem luz para esta morte.

Tradução de Oscar Mendes

A Matança

NĂŁo penses
que a carne apenas Ă© aquela oca
lívida carcaça
em imĂłvel galope alucinado,
embarrada numa trave da adega.

NĂŁo penses
que o milagre anual da salgadeira
vem sem morte e sem trabalhos. NĂŁo:

Contar-te-ei
que primeiro atam o porco em sua loja
com uma corda em torno do focinho
e o arrastam à força para o ar lavado e frio.

Contar-te-ei
que o porco luta e resiste: ora sentado
sobre os quartos traseiros (os futuros presuntos),
ora comicamente no solo as quatro patas
fincando com bravura se defende
da mal-agourada violação. Por fim, cedendo,
colocam-no, ainda contrafeito,
entre roncos, bufos e sacões,
no banco, deitado sobre o lado,
por forma a expor o vulnerável,
comestível coração.

Contar-te-ei
que quando a faca penetra nas entranhas,
qual punhal vingador de antiga fome,
o grito Ă© tal, tĂŁo desolado e aflito,
tĂŁo humano, tĂŁo digno de compaixĂŁo,
tão de criatura insultada e indefesa –
que tenho de tapar a mĂŁos ambas os ouvidos
e recuar para os fundos da casa,

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Com Palavras

Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhĂŁs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras – inaudíveis – grito
para rasgar os risos que nos cercam.
Ah!, de palavras estamos todos cheios.
PossuĂ­mos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco lĂ­nguas.
Tomamo-las Ă  noite em comprimidos
para dormir o cansaço.
As palavras embrulham-se na lĂ­ngua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silĂŞncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?
PossuĂ­mos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade…
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmĂŁo que as encerra.
Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar…

Velha Página

Chove. Que mágoa lá fora!
Que mágoa! Embruscam-se os ares
Sobre este rio que chora
Velhos e eternos pesares.

E sinto o que a terra sente
E a tristeza que diviso,
Eu, de teus olhos ausente,
Ausente de teu sorriso…

As asas loucas abrindo,
Meus versos, num longo anseio,
MorrerĂŁo, sem que, sorrindo,
Possa acolhĂŞ-los teu seio!

Ah! quem mandou que fizesses
Minh’alma da tua escrava,
E ouvisses as minhas preces,
Chorando como eu chorava?

Por que Ă© que um dia me ouviste,
Tão pálida e alvoroçada,
E, como quem ama, triste,
Como quem ama, calada?

Tu tens um nome celeste…
Quem é do céu é sensível!
Por que Ă© que me nĂŁo disseste
Toda a verdade terrĂ­vel?

Por que, fugindo impiedosa,
Desertas o nosso ninho?
– Era tão bela esta rosa!…
Já me tardava este espinho!

Fora melhor, porventura,
Ficar no antigo degredo
Que conhecer a ventura
Para perdĂŞ-la tĂŁo cedo!

Por que me ouviste, enxugando
O pranto das minhas faces?

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A Meus Filhos

A meus filhos
desejo a curva do horizonte.

E todavia deles tudo em mim desejo:
o felino gosto de ver,
o brilho chuvoso da pele,
as mĂŁos que desvendam e amam.

Marga,
meu fermento,
neles caminho e me procuro,
a corpo igual regresso:

ao rápido besouro das lágrimas,
ao calor da boca dos cĂŁes,
Ă  sua lĂ­ngua de faca afectuosa;

Ă  seta que disparam os ibiscos,
Ă  partida solene da cama de grades,
ao encontro, na praia, com as algas;

Ă  alegria de dormir com um gato,
de ver sair das vacas o leite fumegante,
Ă  chegada do amor aos quatro anos.

O Amor e o Tempo

Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
O Amor, o Tempo, a minha Amada
E eu subĂ­amos um dia.

Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.

— «Amor! Amor! mais devagar!
NĂŁo corras tanto assim, que tĂŁo ligeira
NĂŁo pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»

SĂşbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento…
— «Porque voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» — Nesse momento,

Volta-se o Amor e diz com azedume:
— «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo… Adeus! Adeus!

radiograma

Alegre triste meigo feroz bĂŞbedo
lĂşcido
no meio do mar

Claro obscuro novo velhĂ­ssimo obsceno
puro
no meio do mar

Nado-morto Ă s quatro morto a nada Ă s cinco
encontrado perdido
no meio do mar
no meio do mar

O Quinto Império

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Triste de quem Ă© feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raíz –
Ter por vida sepultura.

Eras sobre eras se somen
No tempo que em eras vem.
Ser descontente Ă© ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visĂŁo que a alma tem!

E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – os quatro se vão
Para onde vai toda idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. SebastiĂŁo?

Trova do vento que passa

Pergunto ao vento que passa
notĂ­cias do meu paĂ­s
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios nĂŁo me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu paĂ­s
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notĂ­cias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu paĂ­s.

Pergunto Ă  gente que passa
por que vai de olhos no chĂŁo.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidĂŁo.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento nĂŁo me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vĂŁo prĂł mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

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Trova do Vento que Passa

Para AntĂłnio Portugal

Pergunto ao vento que passa
notĂ­cias do meu paĂ­s
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios nĂŁo me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu paĂ­s
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notĂ­cias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu paĂ­s.

Pergunto Ă  gente que passa
por que vai de olhos no chĂŁo.
Silêncio – é tudo o que tem
quem vive na servidĂŁo.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento nĂŁo me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi meu poema na margem
dos rios que vĂŁo prĂł mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

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Quanto Morre um Homem

Quando eu um dia decisivamente voltar a face
daquelas coisas que sĂł de perfil contemplei
quem procurará nelas as linhas do teu rosto?
Quem dará o teu nome a todas as ruas
que encontrar no coração e na cidade?
Quem te porá como fruto nas árvores ou como paisagem
no brilho de olhos lavados nas quatro estações?
Quando toda a alegria for clandestina
alguém te dobrará em cada esquina?

Sombras

A meio desta vida continua a ser
difĂ­cil, tĂŁo difĂ­cil
atravessar o medo, olhar de frente
a cegueira dos rostos debitando
palavras destinadas a morrer
no lume impaciente de outras bocas
anunciando o mel ou o vinho ou
o fel.

Calmamente sentado num sofá,
começas a entender, de vez em quando,
os condenados a prisão perpétua
entre as quatro paredes do espĂ­rito
e um esquife negro onde vĂŁo desfilando
imagens, sĂł imagens
de canal em canal, sintonizadas
com toda a angĂşstia e estupidez do mundo.

As pessoas – tu sabes – as pessoas são feitas
de vento
e deixam-se arrastar pela mais bela
respiração das sombras,
pela morte que repete os mesmos gestos
quando o crepĂşsculo fica a sĂłs connosco
e a noite se redime com uma estrela
a prometer salvar-nos.

A meio desta vida os versos abrem
paisagens virtuais onde se perdem
as intenções que alguma vez tivemos,
o recorte obscuro de perfis
desenhados a fogo há muitos anos
numa alma forrada de espelhos
mas sempre tĂŁo vazia,

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Lugares da Infância

Lugares da infância onde
sem palavras e sem memĂłria
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.

Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?

Venderam a casa, as flores
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.

O quarto eu nĂŁo o via
porque era ele os meus olhos;
e eu nĂŁo o sabia
e essa era a sabedoria.

Agora sei estas coisas
de um modo que nĂŁo me pertence,
como se as tivesse roubado.

A casa já não cresce
Ă  volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.

Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e sĂł voltou
oito dias depois,
já o jantar tinha arrefecido.

E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e eu cubro a cabeça com os lençóis.

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Tragédia

Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
nunca brincou no largo.
Depois, foi para a loja e pĂ´s a uso
aquilo que aprendeu
— vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
como estava previsto.
E o Senhor AntĂłnio
(tão novinho e já era «o Senhor António»!…)
ficou dono da loja e chefe da família…
Envelheceu, casou, teve meninos,
tudo como quem soma ou faz multiplicação!…
E quando o mais velhinho
já sabia contar, ler, escrever,
o Senhor António deu balanço à vida:
tinha setenta anos, um nome respeitado…
— que mais podia querer?
Por isso,
num meio-dia de VerĂŁo,
sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
e disse: — Vou morrer.
E morreu!, morreu de congestão…

Aliança

Por tudo quanto sei, mas nĂŁo sabia,
(Feliz de quem um dia ainda o souber!)
Por essa estrela branca em noite fria!
Anunciação, talvez, de poesia…
Por ti, minha mulher!

Por esse homem que sou, mas que nĂŁo era,
Vendo na morte a vida que vier!
Por teu sorriso em minha vida austera.
Anunciação, talvez de Primavera…
Por ti, minha mulher!

Pelo caminho humano a que vieste
Com fé no amor. — Seja o que Deus quiser!
Por certa fonte abrindo a rocha agreste…
Por esse filho loiro que me deste!
Por ti, minha mulher!

Pelo perdĂŁo que espalho aos quatro ventos,
De antemĂŁo cego ao mal que me trouxer
Despeitos surdos, pérfidos momentos;
Pelos teus passos, junto aos meus, mais lentos…
Por ti, minha mulher!

Nada mais digo. Nada. Que nĂŁo posso!
Mas dirá mais do que eu quem não disser
Como eu?: — Avé-Maria… Padre-Nosso…
Por tudo quanto Ă© meu (e que Ă© tĂŁo nosso!)
Por ti, minha mulher!