Surdo, Subterrâneo Rio
Surdo, subterrâneo rio de palavras
me corre lento pelo corpo todo;
amor sem margens onde a lua rompe
e nimba de luar o prĂłprio lodo.Correr do tempo ou sĂł rumor do frio
onde o amor se perde e a razĂŁo de amar
– surdo, subterrâneo, impiedoso rio,
para onde vais, sem eu poder ficar?
Poemas sobre Rios de Eugénio de Andrade
9 resultadosAs Palavras Interditas
Os navios existem, e existe o teu rosto
encostado ao rosto dos navios.
Sem nenhum destino flutuam nas cidades,
partem no vento, regressam nos rios.Na areia branca, onde o tempo começa,
uma criança passa de costas para o mar.
Anoitece. Não há dúvida, anoitece.
É preciso partir, é preciso ficar.Os hospitais cobrem-se de cinza.
Ondas de sombra quebram nas esquinas.
Amo-te… E entram pela janela
as primeiras luzes das colinas.As palavras que te envio sĂŁo interditas
até, meu amor, pelo halo das searas;
se alguma regressasse, nem já reconhecia
o teu nome nas suas curvas claras.Dói-me esta água, este ar que se respira,
dĂłi-me esta solidĂŁo de pedra escura,
estas mĂŁos nocturnas onde aperto
os meus dias quebrados na cintura.E a noite cresce apaixonadamente.
Nas suas margens nuas, desoladas,
cada homem tem apenas para dar
um horizonte de cidades bombardeadas.
Urgentemente
É urgente o amor
É urgente um barco no marÉ urgente destruir certas palavras,
Ăłdio, solidĂŁo e crueldade,
alguns lamentos, muitas espadas.É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
Ă© urgente descobrir rosas e rios
e manhĂŁs claras.Cai o silĂŞncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
O Amor
Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerávelA marcar sobre os teus flancos
o itinerário da espumaAssim é o amor: mortal e navegável.
Respiro o teu corpo
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe Ă minha boca.
Poema XVIII
Impetuoso, o teu corpo Ă© como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.Imagem dos gestos que tracei,
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.
Retrato Ardente
Entre os teus lábios
Ă© que a loucura acode
desce Ă garganta,
invade a água.No teu peito
Ă© que o pĂłlen do fogo
se junta Ă nascente,
alastra na sombra.Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.Da cintura aos joelhos
Ă© que a areia queima,
o sol Ă© secreto,
cego o silĂŞncio.Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a mĂşsica Ă© minha.
Pequena Elegia Chamada Domingo
O domingo era uma coisa pequena.
Uma coisa tĂŁo pequena
que cabia inteirinha nos teus olhos.
Nas tuas mĂŁos
estavam os montes e os rios
e as nuvens.
Mas as rosas,
as rosas estavam na tua boca.Hoje os montes e os rios
e as nuvens
nĂŁo vĂŞm nas tuas mĂŁos.
(Se ao menos elas viessem
sem montes e sem nuvens
e sem rios…)
O domingo está apenas nos meus olhos
e Ă© grande.
Os montes estĂŁo distantes e ocultam
os rios e as nuvens
e as rosas.
Pequena Elegia de Setembro
NĂŁo sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas Ăşltimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.Que mĂşsica escutas tĂŁo atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou Ă© dentro de ti
que tudo canta ainda?Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a mĂşsica cesse
e tu nĂŁo possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memĂłria.Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tĂŁo alheia
que nem dás por mim.