Tempo
Tempo — definição da angústia.
Pudesse ao menos eu agrilhoar-te
Ao coração pulsátil dum poema!
Era o devir eterno em harmonia.
Mas foges das vogais, como a frescura
Da tinta com que escrevo.
Fica apenas a tua negra sombra:
— O passado,
Amargura maior, fotografada.Tempo…
E não haver nada,
Ninguém,
Uma alma penada
Que estrangule a ampulheta duma vez!Que realize o crime e a perfeição
De cortar aquele fio movediço
De areia
Que nenhum tecelão
É capaz de tecer na sua teia!
Poemas sobre Sombra
302 resultadosPesada Noite
A noite cai de bruços,
cai com o peso fundo do cansaço,
cai como pedra, como braço,
cai como um século de cera,
aos tombos, aos soluços,
entre a maçã maciça e a perene pêra,
entre a tarde e o crepúsculo,
dilatação da madrugada, elástica,
cai, de borracha,
imitação de músculo,
cai, parecendo que se agacha
na sombra, e feminina, e ágil
salta, com molas de ginástica
nos pés, o abismo
do presságio,
a noite, essa mandíbula do trismo,
tétano e espasmo,
ao mesmo tempo, a noite
amorosa, à espreita do orgasmo,
ferina, mas também açoite,
contraditória
como existir esquecimento
no íntimo do homem,
na intimidade viva da memória,
reminiscências que o consomem
fugindo com o vento,
a noite, a noite acata
tudo que ocorre,
tanto aquele que mata
quanto aquele que morre,
a noite, a sensação e aguda
de um sono
fechando os olhos, invencível
como fera que estuda
a vítima, abandono
completo, fuga, salto
nas garras do impossível,
a noite pétrea do basalto,
Ausencia
Lúgubre solidão! Ó noite triste!
Como sinto que falta a tua Imagem
A tudo quanto para mim existe!Tua bemdita e efémera passagem
No mundo, deu ao mundo em que viveste,
Á nossa bôa e maternal Paisagem,Um espirito novo mais celeste;
Nova Forma a abraçou e nova Côr
Beijou, sorrindo, o seu perfil agreste!E ei-la agora tão triste e sem verdor!
Depois da tua morte, regressou
Ao seu velhinho estado anterior.E esta saudosa casa, onde brilhou
Tua voz num instante sempiterno,
Em negra, intima noite se occultou.Quando chego á janela, vejo o inverno;
E, á luz da lua, as sombras do arvoredo
Lembram as sombras pálidas do Inferno.Dos recantos escuros, em segredo,
Nascem Visões saudosas, diluidos
Traços da tua Imagem, arremêdoQue a Sombra faz, em gestos doloridos,
Do teu Vulto de sol a amanhecer…
A Sombra quer mostrar-se aos meus sentidos…Mas eu que vejo? A luz escurecer;
O imperfeito, o indeciso que, em nós, deixa
A amargura de olhar e de não vêr…
Noivado
Vês, querida, o horizonte ardendo em chamas?
Além desses outeiros
Vai descambando o sol, e à terra envia
Os raios derradeiros;
A tarde, como noiva que enrubesce,
Traz no rosto um véu mole e transparente;
No fundo azul a estrela do poente
Já tímida aparece.Como um bafo suavíssimo da noite,
Vem sussurrando o vento
As árvores agita e imprime às folhas
O beijo sonolento.
A flor ajeita o cálix: cedo espera
O orvalho, e entanto exala o doce aroma;
Do leito do oriente a noite assoma
Como uma sombra austera.Vem tu, agora, ó filha de meus sonhos,
Vem, minha flor querida;
Vem contemplar o céu, página santa
Que amor a ler convida;
Da tua solidão rompe as cadeias;
Desce do teu sombrio e mudo asilo;
Encontrarás aqui o amor tranqüilo…
Que esperas? que receias?Olha o templo de Deus, pomposo e grande;
Lá do horizonte oposto
A lua, como lâmpada, já surge
A alumiar teu rosto;
Os círios vão arder no altar sagrado,
Estrelinhas do céu que um anjo acende;
Serenata do Adolescente
Que doentia claridade
a que me invade e me obsidia,
durante a noite e à luz da tarde,
à luz da tarde, à luz do dia!
Que doentia aquela grade
de insone e ténue claridade,
sob a avançada gelosia!Passo na rua e nada vejo
senão a luz, a luz e a grade.
Ó lamparina do desejo,
porque ardes tu, até tão tarde?
E às vezes surge, entre a cortina,
aquela sombra vespertina
que me retém nesta ansiedade.Se tens trint’anos? ou cinquenta?
Quis lá saber a tua idade!
Sei que em meus olhos se impacienta
fome da luz daquela grade!
Sei que sou novo, e que me odeio
porque me tarda — ante o teu seio —
queimar tão pobre mocidade!
O Procurador do Amor
Amor, a quanto me obrigas.
De dorso curvo e olhar aceso,
troto as avenidas neutras
atrás da sombra que me inculcas.Esta sombra que se confunde
com as mulheres gordas e magras,
entra numa porta, sai por outra
como nos filmes americanos,
e reaparece olhando as vitrinas.Meu olhar desnuda as passantes.
Às vezes um bico de seio
vale mais que o melhor Baedeker.
Mas onde seio para minha sede?O andar, a curva de um joelho,
vinco de seda no quadril
(não sabia quanto eras pura),
faço a polícia dos dessous.Eu sei que o êxtase supremo,
o looping no céu espiritual
pode enredar-se, malicioso,
no que as mulheres mais (?) escondem
no que meus olhos mais indagam.O dia se emenda com a noite
As mulheres vão para a rua
mas a mulher que tu me destinas
talvez ainda esteja em Peiping.Desiludido ainda me iludo.
Namoro a plumagem do galo
no ouro pérfido do coquetel.
Enquanto as mulheres cocoricam
os homens engolem veneno.
Leitura
Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia
de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.
Balada dos Amigos Separados
Onde estais vós Alberto Henrique
João Maria Pedro Ana?
Onde anda agora a vossa voz?
Que ruas escutam vossos passos?
Ao norte? ao sul? aonde? aonde?
José António Branca Rui
E tu Joana de olhos claros
E tu Francisco E tu Carlota
E tu Joaquim?
Que estradas colhem vosso olhar?
Onde anda agora a vossa vida repartida?
A oeste? A leste? Aonde? aonde?
Olho prà frente prà cidade
e pràs outras cidades por trás dela
onde se agitam outras gentes
que nunca ouviram vosso nome
e vejo em tudo a vossa cara
e oiço em tudo o som amigo
a voz de um a voz de outro
e aquele fio de sol que se agitava
sempre
em todos nós
Dançam as casas nesta noite
ébrias de sombra nesta noite
que se prolonga em plena angústia
aos solavancos do destino
e não consegue estrangularmos
Sigo e pergunto ao vento à rua
e a esta ânsia inviolável
que embebe o ar de calafrios
Onde estais vós? onde estais vós?
E por detrás de cada esquina
e por detrás de cada vulto
o vento traz-me a vossa voz
a rua traz-me a vossa voz
a voz de um a voz de outro
toada amiga que me banha
tão confiante tão serena
Aqui aqui em toda a parte
Aqui aqui E tu?
Pergunto-te Onde se Acha a Minha Vida
Pergunto-te onde se acha a minha vida.
Em que dia fui eu. Que hora existiu formada
de uma verdade minha bem possuída.Vão-se as minhas perguntas aos depósitos do nada.
E a quem é que pergunto? Em quem penso, iludida
por esperanças hereditárias? E de cada
pergunta minha vai nascendo a sombra imensa
que envolve a posição dos olhos de quem pensa.Já não sei mais a diferença
de ti, de mim, da coisa perguntada,
do silêncio da coisa irrespondida.
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamenteE posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não trai o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma…
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o
[olhar extático da aurora.
Não Precisas de me Procurar
Aqui não precisas de me procurar
para me encontrares, que eu estou,
omnipresente, em todo o chão que pisas,
duplicando a tua sombra,
deixando um rasto de brisa,
um aroma de urze na marca dos teus passos.
Com esta roupa visitaremos os pátios,
os átrios de dança e do encantamento.
As nuvens aninhadas atrás da lua,
na olorosa paz da madrugada,
são o mapa das errâncias da fala
enquanto o coração, indefeso, capitula.
Um Poema de Amor
Não sei onde estás, se falas
ou se apenas olhas o horizonte,
que pode ser apenas o de uma
parede de quarto. Mas sei que
uma sombra se demora contigo,
quando me pergunto onde estás:
uma inquietação que atravessa
o espaço entre mim e ti, e
te rouba as certezas de hoje,
como a mim me dá este poema.
Porque me Negas o que te não Peço
A flor que és, não a que dás, eu quero.
Porque me negas o que te não peço.
Tempo há para negares
Depois de teres dado.Flor, sê-me flor! Se te colher avaro
A mão da infausta esfinge, tu perene
Sombra errarás absurda,
Buscando o que não deste.
Os Arlequins – Sátira
Musa, depõe a lira!
Cantos de amor, cantos de glória esquece!
Novo assunto aparece
Que o gênio move e a indignação inspira.
Esta esfera é mais vasta,
E vence a letra nova a letra antiga!
Musa, toma a vergasta,
E os arlequins fustiga!Como aos olhos de Roma,
— Cadáver do que foi, pávido império
De Caio e de Tibério, —
O filho de Agripina ousado assoma;
E a lira sobraçando,
Ante o povo idiota e amedrontado,
Pedia, ameaçando,
O aplauso acostumado;E o povo que beijava
Outrora ao deus Calígula o vestido,
De novo submetido
Ao régio saltimbanco o aplauso dava.
E tu, tu não te abrias,
Ó céu de Roma, à cena degradante!
E tu, tu não caías,
Ó raio chamejante!Tal na história que passa
Neste de luzes século famoso,
O engenho portentoso
Sabe iludir a néscia populaça;
Não busca o mal tecido
Canto de outrora; a moderna insolência
Não encanta o ouvido,
Fascina a consciência!Vede; o aspecto vistoso,
O olhar seguro,
O que Ouviu os Meus Versos
O que ouviu os meus versos disse-me: “Que tem isso de novo?”
Todos sabem que unia flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, ninguém.
Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores, diretamente.
Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento.
Despedida
Uma harpa envelhece.
Nada se ouve ao longo dos canais e os remadores
sonham junto às estátuas de treva.
A tua sombra está atrás da minha sombra e dança.
Tocas-me de tão longe, sobre a falésia, e não sei se
foi amor.
Certo rumor de cálices, uma súplica ao dealbar das
ruínas,
tudo se perdeu no solitário campo dos céus.
Uma estrela caía.
Esse fogo consumido queima ainda a lembrança do
sul, a sua extrema dor anoitecida.
Não vens jamais.
O teu rosto é a relva mutilada dos passos em que me
entristeço, a absoluta condenação.
Chove quando penso que um dia as tuas rosas floriam
no centro desta cidade.
Não quis, à volta dos lábios, a profanação do jasmim,
as tuas folhas de outubro.
Ocultarei, na agonia das casas, uma pena que esvoaça,
a nudez de quem sangra à vista das catedrais.
O meu peito abriga as tuas sementes, e morre.
Esta música é quase o vento.
Se a Vida Fosse Sempre Vida
Felizes, cujos corpos sob as árvores
Jazem na úmida terra,
Que nunca mais sofrem o sol, ou sabem
Das doenças da lua.Verta Eolo a caverna inteira sobre
O orbe esfarrapado,
Lance Netuno, em cheias mãos, ao alto
As ondas estoirando.Tudo lhe é nada, e o próprio pegureiro
Que passa, finda a tarde,
Sob a árvore onde jaz quem foi a sombra
Imperfeita de um deus,Não sabe que os seus passos vão cobrindo
O que podia ser,
Se a vida fosse sempre vida, a glória
De uma beleza eterna.
Musa dos Olhos Verdes
Musa dos olhos verdes, musa alada,
Ó divina esperança,
Consolo do ancião no extremo alento,
E sonho da criança;Tu que junto do berço o infante cinges
C’os fúlgidos cabelos;
Tu que transformas em dourados sonhos
Sombrios pesadelos;Tu que fazes pulsar o seio às virgens;
Tu que às mães carinhosas
Enches o brando, tépido regaço
Com delicadas rosas;Casta filha do céu, virgem formosa
Do eterno devaneio,
Sê minha amante, os beijos meus recebe,
Acolhe-me em teu seio!Já cansada de encher lânguidas flores
Com as lágrimas frias,
A noite vê surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.Asas batendo à luz que as trevas rompe,
Piam noturnas aves,
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silêncios graves.Dentro de mim, a noite escura e fria
Melancólica chora;
Rompe estas sombras que o meu ser povoam;
Musa, sê tu a aurora!
Cantigas
Quando vejo a minha amada
Parece que o Sol nasceu;
Cantai, cantai alvorada
Ó avezinhas do céu.Nessas águas do Mondego
Se pode a gente mirar,
Elas procuram sossego…
E vão caminho do mar.A rosa que tu me deste
Peguei-lhe, mudou de cor;
Tornou-se de azul-celeste
Como o céu do nosso amor.Não me fales da janela,
Que te não ouço da rua;
Fala-me de alguma estrela,
Que te vou ouvir da Lua.Dizes que a letra não deve
Ser nunca miudinha;
Mas grada ou miúda escreve,
Que o coração adivinha.Não digas que me não amas
A ver se tenho ciúme;
Os laços do amor são chamas,
E não se brinca com lume.A virgem dos meus amores
Sobressai entre as mais belas:
É como a rosa entre flores,
É como o Sol entre estrelas.Eu zombo de sol e chuva,
Noite e dia, terra e mar;
Ais de uma pobre viúva,
Se os ouço, dá-me em chorar.A sombra da nuvem passa
depressa pela seara;
Abat-Jour
A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma belezaSobre o chão que é meu.
No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.Bem sei … Era dia
E longe de aqui…
Quanto me sorria
O que nunca vi!E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar…