A Guerra
Musa, pois cuidas que é sal
o fel de autores perversos,
e o mundo levas a mal,
porque leste quatro versos
de Horácio e de Juvenal,Agora os verás queimar,
já que em vão os fecho e os sumo;
e leve o volúvel ar,
de envolta como turvo fumo,
o teu furor de rimar.Se tu de ferir não cessas,
que serve ser bom o intento?
Mais carapuças não teças;
que importa dá-las ao vento,
se podem achar cabeças?Tendo as sátiras por boas,
do Parnaso nos dois cumes
em hora negra revoas;
tu dás golpes nos costumes,
e cuidam que é nas pessoas.Deixa esquipar Inglaterra
cem naus de alterosa popa,
deixa regar sangue a terra.
Que te importa que na Europa
haja paz ou haja guerra?Deixa que os bons e a gentalha
brigar ao Casaca vão,
e que, enquanto a turba ralha,
vá recebendo o balcão
os despojos da batalha.Que tens tu que ornada história
diga que peitos ferinos,
Poemas sobre Rotos
26 resultadosOs Amantes
Amor, é falso o que dizes;
Teu bom rosto é contrafeito;
Busca novos infelizes
Que eu inda trago no peito
Mui frescas as cicatrizes;O teu meu é mel azedo,
Não creio em teu gasalhado,
Mostras-me em vão rosto ledo;
Já estou muito escaldado,
Já d’águas frias hei medo.Teus prémios são pranto e dor;
Choro os mal gastados anos
Em que servi tal senhor,
Mas tirei dos teus enganos
O sair bom pregador.Fartei-te assaz a vontade;
Em vãos suspiros e queixas
Me levaste a mocidade,
E nem ao menos me deixas
Os restos da curta idade?És como os cães esfaimados
Que, comendo os troncos quentes
Por destro negro esfolados,
Levam nos ávidos dentes
Os ossos ensanguentados.Bem vejo a aljava dourada
Os ombros nus adornar-te;
Amigo, muda de estrada,
Põe a mira em outra parte
Que daqui não tiras nada.Busca algum fofo morgado
Que, solto já dos tutores,
Ao domingo penteado,
Vá dizendo à toa amores
Pelas pias encostado;
Amor
Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando,
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
Poderosa e plácida.Amor, tão chão de Amor,
que sensível és…
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida…
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti
e tu de nós?
lamento para a língua portuguesa
não és mais do que as outras, mas és nossa,
e crescemos em ti. nem se imagina
que alguma vez uma outra língua possa
pôr-te incolor, ou inodora, insossa,
ser remédio brutal, mera aspirina,
ou tirar-nos de vez de alguma fossa,
ou dar-nos vida nova e repentina.
mas é o teu país que te destroça,
o teu próprio país quer-te esquecer
e a sua condição te contamina
e no seu dia-a-dia te assassina.
mostras por ti o que lhe vais fazer:
vai-se por cá mingando e desistindo,
e desde ti nos deitas a perder
e fazes com que fuja o teu poder
enquanto o mundo vai de nós fugindo:
ruiu a casa que és do nosso ser
e este anda por isso desavindo
connosco, no sentir e no entender,
mas sem que a desavença nos importe
nós já falamos nem sequer fingindo
que só ruínas vamos repetindo.
talvez seja o processo ou o desnorte
que mostra como é realidade
a relação da língua com a morte,
o nó que faz com ela e que entrecorte
a corrente da vida na cidade.
Passagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite… Acordo de repente
Yat-iô–ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô … Ghi-…
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)…
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar…
Tempestades em torno ao Guardaful…
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada…
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo…Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei…
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos…
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu,
O Solitário Gesto de Viver
Onde as patas da vida pisam firme,
armei o meu bivaque. Sou gaudério
nos longes destes campos assolados
por sóis intermináveis que ressecam
os verdes pervagados das querências.
Ali onde me encontro, planto as solas
dos pés como o quebracho da fronteira.
A solas me interrogo no horizonte,
sombrero descaído para a nuca,
desarmado, cismando, a bomba e a cuia
me servindo do amargo todo vida.
Bombachas encardidas, poncho roto,
não afrouxo o garrão, sigo adelante.
Quem sou eu, afinal? Alma penada,
lobisomem perdido na campina,
um ratão do banhado espavorido
no incêndio da macega desta vida,
ela própria rompida em suas partes
mais vitais, mais profundas, mais curtidas,
um pelego no sol, colgado em varas
nas ventanas do pampa enlouquecido.