Poema para Iludir a Vida
Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
NĂŁo importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raĂzes,
ou asa de anjo
caĂda num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos
[portos.
Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje
[o fim
e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje Ă© o dia de amanhĂŁ.
Poemas sobre Rios de Fernando Namora
5 resultadosPelicano
Onda que vais morrendo em nova onda,
mar que vais morrendo noutro mar,
assim a minha vida se desprenda e do meu sumo
escorra a vida para as bocas que se finam
de desejar.Ă“ dia que vais escoando como os rios
e empalideces rostos e cabelos,
traze a palavra para a incerteza
dos que vagueiam Ă deriva;
a bandeira amarela se rasgue
e dos farrapos se gere outra cor.Ă“ dia correndo e findando,
some-te lá no cimo da fraga
mas deixa que no teu rasto fique o sangue
anunciando a esperança noutro dia.Sê como a onda que morre para outra começar.
Terra – 7
Onde ficava o mundo?
SĂł pinhais, matos, charnecas e milho
para a fome dos olhos.
Para lá da serra, o azul de outra serra e outra serra ainda.
E o mar? E a cidade? E os rios?
Caminhos de pedra, sulcados, curtos e estreitos,
onde chiam carros de bois e há poças de chuva.
Onde ficava o mundo?
Nem a alma sabia julgar.
Mas vieram engenheiros e máquinas estranhas.
Em cada dia o povo abraçava um outro povo.
E hoje a terra é livre e fácil como o céu das aves:
a estrada branca e menina Ă© uma serpente ondulada
e dela nasce a sede da fuga como as águas dum rio.
Nocturno
Uma casa navega no tempo
como um barco subindo o rio
Por fim sem marinhagem por fim sem mastreação.
Por fim ancorada nas janelas exorbitadas
onde as luzes sĂŁo paisagens lunares
e o silĂŞncio tem um perfil negro.
Por fim ancorada nas abordagens sem presas.Ancorada a vedes: abrigo de cĂŁes.
Pergunta
Quem vem de longe e sabe o nome do meu lugar
e levou o caminho das conchas em mar
e dos olhos em rio
— quem vem de longe chorar por mim?Quem sabe que eu findo de dureza
e condensa ternura em suas mĂŁos
para a derramar em afagos
por mim?Quem ouviu a angĂşstia do meu brado,
sirene de um navio a vadiar no largo,
e me traz seus beijos e sua cor,
perdendo-se na bruma das madrugadas
por mim?Quem soube das asperezas da viagem
e pediu o pĂŁo negado
e o suor ao corpo torturado,
por mim? por mim?Quem gerou o mundo e lhe deu seu nome
e seu tamanho — imenso, imenso,
e em mim cabe?