Silêncio
Já o silêncio não é de oiro: é de cristal;
redoma de cristal este silêncio imposto.
Que lívido museu! Velado, sepulcral.
Ai de quem se atrever a mostrar bem o rosto!Um hálito de medo embaciando o vidrado
dá-nos um estranho ar de fantasmas ou fetos.
Na silente armadura, e sobre si fechado,
ninguém sonha sequer sonhar sonhos completos.Tão mal consegue o luar insinuar-se em nós
que a própria voz do mar segue o risco de um disco…
Não cessa de tocar; não cessa a sua voz.
Mas já ninguém pretende exp’rimentar-lhe o risco!
Poemas sobre Sonhos de David Mourão-Ferreira
4 resultadosElegia do Ciúme
A tua morte, que me importa,
se o meu desejo não morreu?
Sonho contigo, virgem morta,
e assim consigo (mas que importa?)
possuir em sonho quem morreu.Sonho contigo em sobressalto,
não vás fugir-me, como outrora.
E em cada encontro a que não falto
inda me turbo e sobressalto
à tua mínima demora.Onde estiveste? Onde? Com quem?
— Acordo, lívido, em furor.
Súbito, sei: com mais ninguém,
ó meu amor!, com mais ninguém
repartirás o teu amor.E se adormeço novamente
vou, tão feliz!, sem azedume
— agradecer-te, suavemente,
a tua morte que consente
tranquilidade ao meu ciúme.
Penélope
Mais do que sonho: comoção!
sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço melhores dias
do nosso amor.
Canção Amarga
Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem…
Ser mau ou bom, conforme os dias.Agora, tu, só entrevista,
quantas imagens me trouxeste!
Mas é preciso que eu resista
e não acorde um sonho agreste.Que passes tu! Por mim, bem sei
que hei-de aceitar o que vier,
pois tarde ou cedo deverei
de sonho e pasmo apodrecer.Que importa o gesto não ser bem
o gesto grácil que terias?
— Importa amar, sem ver a quem…
Ser infeliz, todos os dias!